Nº6 VIDAS ESCONDIDAS
Jeff Medeiros. Sustento, 2020. Colher de pedreiro.

Lugar de potência de vida: Quem nos desvelará, se não nós?

Jefferson Medeiros

“Eu sou de São Gonçalo”: essa é a nota de abertura do meu Instagram, plataforma virtual que uso como galeria expositiva de trabalhos de arte. Em algum momento senti necessidade de fazer esse destaque sobre mim. Meu pai sempre se incomodou muito com pessoas que escondiam ser de São Gonçalo, esbravejava frequentemente na frente da televisão quando artista X ou Y negava o nosso lugar. Na infância, para mim era impossível compreender o motivo para alguém fazer isso. Ora, aqui eu passava os dias brincando: andando de bicicleta; trepado nas árvores comendo manga; brincando de pirata, saltando pelos aluviões formados após a chuva no valão ao lado da minha casa; fazendo cafifa, fazendo balão; puxando folha de cana, amarrada com nylon pelo meio da rua assustando passantes como se fosse cobra… Enfim, aqui eu vivia, aqui eu amava, impossível não gostar desse lugar, então, eu cresci amando minha cidade.

O último censo, feito em 2010, revelou que São Gonçalo possui aproximadamente 1.085.000 pessoas, então, mesmo sem poder citar todos os nomes, gosto de dizer que São Gonçalo possui uma média de 1.085.000 aspectos positivos. É a partir desse lugar geográfico e social periférico que passo a enxergar a vida. Foi absorvendo os signos daqui que aprendi a ler o mundo e entender a vida como o manual da vida. Aprendi a extrair a teoria da prática cotidiana de existência. Teoria essa que constitui algo como uma episteme de um devir gonçalense. É um devir periférico com especificidades daqui.

Jeff Medeiros. Muro, 2020. Concreto, vidro e metal.
Jeff Medeiros. Série Cortes, 2020. Fotografia, muro da casa da minha vó onde mora minha mãe.

Com tantos habitantes, São Gonçalo carece profundamente de políticas públicas eficientes que viabilizem o mínimo bem estar à população. De fato, compreendo que não há que se orgulhar da precária infraestrutura gonçalense, seja de transporte, saneamento básico, segurança ou educação. Apesar do alto índice demográfico, não é uma cidade industrializada, não conta com estaleiros e portos funcionando em plena atividade, mesmo sendo às margens da Baía de Guanabara. Assim, aqui oferecemos muita mão de obra para outros lugares. São mulheres e homens, resistentes como um muro, que levantam cedo diariamente para acordar e construir o mundo nas cidades vizinhas.

Jeff Medeiros, Escombros, 2020.

Tenho erguido o mundo.

Me confundo com trabalho.

Pelo sustento,

Fui condenado a ser ferramenta.

Sou meu pão.

Eu sou a construção,

Mas recebo escombros em data marcada.

É disso que me alimento,

Do meu corpo.

Ninguém me dá nada.

No texto “Aiesthesis Decolonial”, Walter Mignolo fala sobre uma estética decolonial na Europa do Leste.1 Para tanto, apresenta o trabalho de uma artista chamada Tanja Ostojć  nascida em Belgrado, ex-Iugoslávia. Imagino que pode parecer muito estranho inserir uma artista dos Balcãs aqui nesse contexto. Bom, o trabalho de Ostojć como feminista, sérvia, denuncia que as mulheres da Europa de serviço (os países ex-comunistas) são recebidas pela União Europeia como mulheres de serviço. Não vou explorar a estética visual do trabalho da artista, tampouco o recorte de gênero. É especificamente o conceito “lugares de servicio”2 que me interessa aqui.

Jeff Medeiros. Ferramenta, 2020. Metal, maneira e concreto.

Se as pessoas são vistas como pessoas de serviço, seus corpos são como ferramentas a serem utilizadas para o trabalho. A perspectiva que proponho é pensar a estrutura desse lugar social periférico do qual me enuncio. Não há qualquer intenção em pensar o trabalho como algo negativo, pelo contrário, o trabalho é um ato de amor e o amor não é sentença, nem fardo que se carrega por nascer aqui, mas é pão que se divide por quantas bocas tiverem fome. O que condeno é a exploração e o entendimento de que determinados lugares só possuem força de trabalho a ser subjugada, tendo suas epistemologias e suas produções de vida negadas e suas produções de vida negadas, o que colabora, no fundo, com um imaginário equivocado de certa inércia intelectual da periferia. No entanto, essa negação não consegue impedir a produção de vida em São Gonçalo; ainda que a névoa de apagamento insista em nos esconder, nosso canto é o sopro que dispersa a cortina de fumaça.

Chamo de canto os mais variados meios que as pessoas usam para proferir seus discursos de existência. Falo principalmente sobre os meios que são arte e educação, não por entender essas formas de discurso como melhores que outras, mas por estar empiricamente inserido nesse universo. Sou professor de História (leciono para todas as turmas de nível fundamental e médio), sou músico (adoro poder dizer que toco forró na noite gonçalense com meu trio chamado Seu Ivo), também sou artista visual e apresento uma parte da minha produção aqui, neste artigo. Logo, me sinto muito mais seguro em explorar esse lugar.

Trio de Forró Seu Ivo na Praia das Pedrinhas em São Gonçalo – 2019. Da esquerda para direita – Romeu Silva, Ivo Mendonça e Jefferson Medeiros.
Trio de Forró Seu Ivo no evento Ocupa Sound em São Gonçalo.

Certa vez estava acampando em Lumiar-RJ, no Camping do Arthur. Eu estava com meu pandeiro, o que despertou a atenção de Arthur Trindade Gonzaga Filho, o “Seu Arthur”. Ele me perguntou de onde eu era, quando falei, ele disse conhecer bem São Gonçalo, disse ter andado tudo isso aqui a cavalo. Para completar, falou algo que jamais esqueci: ele disse que São Gonçalo era o município com mais músicos por metro quadrado do Brasil. Isso foi tão satisfatório para mim, que de imediato guardei como verdade. Talvez nem seja uma verdade estatisticamente comprovada e com reconhecimento científico, mas eu sei bem como essa referência positiva me fez bem, moral e psicologicamente. Seu Arthur criava cabras em seu sítio, produzia queijo caprino e, ao menos até 2014, possuía o recorde de barba brasileiro, com 93cm. Ora, um rosto que carrega as marcas do tempo, um olhar gentil e longas barbas brancas merece ser ouvido com respeito.

O fato é que outros entendimentos generalizantes sobre São Gonçalo, principalmente ressaltando aspectos de violência, são reiteradamente reproduzidos como verdade. De fato, sofremos com a violência urbana produzida pela desigualdade social que assola as periferias do mundo. Então, quando ouvi essa afirmativa sobre meu lugar, me envaideci. Pensei: nós, cantadoras e cantadores, batucadoras e batucadores, tocadoras e tocadores estamos sendo vistos. Apesar de uma receita irrisória para a cultura, impossibilitando investimento consistente na área, aqui se produz com garra, coragem e de forma independente diversos eventos culturais. Tais como Ocupasound e Efeito Colateral, que são eventos organizados por pessoas movidas pela esperança e que promovem debates políticos e manifestação artística de diversos segmentos. Além das diversas Rodas Culturais em toda cidade.

Conheço tantas e tantos artistas espetaculares daqui, que não conseguiria enumerar sem cometer injustiças de não citar alguém. Dividimos nosso fazer artístico com outras modalidades de trabalho, poeta pedreiro, artista plástico inspetor escolar, cantora vendedora, violonista técnico de eletrônica, enfim, um lugar de vida.

Nesse contexto, falo dos que também sou, dos escondidos que se fazem vistos, não por saírem na luz, mas por serem essencialmente a luz, por serem o sol de sua própria existência e da existência de seus pares.

Quando digo que falo dos que também sou, é por fazer parte desse lugar social que se enuncia autonomamente, negando interpretações exteriores a nós sobre nosso lugar. Esse processo de produzir um discurso autônomo sobre si é o que compreendo como uma emancipação ontológica e epistêmica, que caminha na direção da decolonização do ser. Compreendendo a colonialidade como a estrutura de poder que permanece mesmo após colonização. A decolonialidade, por sua vez, seria o esforço de superar essa ordem de domínio remanescente do período colonial. Todavia, não se trata de uma teoria, é antes uma esforço constante de não se deixar levar pela retórica da estrutura de domínio.

Jeff Medeiros. Sapata, 2020. Concreto, metal e bota.
Jeff Medeiros. Eh, Pai… 2020.

Pois aqui estou, produzindo com arte uma enunciação desse meu lugar, negando o véu que teima em querer encobrir a vida do lado de cá. Pois quem nos desvelará, se não nós? Assim, não me interessa nesse caso ser visto isoladamente, me interessa ser visto como parte fruto de um lugar social que deve ser visto, me interessa que o meu discurso seja o entrelaçamento das experiências coletivas.

Reitero de que não há nada de errado com o trabalho, reitero, me sinto orgulhoso em saber que as pessoas daqui erguem casas e pavimentam ruas, que são as veias da cidade, sinto orgulho de que nos sustentamos apesar dos pesares. Mas anuncio que ter orgulho em trabalhar não é se resignar perante a exploração, ou aceitar que nosso lugar seja submetido à condição de quartinho, onde as ferramentas são depositadas após as obras.

Atravessar técnicas e instrumentos da construção civil com a arte, e a arte pela construção civil, é como utilizar de um argumento para enunciar duas formas distintas de fazer a manutenção da vida, a arte e a construção. Se, por um lado, trata-se de anúncio da existência, por outro, é reiterada denúncia das condições de vida experimentadas. Sei que sou movido pela utopia, é esse o combustível que quero compartilhar. Criar esse entrelaçamento entre as artes e os ofícios é como dizer: ei, eu te vejo e sinto a sua existência como minha. Assim, sendo o discurso de alegria ou dor, será coletivo.

Jeff Medeiros. Obra Embargada, 2020. Tijolo.

São Gonçalo não é igual a nenhum lugar do mundo, mas sei que também não é diferente de outras regiões periféricas ricas de vitalidade. É essa realidade que aproxima socialmente os que estão geograficamente distantes, que constitui o lugar social. Desses lugares, inevitavelmente, experimentamos a vida de maneira distinta. Daqui enxergamos com mais nitidez as falhas que vão dos alicerces ao telhado dessa enorme construção que é o Brasil. Sentimos os transtornos de viver em cômodos construídos clandestinamente em uma obra embargada. As mazelas sociais, as feridas da colonialidade, que, embora nunca tenham sido ocultadas, desvelam suas infecções jamais tratadas cotidianamente. É possível perceber que as características de São Gonçalo não são uma especificidade somente daqui, mas uma herança colonial universal que rejeitamos diariamente, produzindo vida, mesmo espreitados pela morte. No livro Arquivo Pandemia escrevi que:

Obra Embargada (2020), é uma análise do que foi construído de forma abrupta, sem consentimento, através do genocídio, do estupro, da escravidão, da tortura. Ainda assim, essa construção seguiu e segue negando a reparação ao terreno. Portanto, essa meia-água segue inacabada, exposta ao tempo. Se tornando cada vez mais visível a fragilidade dessas paredes sem embolso, esfarelando a cada chuva, que são na verdade lágrimas da memória de um passado em aberto.3

Jeff Medeiros, Reforma, 2020. Balde e concreto.
Jeff Medeiros, Manhães, 2020.  Gesso, argamassa, vidro e café.

Aqui nós seguimos, é sempre um café, uma prece e segue caminho.

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Jeff Medeiros
Mestre em Estudos Contemporâneos da Arte pela UFF, graduado em História pela UERJ-FFP, especializado em Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileiras pelo IFRJ, artista visual, músico percussionista e professor de História, Sociologia e Filosofia.


1 MIGNOLO, Walter. Aiesthesis Decolonial, Artículo de Reflexión, Calle14, Revista de inverstigación en el campo del arte  volumen 4, numero 4, janeiro  – junho, 2010, p 10-25

2 Ibid. p. 23

3 Medeiros, Jefferson, “Obra Embargada” in Arquivo Pandemia vol 2, org. Casa Nova Maia, Andréia e Casa Nova, Vera. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2020, p,156