Eugenio Valdés Figueroa. Restaurante Caranguejo, 6 de abril, Rio de Janeiro, 2015. Foto: Jessica Gogan
Caranguejos, borboletas, enigmas e banquetes
Uma conversa com Eugenio Valdés Figueroa
Platão, em O banquete1, diz: toda atividade que determina a passagem do não ser ao ser é Poiesis. Heidegger, filósofo moderno, refere-se a ela como Iluminação em seu sentido mais amplo. De Poiesis vem Poesia, que é magia, jogo, transformação. Poiesis é uma forma de sabedoria e conhecimento. Qualquer processo criativo, alegre, lúdico e vivo. Os gregos sabiam muito bem que o lugar ideal para falar de temas essenciais era em meio a um grande banquete, comendo e bebendo entre amigos íntimos. “Caranguejos e borboletas” é uma expressão dessa ideia. Eugenio Valdés Figueroa, com intuição afinada, prefigura uma ferramenta poética e crítica para pensar arte e educação, em meio a um jantar de caranguejos.
Eugenio, de onde vem a história dos caranguejos?
A ideia de organizar um debate sobre arte durante um banquete de caranguejos me seduz há quase uma década. Eu estava recém-chegado ao Rio de Janeiro, e a Daros Latinamerica já começava a procurar um imóvel que servisse de sede para a Casa Daros, projeto que eu havia concebido junto com Hans-Michael Herzog e que ainda não tinha saído do papel. Porém, bem formuladas, aquelas primeiras páginas curatoriais que escrevemos juntos foram nossa bússola.
Nessa visita eu estava acompanhado da Regina Vogel, bibliotecária da Daros Latinamerica em Zurich, com quem eu desenvolvia uma pesquisa na Europa e na América Latina sobre bibliotecas e arquivos de arte contemporânea. Um dia fomos almoçar com Márcio Botner, artista, que naquele momento atuava também como professor da Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage, além de ser cofundador, com Ernesto Neto e Laura Lima, da galeria A Gentil Carioca.
Em que ano foi isso?
Foi em 2004. Márcio convidou Regina e eu para almoçarmos em um lugar especializado em caranguejo. Era um momento especial, estávamos no processo de buscar uma casa, cheios de sonhos, utopias e com enormes desejos de colocar as mãos à obra. Quando chegamos ao restaurante, nos deram aventais, martelos, tábuas de madeira. Enquanto descascávamos os caranguejos que chegavam em um molho suculento, misturava-se o espontâneo bom humor entre amigos com reflexões agudas sobre o contexto artístico brasileiro e latino-americano.
Eugenio Valdés Figueroa. Restaurante Caranguejo, 6 de abril, Rio de Janeiro, 2015. Fotos: Jessica Gogan
Sempre me pareceu que comer caranguejo é em si mesmo um espetáculo. Enquanto você conversa com alguém, martela o caranguejo, e a cada impacto voa molho para todos os lados. É divertido, quase hilariante, e ao mesmo tempo violento. Lembro que nós três ríamos da situação de estar falando de arte, fazendo diagnósticos, emitindo juízos sobre a cena artística latino-americana e suas necessidades enquanto dávamos marteladas o tempo todo para comer os caranguejos. A intensidade das marteladas variava de acordo com a paixão que colocávamos no que estávamos dizendo. Nesse momento me veio à cabeça uma ideia que eu quis compartilhar imediatamente com os outros, e que ainda tenho: usar um cenário menos convencional para fazer “diagnósticos” sobre a situação atual da arte, que fosse contrário ao formato que os simpósios e seminários costumam ter.
Eu achava muito mais interessante que um dia pudéssemos reunir profissionais do mundo da arte e artistas para discutir questões essenciais sobre a base das necessidades reais do contexto latino-americano, durante um jantar de caranguejos. Todos sentados em uma mesa, conversando, planejando ações e emitindo posicionamentos sobre arte enquanto damos marteladas nos caranguejos. Seria uma experiência sensorial deliciosa, mas que demandaria muita atividade!
É comum na América Latina dizer que andamos “para trás como o caranguejo” quando não conseguimos avançar em nossos objetivos…
Sim, a ideia de martelar aquilo que simboliza andar para trás também me parecia inquietante, e sobretudo fazê-lo de outra maneira. Acho isso muito importante. Ao longo da minha carreira, tenho vivenciado que as melhores discussões surgem entre amigos comprometidos, em um almoço ou tomando uns drinques. Nesses encontros apaixonados se decidem muitas coisas importantes. Muitas das ideias que hoje constituem a filosofia da Casa Daros foram discutidas e escritas assim, entre amigos, em conversas apaixonadas, com transparência e confiança, convencidos de que ir contra a corrente é possível e necessário.
Como se concretizou o encontro dos caranguejos e borboletas?
Eugenio Valdés Figuera e Luiz Guilherme Vergara. Restaurante Caranguejo, 6 de abril, Rio de Janeiro, 2015. Foto: Jessica Gogan
Quando já estava morando no Rio, conheci o Luiz Guilherme Vergara, profissional que admiro e respeito muitíssimo, com o qual compartilho um espaço de afinidade muito grande quando pensamos a relação entre arte e pedagogia ou quando expomos nossos desejos. Luiz Guilherme fez e está fazendo um trabalho extraordinário no MAC de Niterói e agora no Instituto Mesa, junto com Jessica Gogan.
Em certo momento, depois da apresentação do Instituto Mesa, falamos da possibilidade de fazer um seminário sobre educação, e falei a eles dessa ideia antiga que eu não havia podido concretizar: o jantar de caranguejos. Muitas vezes planejamos, mas não acontecia. Um dia estivemos prestes a fazê-lo, mas coincidiu com uma época de defeso de caranguejos e não encontramos caranguejos no Rio de Janeiro. Depois de reiteradas tentativas, entendemos que era algo mais “conceitual”. Tínhamos uma grande ideia e isso era suficiente, preferimos não insistir em realizá-la.
Como foi sua vivência em Cuba com os caranguejos e como você a relaciona com a educação?
Quando eu era mais jovem, acompanhei os adultos da minha família em caças de caranguejos. Em Cuba elas não são realizadas no mar, e sim pelas estradas próximas ao mar. Saíamos na madrugada, em um jipe com lanternas e refletores.
Quando você ilumina os caranguejos que caminham desprevenidos na escuridão, eles imediatamente se imobilizam, e esse é o momento de capturá-los. Nesse tipo de caça existe um cuidado muito bonito, que é o de não se arrancar as patas dos caranguejos. Somente as garras, porque se regeneram com o tempo, e depois de arrancadas, os caranguejos são libertados. Eles correm, se escondem em um buraco e esperam até suas garras se regenerarem. Se você arrancasse as patas deles, os condenaria à morte. Me parecia intrigante que o caranguejo, que anda para trás, ficasse imobilizado com a luz. Isso se prestava para muitas analogias e metáforas.
Outra de minhas obsessões é o Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. O romance começa quando alguém que espera no carro pela mudança de sinal no semáforo fica subitamente cego, obstruindo o trânsito e causando confusão. Era uma cegueira branca, que ao longo do romance vai se disseminando até alcançar proporções de epidemia. A saturação de luz – essa cegueira branca – é comparável ao excesso de informação ao qual estamos submetidos em nossos tempos. É cada vez mais difícil distinguir os detalhes, os meandros da informação, os matizes e os contrastes. Esta é uma questão que me inquieta hoje: como se distribui a informação entre os jovens, e como essa informação é difícil de ser processada.
O excesso de informação torna-se violento quando não nos permite entender o que vemos. A produção visual transformou-se em um mercado lucrativo no qual as questões econômicas muitas vezes se sobrepõem às questões éticas e morais. É necessário manter uma distância em relação ao mundo das visibilidades para que não percamos nosso discernimento e nossa visão crítica, porque de outro modo podemos ser “engolidos” pela própria imagem.
Por isso, um dos desafios da pedagogia contemporânea é conseguir que os jovens possam parar diante da velocidade do mundo, desacelerar seu tempo habitual, muito mais rápido do que o das pessoas da minha época, e possam submergir-se na informação, limitá-la, entendê-la bem e emitir opiniões. Isto é, que em vez de somente consumi-la, possam devolvê-la ao mundo com um critério de valor. E que possam afetar a produção de informação a partir desse critério de valor.
A história do caranguejo era mais complexa do que eu imaginava. Foi útil para poetizar e metaforizar questões fundamentais sobre educação: podemos pensar os jovens como indivíduos que em seu andar desprevenido podem ficar obnubilados com o excesso de luz. Eu quero que parem para pensar. Coloquei esta e outras questões sobre a mesa quando falei com Guilherme e Jessica.
E as borboletas?
Esquerda à direita: Jessica Gogan, Luiz Guilherme Vergara, Eugenio Valdés Figueroa, Bia Jabor e Roberta Condeixa. Encontro regional O Sentido do Público na Arte: Caranguejos e Borboletas, 28 de setembro de 2013, Casa Daros. Foto: Delmar Mavignier
Para continuar sobrepondo literatura ao caranguejo, Jessica vem com uma imagem incrível de uma moeda antiga na qual aparece o cunho de um caranguejo com uma borboleta. A ideia da metamorfose de um caranguejo em borboleta era totalmente enigmática. O enigma é muito importante, tanto no campo da educação como no campo da arte. Se a arte e a educação deixassem de produzir perguntas e enigmas, deixariam de ser o que são. Uma resposta deve conduzir sempre a outras perguntas. A imagem do caranguejo e da borboleta veio consolidar um tema e uma imagem: que o ponto de partida de uma série de seminários, encontros e reflexões sobre educação seja, para além da teoria morta, a poesia e a metáfora. Acho que deveria ser o desejo de todos os que trabalham com educação.
Eugenio Valdés Figueroa é curador, crítico e pesquisador de arte na América Latina. Foi diretor de arte e educação na Casa Daros, atualmente é diretor da Fundação de Arte de Cisneros Fontanals (CIFO). Esta entrevista foi gravada, transcrita e editada pelo pesquisador Felipe Moreno na Casa Daros, Rio de Janeiro, em 5 de setembro de 2014.
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1 O banquete ou O simpósio é um diálogo platônico composto no ano 380 a.C. que versa sobre o amor. Essa obra, junto ao Fedro, confirmou a ideia de amor platônico. (Acessado janeiro 2015)