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Iñigo Manglano-Ovalle, Seven Thousand Cords (After Beuys), 2014, SAIC Sullivan Galleries. Foto: Tony Favarula

Vivenciando as histórias de Chicago

Mary Jane Jacob

Nesta edição, a convite de Jessica Gogan e Luiz Guilherme Vergara, tentamos representar a experiência de um programa sobre prática social em Chicago intitulado Uma prática vivida (A Lived Practice). É verdade que a internet consegue apenas registrar a imagem da arte e de tempos passados. Ela carece da emoção, da experiência real que vivemos na presença da arte e no estar juntos, que, no pensamento do filósofo John Dewey, pode ser transformadora. Vivências assim ampliam o nosso mundo e podem trazer as experiências dos outros para a nossa. De fato, para Dewey, a arte era a experiência, não os objetos ou ações, mas o que essas coisas causam em nós. Portanto, embora esta publicação seja uma imagem refletida da vivência real da exposição e da programação, cuja curadoria foi realizada por Kate Zeller e por mim, esperamos que ela possa propiciar uma nova experiência.

Nossa pesquisa abordou a prática artística socialmente engajada e, mais especificamente, o motivo de ser esta uma modalidade tão importante de trabalho em Chicago hoje. Para Dan Peterman, que participou da exposição, a arte de Chicago não existe “simplesmente para representar a cultura, mas para propiciar a possibilidade da cultura, onde a arte poderia ser mais como uma força social”.1 Para outro artista da mostra, Iñigo Manglano-Ovalle, “Chicago torna-se a sua consciência. A prática tem um significado especial aqui… extrapola nós mesmos, o objeto e a carreira.”2

 

À medida que prosseguimos, Dewey (1859 – 1952) e sua companheira de luta, Jane Addams (1869 – 1935), fundadora de um centro de assistência social, tornaram-se referências históricas. Os dois são amplamente respeitados entre os artistas e ativistas daqui, que se inspiram em seu senso de missão pessoal. A Chicago de Dewey e Addams era uma cidade gigantesca e moderna, cuja população sofria sob o peso do capitalismo industrial. Eles buscaram transformá-la em uma sociedade moderna segundo os princípios da igualdade e da justiça, tornando Chicago um modelo de mudança social para o mundo. Nosso processo é de diálogo com os artistas, e descobrimos que os artistas com quem trabalhamos compartilhavam desses mesmos valores. Ligados pelo objetivo, eles valorizavam o raciocínio de Dewey de que “a clara consciência de uma vida em comunidade, em todas as suas implicações, constitui a ideia da democracia”.3 Essa noção deu origem ao título da exposição, Uma proximidade da consciência: arte e ação social.

Morgan Puett, <i>HumanUfactorY(ng) Workstyles: The Motion Journals of Excerpts from the User’s Guide to Mildred’s Lane.</i> A costume drama of the everyday, 2014, SAIC Sullivan Galleries. Foto: Tony Favarula
Morgan Puett, HumanUfactorY(ng) Workstyles: The Motion Journals of Excerpts from the User’s Guide to Mildred’s Lane.
A costume drama of the everyday
, 2014, SAIC Sullivan Galleries. Foto: Tony Favarula

Na exposição, quisemos captar como os artistas vivem a prática social hoje – de que forma sua pesquisa, criação e vida são uma só coisa. A contribuição de Kate Zeller aqui busca expressar a vitalidade da obra dos artistas e dos muitos programas que ocorreram em torno disso, ou seja, as formas como os artistas e as pessoas da comunidade vivenciaram a mostra enquanto ela esteve aberta. Ao nos voltarmos para o trabalho de Dewey e Addams no final do século XIX, quisemos também entender o papel que a história de Chicago desempenhou na evolução da arte que hoje chamamos de prática social.

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J. Morgan Puett, HumanUfactorY(ng) Workstyles, com a réplica da mesa de Jane Addam em Hull-House, 2014, SAIC Sullivan Galleries. Foto: Tony Favarula

Nosso processo de trabalho e de localização de significado tomou muitas formas. Uma delas foi o Chicago Social Club, reunião bem casual, que também funcionava como catalisador crítico para que profissionais locais pudessem se reunir ao longo de dois anos e, enquanto escutavam artistas, designers e curadores falarem sobre seus projetos, compartilhar um espaço acerca de questões da prática. Tenho o prazer de dizer que Gogan e Vergara estiveram entre os apresentadores-interlocutores. Também questionamos se uma exposição seria suficiente. Sabíamos, por experiência, que, em certas ocasiões, saímos de exposições dizendo: “Essa mostra teria sido melhor como livro”. Sendo assim, refletimos sobre a necessidade de um livro que contasse uma história maior do que uma exposição poderia contar – e que, ainda assim, fosse uma experiência viva – e testamos essa ideia com quatro pessoas da comunidade artística de Chicago: Abigail Satinsky, Stephanie Smith, Daniel Tucker e Rebecca Zorach. Nelas encontramos rapidamente uma equipe de editores e juntos nos lançamos numa troca ao longo de um ano, pensando as décadas, protagonistas e questões desde os anos 1880 até o presente e examinando as diversas formas como os artistas trabalharam para efetuar mudanças e melhorar a vida para si próprios e para os outros.

Também havíamos observado em campo o crescimento de uma comunidade internacional em torno da prática social que ansiava por novas ferramentas. Alguns buscavam diálogo e solidariedade para seguir em frente; outros procuravam precedentes para entender a trajetória desse trabalho para que não fosse considerado um estilo artístico passageiro. Ao ampliar o discurso, livros e revistas on-line como esta desempenharam um importante papel. Contudo, queríamos também abrir o discurso da prática social para que ela pudesse ser vista como uma forma enraizada, constante e necessária na qual arte e sociedade têm se ligado ao longo do tempo. O projeto resultante – a série Chicago Social Practice History – oferece um entendimento contextual profundo da prática social como trabalho baseado no local, por meio de um estudo aprofundado, localizado, de Chicago. Esses cinco volumes tornaram-se um ponto fundamental do programa Uma prática vivida.

Como a nossa história era Chicago, precisávamos traçar um retrato da cidade. Sabendo que não existe uma única Chicago, Institutions and Imaginaries, realizado pela editora convidada Stephanie Smith, nos leva a alguns espaços idiossincráticos dentro das instituições da cidade e nas mentes de escritores – pois o imaginário tem o poder de definir um lugar tanto quanto ou mais que o ambiente construído.

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Institutions and Imaginaries. Capa do Chicago Social Practice History Series. Design: Corey Margulis

Chicago foi um ato de invenção: uma cidade totalmente imaginada ao estilo americano. Naquela época inicial, Addams e Dewey foram criadores de instituições. A Hull-House, fundada por Addams em 1889, proporcionou refúgio e recursos de todos os tipos para uma população americana emergente que havia vivenciado uma ruptura de seu passado cultural, junto com a devastação causada pela revolução industrial nos indivíduos e suas famílias. O Laboratory School, Colégio de Aplicação da Universidade de Chicago, fundado por Dewey em 1896, buscava definir a educação como aprendizado por meio do fazer, centrado na criança, buscando determinar padrões para a nação e abrindo caminho para futuros pensadores-praticantes, como Paulo Freire. Na virada do século XX, quando Dewey e Addams se aventuravam em seus projetos mais ousados, a sociologia moderna também estava entre as invenções geradas por eles. Suas reformas dos sistemas educacional e de justiça criminal, ao lado da defesa dos direitos dos trabalhadores, das crianças e das mulheres, também marcaram a criação de instituições por eles aqui. É importante observar que, em tudo isso, eles acreditavam no poder da arte para realizar a mudança pessoal e social. Tanto Addams quanto Dewey viam a arte como algo essencial para uma vida bem vivida, uma forma de aprofundarmos a consciência de nós mesmos e do mundo à nossa volta, de praticar a empatia pelos outros e, ao cultivarmos a imaginação por meio da arte, de pensar um caminho melhor.

A fundação dos museus, bibliotecas, universidades e escolas públicas de Chicago fazia parte da nova sociedade que eles imaginavam, mas hoje existe uma ecologia mais ampla, que extrapola as instituições culturais e educacionais ditas mais importantes e que, como os clubes, associações e atividades que Addams e Dewey lideraram, incluem projetos independentes e iniciativas conduzidas por artistas. Em Chicago, o mundo artístico sempre teve a ver com associação, algumas formalmente denominadas, outras prontas para serem acessadas quando necessário ou para alimentarem nossa fé simplesmente por sabermos que elas existem. Esta é a possibilidade de comunidade que pode ocorrer por meio de uma rede de apoio.

Support Networks, assinado pela editora convidada Abigail Satinsky, parte dessa história de ação dos artistas, analisando os mecanismos que eles empregaram para estabelecer uma comunidade da prática. O livro expressa a história humana por trás da nossa motivação para fazer arte, o que a exibição da arte propicia para o diálogo comunitário e por que compartilhar arte com um público que não frequenta exposições é importante. Sob vários aspectos, as mesmas necessidades que originaram as ideias de Dewey continuam presentes. Na introdução do livro, Satinsky evoca o entendimento de John Dewey acerca da comunidade como, ao mesmo tempo, uma forma democrática de ser e um modo de praticar a democracia continuamente. Esse pensamento encontra relevância hoje nas alianças sociais e artísticas de Chicago. Em todos os casos encontrados nesse volume, o leitor sente a motivação dos protagonistas à medida que estes vivem na prática os valores da diversidade, igualdade e justiça social que tanto prezam. São valores arraigados, que encontram sua linhagem nos experimentos de Addams e Dewey, e os artistas, como eles, ainda passam por processos difíceis para chegar aos seus fins. Por conseguinte, seu propósito precisa ser claro e maior do que eles mesmos.

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Support Networks. Capa do Chicago Social Practice History Series. Design: Corey Margulis

Esta foi a experiência pessoal de Satinsky, que, como Addams, encontrou criadores e pensadores com ideias afins em Chicago, em seu caso, na sala de aula, como aluna do School of the Art Institute. Em 2007, como integrante de uma turma de novos administradores artísticos, ela criou o InCUBATE (Institute for Community Understanding Between Art and the Everyday) para repensar como a captação de recursos poderia funcionar se fosse abordada criativamente. O projeto Sunday Soup, uma reinterpretação da sopa para os pobres da era de Addams e Dewey, decolou, com mais de 60 versões em todo o mundo.

Pode parecer uma anomalia, um desvio em sua especificidade, termos dedicado outro volume ao assunto da arte contra a lei, que a editora convidada Rebecca Zorach explorou em Art Against the Law. Poderíamos ser levados a indagar se esse assunto teria muito “de Chicago”. Ou se seria apenas uma condição das nossas cidades. John Dewey enxergou a questão em seu tempo quando escreveu em The Public and Its Problems (1927): “As mesmas forças que promoveram as formas de governo democrático, o voto universal, representantes do poder executivo e legislativo escolhidos por voto majoritário também promoveram condições que interrompem os ideais sociais e humanitários que demandam a utilização do governo como um meio autêntico de um público inclusivo e fraternalmente associado.”4 Como condição social permanente, Dewey lembraria que desafiar e corrigir a lei e preservar os ideais sociais e humanitários é uma responsabilidade constante dos cidadãos numa democracia. Os artistas, como cidadãos e como criadores de arte, fazem exatamente isso.

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Art Against the Law. Capa do Chicago Social Practice History Series. Design: Corey Margulis

Arte, lei, justiça, resistência, restituição e reconciliação são todos aspectos interligados nesse volume denso e profundamente apaixonado. Como tema histórico, ele traz lutas como a Revolta de Haymarket de 1886, evento cujas repercussões para os direitos dos trabalhadores são revividas nas comemorações do 1º de maio no exterior, enquanto nos EUA a lei distancia seus cidadãos desse momento marcando o Dia do Trabalho em setembro. A lei como tema da arte encontra artistas trabalhando em prisões, instituindo programas pelos quais eles e os detentos podem interagir, usando essas iniciativas para promover a conscientização pública e utilizando o sistema penal para fins benéficos e não só punitivos. Além disso, conforme Kate Zeller conta aqui, arte e lei permearam Uma prática vivida – desde Laurie Jo Reynolds e Tamms Year Ten na exposição Uma proximidade da consciência até Última refeição, do Lucky Pierre, na sala de jantar dos residentes do Hull-House Museum.

Por fim, temos Immersive Life Practices, volume proposto e realizado por Daniel Tucker. O livro transita dentro e fora da área geográfica de Chicago para falar da profundidade do que significa viver sua própria prática. Como pode um artista viver sua arte quando a arte é uma prática de vida? A vida pode ser uma prática artística para os demais? E se a arte é uma prática social, a vida não é uma prática social também? Essas noções estão resumidas na missão fervorosa de John Dewey em prol da arte como um caminho para conquistar uma vida bem vivida. Essas questões tornaram-se também reflexões de pesquisa que levaram ao simpósio Uma prática vivida. Com esse trabalho, buscamos injetar alguns outros pensadores no atual discurso teórico e na práxis da prática artística socialmente engajada: Lewis Hyde, Crispin Sartwell, Ken Dunn, Alistair Hudson, Wolfgang Zumdick e Ernesto Pujol. Acima de tudo, com o conceito de “uma prática vivida”, buscamos engendrar uma compreensão da prática social como forma de estar no mundo.

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Immersive Life Practices. Capa do Chicago Social Practice History Series. Design: Corey Margulis

Vivemos na experiência e por meio dela. Nas obras que os artistas criam, eles dão vida à experiência das outras pessoas, o que lhes permite encontrar significado – ao menos era assim que Dewey entendia a questão. Mas para nos engajarmos por inteiro, precisamos ter uma mente aberta e criativa, acreditava Dewey. Com esse simpósio, reunidos ao longo de três dias, buscamos cultivar um espaço aberto, onde os presentes poderiam se entregar à experiência de pensar de um modo novo. Como estímulo e para catalisar a reflexão, pedimos aos principais palestrantes que nos ajudassem a desestruturar justamente o que é a arte e quem é o artista, investigando, paralelamente, questões essenciais acerca da relação do indivíduo com a sociedade. A vitalidade das ideias dos palestrantes nos motivou a apresentá-las como um volume final e o último capítulo deste projeto sobre Chicago, A Lived Practice.

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1 Artista em conversa com MJJ e KZ, verão de 2013.

2 Ibid.

3 “The clear consciousness of a communal life in all its implications constitutes the idea of democracy”. John Dewey, The Public and Its Problems (New York: H. Holt and Company, 1927): 328.

4 “The same forces which have brought about the forms of democratic government, general suffrage, executives and legislators chosen by majority vote, have also brought about conditions which halt the social and humane ideals that demand the utilization of government as the genuine instrumentality of an inclusive and fraternally associated public.” Dewey: 109.