
Corpo, gesto, afeto: Projeto com mulheres de Talavera Bruce
Alice Poppe, Caroline Valansi, Tania Rivera e Tato Taborda
Registro do diálogo ocorrido no dia 29 de agosto de 2024, que juntou artistas e pesquisadores das rodas de conversas “Gesto de compartilhamento: uma experiência corporal com mulheres privadas de liberdade”, na penitenciária feminina Talavera Bruce, e “Áudionutrição: objetos sonoros, alteridades e a partilha de escuta”. Ambas foram propostas como parte de um ciclo de rodas coordenado pelo professor Luiz Guilherme Vergara (UFF/PPGCA) para a 6ª Reunião Internacional da RACS “Múltiplas Vozes em Defesa das Vidas, Saúde Única, Arte Plural e Formação Humana”
Tania Rivera: É uma alegria fazer parte desta mesa, cujos participantes são importantes e queridos parceiros: Alice e Caroline, que compõem a equipe do projeto Corpo, Gesto e Afeto,projeto com mulheres do Talavera Bruce, e Tato Taborda, querido colega que adoro escutar sempre. Gostaria de propor que Tato falasse sobre o que ele chama áudionutrição, após a apresentação da Maria Alice Poppe e Caroline Valansi, para que possamos em seguida relacioná-la à nossa experiência no presídio. É engraçado como as coisas realmente vão por ressonâncias, que é uma palavra importante pro Tato também. Inclusive, o título de seu livro — muito lindo, que recomendo — é Ressonâncias: vibrações por simpatia e frequências de insurgência.
Por uma dessas curiosas ressonâncias, Alice e eu justamente pensamos em trazer aqui algo que tem a ver com escuta, para começarmos a discussão sobre nosso projeto que, em 2023, contou também com a participação de Natasha Pasquini e Beatriz Veneu e, em 2024, começou a ter também a Taianne de Oliveira como integrante. Nossa proposta é fortemente experimental e não encontra apoio numa teoria e nem mesmo em uma prática já constituída. Dessa forma, o projeto está sendo, para nós, mais uma prática instituinte do que já instituída. É algo que começamos, Alice e eu, sem termos uma teoria que nos embasasse ou um programa já estabelecido em termos práticos e poéticos. E talvez isso seja, justamente, o âmago da proposta, como uma atitude ou uma postura clínico-política.
E o momento de escuta múltipla e compartilhada com o público que esta mesa-redonda nos oferece é muito importante para nós, para tentarmos agora compreender, de maneira plural, o que estamos fazendo. Eu dizia que o projeto teria a ver com escuta porque, em uma conversa com a Alice sobre outro projeto encaminhado por ela a partir do nosso, me veio a ideia de falar em uma coreoescuta das propostas corporais, na qual movimentos e gestos seriam compreendidos na chave da escuta. Tal proposta talvez possa ser articulada à noção de áudionutrição que Tato Taborda nos apresentará.
Alice Poppe: Bom dia, gente! Obrigada pela presença de vocês aqui. É muito bom estar junto de Tania e Caroline, parceiras de luta e afeto no projeto que desenvolvemos na penitenciária feminina Talavera Bruce, e do Tato, com quem venho trabalhando em diferentes parcerias de cunho artístico nos últimos anos. Eu sou artista da dança e professora dos cursos de dança da UFRJ e sou também pesquisadora-colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes.
Importante dizer que esse projeto do qual estamos tratando hoje se inicia pelo afeto. Eu e a Tania começamos a conversa sobre esse projeto numa conversa numa mesa de bar com o Evandro Salles, que, na época, estava como curador do Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF)… E foi a convite do CCJF que implementamos o projeto e, com muito vigor, criamos uma circunstância para poder desenvolvê-lo. O processo de implantação do projeto junto à Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP) e o CCJF foi longo, atravessamos muitas burocracias… a Carol está desde o começo nessa travessia. Desde quando de fato iniciamos, percebemos o quanto foi muito transformador em nossas vidas.
O nome do projeto Corpo, Gesto e Afeto mostra como o afeto é uma dimensão importante nessa construção. Eu tenho pensado que, apesar de termos escrito e formalizado um desenho do projeto para ingressarmos nessa empreitada, vimos que ele é construído a cada dia que acontece no chão do presídio. Há, sobretudo, uma escuta daquele território novo para nós, o Talavera Bruce, esse presídio feminino em Bangu que estamos frequentando às segundas-feiras. A nossa preparação é realmente estarmos disponibilizados, em estado de escuta, para o que vamos propor ali. Acho que esse é o nosso propósito.
Inicialmente tentamos programar um pouco mais como seriam as práticas dia a dia com as detentas, mas, ao longo do processo, entendemos que as práticas eram criadas junto com elas lá naquele espaço, naquele chão. Então, percebemos uma escuta afinada ao território. Eu, por acaso, estou no meio de um curso na UFRJ que venho ministrando junto com a Adriana Pavlova sobre a obra da coreógrafa Lia Rodrigues. Nesse curso passeamos pelas obras e também por entrevistas com a coreógrafa. Em uma das entrevistas, Lia menciona uma coisa interessante acerca do trabalho que ela vem desenvolvendo há alguns anos na Favela da Maré. A entrevistadora lhe pergunta: “Qual foi o seu projeto de ingresso lá no Centro de Artes da Maré e como você o elaborou?”. Ela respondeu: “Eu não tinha nenhum projeto formatado inicialmente, eu cheguei lá para escutar aquele território e entender o que naquele território eu podia fazer”. Eu percebi que esse modo com que a Lia Rodrigues junto a sua companhia de dança se aproximou da Favela da Maré tem afinidade com o modo como estamos nos aproximando do Talavera Bruce e do ambiente de um presídio com todas as suas características muito particulares.
É uma escuta do espaço desde o princípio. A começar pela própria entrada no presídio, que não é uma coisa tão simples assim. Em geral, levamos muito tempo na entrada. A cada vez que chegamos tem guardas diferentes que fazem perguntas díspares sobre o que se trata o projeto Corpo, Gesto e Afeto. São experiências muito loucas que vivemos até que de fato ingressamos no espaço onde encontramos as detentas. É um percurso longo, são muitas coisas que acontecem. Então, sempre estamos muito atentas a isso — como entrar, como se portar, o que dizer e o que não dizer, como se comunicar com aquelas pessoas. É um desafio diário, toda vez é diferente, até porque as pessoas também são diferentes, estados emocionais diferentes e nós vamos construindo essa passagem de forma muito afetuosa, sobretudo entre nós. Isso de alguma maneira resume o jeito que abordamos esse trabalho inicialmente.
Caroline Valansi: Quero agradecer por estar aqui hoje a todas as pessoas envolvidas no projeto. Sou artista e estou finalizando meu mestrado em Artes na UFF, sob orientação da Tania, a quem também quero agradecer, pois fui eu quem me convidei para esse projeto.
As prisões ocupam um lugar no imaginário social frequentemente representadas de forma estereotipada através da cultura midiática, do senso comum e de discursos que pouco refletem a complexidade da vida em seu interior. Estar dentro de uma penitenciária produz uma experiência própria sobre o que acontece ali. Desde minha primeira visita, percebi que seria uma experiência bem diferente das que já tinha vivido ou proposto.
Além disso, este momento é especial porque é a primeira vez que estamos falando juntas sobre o trabalho. Como não fotografamos, não fazemos registros e não podemos entrar com celulares ou câmeras, a oralidade se torna nossa principal ferramenta para transmitir essas experiências — o que nos desafia a narrar sem recorrer às imagens, tão presentes em nossa prática cotidiana. Esse projeto também se conecta profundamente com o que venho desenvolvendo há anos. Embora minha trajetória seja na arte, eu trabalho em constante diálogo com profissionais da saúde. Nesse cruzamento, encontro novas formas de escuta e criação, onde o corpo, o gesto e o afeto se tornam matéria viva de experimentação.
Tato Taborda: É tudo sobre escuta.
Tania: Tudo.
Tato: O termo áudionutrição tem a ver um pouco com esse campo expandido da escuta que inclui, mas também transcende, o fisiológico. O termo refere-se a um deslocamento cognitivo da visão como canal primordial para a audição, considerando os atributos da escuta como receptividade, vulnerabilidade, disponibilidade, em defesa ao que está no mundo. Na medida em que o ouvido não possui pálpebras, não podemos selecionar porções do que nos cerca, fechar os olhos, virar a cabeça ou mesmo enterrar no chão como fazem os avestruzes, pois, ainda assim, escutaríamos. Ouvindo os relatos de vocês, e a gente vai ouvir muito mais, eu lanço aqui a reflexão de como o som das coisas, o som do mundo expresso traduz, dá notícias sobre o que efetivamente está acontecendo no mundo, mais do que aquilo que se dá a perceber na superfície do visível. Trago essa reflexão para que a gente, a partir dessa autoconsulta, comece a investigar o quanto o som das coisas expressa o que efetivamente está acontecendo com uma profundidade e complexidade inacessíveis à visão. Então, a ideia de uma cognição que tenha a escuta como eixo vai, necessariamente, constituir subjetividades de uma forma diferente daquela que se dá com a visão como canal cognitivo primordial condutor. O vetor da visão é direcional e o ato de olhar é tão arbitrário na perspectiva de quem olha quanto limitado pelas superfícies que se interpõem entre o sujeito que olha e o objeto olhado. Eu não vejo o que está atrás dessa parede, mas eu posso escutar o que acontece do outro lado. Queria então trazer essa primeira reflexão de o quanto o som expressa, denuncia, informa, de uma forma especial, sobre a natureza do que acontece e, em alguns casos, talvez de forma mais detalhada e profunda. Quando a Tania trouxe a ideia da…
Tania: … coreoescuta.
Tato: Que é um termo fascinante e se conecta com o que, em algum momento, a Alice tinha mencionado como…
Alice: … uma rádio-coreografia.
Tato: Isso, uma rádio-coreografia. Então não é permitido entrar com câmera no presídio mas pode-se gravar?
Alice: A princípio podia, mas agora estamos tendo vários problemas com isso também no outro presídio, no outro projeto que estou envolvida.
Tato: Talvez essa seja uma construção que possa se fazer, imagino que no primeiro momento deve haver uma restrição total mas, acredito, há um caminho aí para explorar…
Tania: No Talavera Bruce não podemos entrar com nada, mas é interessante você nos incitar a pensar se realmente nada é negociável. Alice começou a contar sobre a burocracia da vigilância e do encerramento, que não deixa de ser violenta, ainda que não tenhamos passado por situações concretas de agressão. A própria gestão burocrática carrega uma violência que tende a nos engessar, por isso é valiosa sua incitação a que busquemos um espaço de negociação.
Tato: Acho que isso vai vir com a intimidade, com a continuidade, na medida em que você conseguir de alguma maneira se conectar com os indivíduos que estão ali, além das pessoas jurídicas e das funções — de inspetoras, diretoras ou guardas —, acreditando que existem cordinhas no encordoamento interior dos indivíduos que podem ser postas em vibração a partir da confiança que vocês vão conquistando.
Alice: Mas é um paradoxo, porque aparentemente eles querem o trabalho, e eles estimulam que a gente esteja ali e parecem gostar que a gente esteja ali, e ao mesmo tempo parecem não querer o trabalho. Tem alguma coisa que ocorre na instituição relativa às guardas e a todo o sistema prisional que, de algum modo, querem impedir a efetivação do trabalho. Talvez por perceberem a ação sensível que ele pode vir a provocar naqueles corpos.
Tato: Porque é uma subversão, você subverter uma ordem que até então é muito clara. Imagino que essas dinâmicas naquele espaço gerem um grau de imprevisibilidade enorme, não a ponto de provocar uma fuga em massa, mas, de modo mais sutil, mas não menos poderoso, de modificar as relações na micropolítica daquela comunidade.
Tania: Isso, inclusive, se apresenta no presídio de modo nítido, é o que mostra a violência do punitivismo estruturante da instituição. A prisão é um aparato de punição. Ainda que ela responda a uma demanda oriunda da justiça federal para humanização dos presídios — e é curioso que se fale em humanização porque isso indica claramente o quão desumanizados já se considera que eles estão — e isso se traduza no interesse por projetos como o nosso, na prática há uma resistência, que por vezes se explicita na fala de uma guarda sobre as detentas “não merecerem nada”, por exemplo.
Alice: Eu já ouvi de uma guarda no presídio: “O que você está fazendo aqui? Essas mulheres são muito violentas, elas não merecem nada!”. Com isso elas querem mostrar que não faz sentido estarmos ali fazendo um trabalho que elas não merecem. Tem a ver com essa lógica punitivista que é imposta ali e mais forte que elas.
Tato: Esses sensores ou não existem ou estão obstruídos, mas, talvez, quem sabe em algum momento possam se pensar em alguma dinâmica a ser proposta para as guardas…
Alice: A gente já pensou sobre isso. Acho que seria um ótimo passo!
Tato: O desafio dessas dinâmicas é de propor caminhos para desfazer esses bloqueios, esses dispositivos abafadores de vibratilidade que existem naqueles corpos por questão de sobrevivência. É totalmente compreensível supor que quem habita esse ambiente feche esses receptores para sobreviver psicologicamente porque é tudo muito duro. Ao final do turno, a pessoa volta para casa, tem filho pequeno, família, pets, planta para regar… imagina só esse deslocar? Talvez, para acessar mais um pouquinho esses indivíduos que cuidam de implementar o encarceramento, não sei em que medida, e eu sei que isso é difícil, pois vai haver resistência, mas é um modo de talvez fazer uma atuação mais delicada e aprofundada nas crostas defensivas postas pelas funções e, quem sabe, começar a dissolver essas barreiras de autodefesa, esses dispositivos abafadores. Não sei, é um desafio imenso e imagino que vocês já devem ter pensado nisso em algum momento.
Tania: Precisamos de ajuda para pensar, justamente.
Público: E qual é a recepção das detentas com esse projeto? Como elas recebem isso?
Alice: Nós trabalhamos com duas celas: uma cela que é do “Seguro”, cujas mulheres são rejeitadas dentro do próprio presídio e não podem se misturar com as outras de outras celas porque cometeram crimes hediondos, então elas são apartadas; e uma outra cela com mulheres grávidas, onde há uma grande circulação. As grávidas muitas vezes ainda não foram sentenciadas, outras vão ter seus bebês e mudam de complexo. As do “Seguro” são afetuosas, recebem a gente com muito carinho, abraçam, agradecem toda vez, muitas vezes. Há uma boa recepção e um desejo de desenvolver algo, mas também muitos conflitos internos. Apesar de o “Seguro” ser um grupo que está a mais tempo no presídio e ter mais regularidade, eventualmente vem uma ou outra diferente e percebemos logo quando há uma rejeição e daí alguns conflitos surgem, ou situações delicadas de recolhimento. No geral, a recepção é muito afetuosa, elas mergulham nas propostas e são bem disponíveis (e divertidas). No caso das grávidas é um pouco mais difícil porque é esse grupo com muita circulação que, como eu disse, algumas saem para ter os bebês, outras são soltas. É uma circulação enorme. Às vezes trabalhamos com duas ou três, e na segunda passada, por exemplo, tinham quinze grávidas. Em geral, as grávidas são mais desenergizadas pela condição da gravidez e tudo o que isso implica: dor de cabeça, cansaço, pressão baixa e tal. E uma coisa que a gente nem precisa entrar em tantos detalhes como é estar grávida num lugar confinado, que não bate sol e ficam deitadas praticamente o dia inteiro. Muito difícil! Nós também ficamos desenergizadas e mais cansadas no trabalho com elas, precisamos injetar mais energia do que no “Seguro”. Sempre fazemos essa comparação, é inevitável. No “Seguro” parece que realmente elas são muito criativas, mais ativas, e as grávidas menos, por tudo que já disse, e com isso fazemos um trabalho mais ralentado. É quase como uma busca por um corpo que está despedaçado.
Caroline: Acho que também podemos dizer que as do “Seguro” nunca saem. Elas ficam à margem da dinâmica do presídio, como no Dia das Mães, por exemplo, quando não participam das comemorações. Permanecem sempre apartadas.
Tania: Apartadas também de atividades que as demais presas podem frequentar e que geram redução da pena. Existe uma escola e uma espécie de clube de leitura, por exemplo, assim como atividades religiosas, cultos. Mas às detentas do “Seguro” são oferecidas poucas atividades, e esse foi o principal fator para escolhermos trabalhar com elas.
Alice: Elas são a única cela do presídio que não frequenta a escola. Isso diz muita coisa.
Tania: Elas estão presas dentro da prisão.
Tato: Não frequentam a escola?
Caroline: Algumas sim. A diretora da prisão nos contou um relato pessoal sobre sua própria experiência e como deseja mudar certos padrões. Ela nos disse que já havia sido guarda e, naquela época, acreditava que as presas deveriam permanecer encarceradas, que a punição era a única opção. Com o tempo, sua perspectiva mudou. Estudou Direito, tornou-se professora e voltou para trabalhar no Talavera. Agora, como diretora, entende a importância de oferecer algo que as ajude a sair da cadeia de uma maneira diferente — estudando é uma delas, tendo outras oportunidades. Ela fala do próprio processo de transformação, de como viveu o modelo repressivo, mas, ao longo do tempo, foi descobrindo outras possibilidades. Dentro das limitações desse sistema, busca maneiras de proporcionar algo diferente para essas mulheres.
Alice: E as próprias detentas falam bem da atuação dela.
Caroline: Isso.
Alice: Isso já é um ponto positivo, como se ela quisesse de fato construir alguma coisa.
Caroline: No início do projeto, elas chegavam até a gente mais pela vontade de sair da cela do que, de fato, para se movimentar. Testamos diferentes abordagens para engajá-las, até que, aos poucos, foram compreendendo o propósito dos encontros. Algumas estão conosco desde o início, e a diferença é visível: hoje, elas mesmas fazem sugestões e incentivam outras a participar. Também é interessante observar essa trajetória de envolvimento. Trabalhamos muito com a desconstrução da palavra, criando passos espontaneamente e montando coreografias improvisadas.
Tania: Improvisação.
Caroline: No início, as detentas chegavam aos encontros com dificuldade de improvisação, presas dentro dos limites da própria criatividade. Muitas precisavam observar e copiar os gestos das outras para, aos poucos, libertar seus próprios movimentos. Com o tempo, quem já está há mais tempo no grupo desenvolve um repertório, faz sugestões e se move com mais liberdade. Já as recém-chegadas, muitas vezes, se sentem constrangidas. Trabalhamos bastante com essa questão do constrangimento. Elas hesitam, mas, aos poucos, se entregam: “Vou fazer, vou gritar, vou mexer o corpo…”.
Tania: Os códigos de conduta são muito restritos tanto sobre o que se fala quanto aos gestos.
Alice: Elas têm um modo de se locomover pelo presídio, elas abaixam a cabeça e fecham as mãos para trás. O corpo delas é coreografado numa perspectiva muito violenta que é do gesto de restrição e enclausuramento da expressão. É como se elas não fossem permitidas de abrir o braço, de olhar para cima, de respirar, de poder falar: “Ah, isso é terrível!”. Sentimos isso na última vez que propusemos um exercício de emissão das vogais com a expansão da respiração para estimular a criação de espaços internos no corpo, e vimos uma das mulheres…a Michelle, nossa! Vimos ela percebendo a criação destes espaços e a surpresa de escutar a própria voz! Ela é uma detenta muito propositiva, desde o começo notamos o movimento dela de puxar as outras, que lindo! E elas vão se sentindo autorizadas a estarem experimentando alguma coisa ali, expressando a voz, o corpo…
Público: Fico muito curiosa em saber como é o espaço lá e o que vocês fazem nesse espaço?
Alice: Trabalhamos normalmente num espaço chamado “Reconstruindo a liberdade”. É uma sala fechada, não muito grande. Eventualmente, trabalhamos num salão de visitas, uma varanda semiaberta que é muito dispersa por ter contato com o espaço de circulação de todas as detentas do presídio.
Tania: Uma vez, trabalhamos no gramado sob o céu.
Alice: Esse dia no gramado foi muito especial.
Tania: Foi muito especial mesmo. Naquele dia não havia espaço disponível pra nós, então indicamos que poderia ser em qualquer lugar, e acabamos trabalhando no gramado, sob o céu. Acredito que da próxima vez deveríamos propor ficar no gramado, porque elas já ficam extremamente presas. As mulheres ficaram absolutamente encantadas por estarem ali, mesmo sendo parte da prisão. Estávamos no espaço exatamente contíguo ao pavilhão delas, mas há um muro que não as deixa ver esse espaço. A descoberta do lugar onde elas estão confinadas, grande parte delas há anos, se deu nessa ocasião, no âmbito do projeto. Foi muito bonito ver elas olhando esse canto, olhando o céu e querendo estar ali, comentando: “Olha aquele gato”.
Alice: Tem muitos bichos, inclusive na última vez tinha um gambá. Na hora pensei que era um rato, foi um susto!
Tato: Tem aquele rabão de rato…
Alice: … vimos de frente, não deu pra ver o rabo…
Tato: … tem uma carinha muito simpática!
Alice: Desde o começo, eu e Tania pensamos na ideia de poder trabalhar uma ressignificação daquele espaço, de pensar formas de ocupar o espaço para além do confinamento, entendendo o que poderia ser a transcendência de um espaço confinado. Nesse dia, a céu aberto, debaixo de uma árvore, de alguma maneira tivemos um retorno sobre essa ressignificação do espaço, por elas poderem olhar o espaço de outra maneira e, assim, criar algum gosto de pisar naquele chão e olhar aquele espaço.
Tania: E isso quer dizer que o que a gente propõe, o que a gente leva é, na verdade, secundário…
Alice: Exato.
Tania: Porque diante da experiência de uma mulher que diz “olha, ali tem uma cabine”, e você sabe que aquilo está a três metros da cela onde ela vive cotidianamente, ou de uma mulher que vê o céu de repente — porque, como já dissemos, quando elas andam por ali têm que olhar para baixo… diante disso fica patente a importância dos gestos em nossa proposta.
Alice: Sim. Isso é só um pretexto.
Tania: Não é que não seja importante o que trazemos exatamente como proposta, mas o que acontece vai muito além disso e às vezes atinge outra escala. Por exemplo, acontece de as grávidas, ao chegarem na sala “Reconstruindo a liberdade”, onde está montada a estrutura básica de um salão de beleza, irem direto se olhar nos espelhos, e dizerem, surpresas: “Olha como cresceu a barriga!”. Então, nos damos conta de que elas não têm acesso ao espelho na vida cotidiana no presídio. E que o fato de o projeto propiciar o encontro com o espelho, especialmente para mulheres grávidas, talvez seja mais importante do que qualquer outra coisa que fazemos ali.
Então talvez se trate para nós não apenas de uma escuta dessas mulheres, mas das demandas que ali se apresentam sem nem mesmo serem enunciadas.
Alice: O nome do projeto diz ao que veio Corpo, Gesto e Afeto: pessoas que possam ser afetuosas com elas, que se permitam olhar para elas e estar atentas a elas. No geral, elas não são olhadas, tampouco cuidadas e, por isso, também, criamos uma conexão com elas de modo que elas vão se sentindo importantes. Alguma delas já falou uma vez: “Nossa, eu até esqueci que estava no presídio!”. De alguma maneira, criamos circunstâncias para que elas acessem o imaginário e até o corpo delas mesmo, de uma forma que elas podem realmente se deslocar daquele lugar e do modo como elas geralmente são vistas. Então, acho que olhamos elas de uma maneira diferente e nos preocupamos com elas. Levamos alguns objetos, como bolas, tecidos, elásticos, sacos, para sensibilizá-las. É algo que experimentamos. Brincamos com essa ideia de um objeto como dispositivo que auxilia no acesso ao corpo delas, de forma criativa.
Público: Seria legal se tivesse sempre gramado.
Alice: Seria ótimo.
Tania: Apesar de fazer muito calor, habitualmente — o presídio fica em Bangu, um dos bairros mais quentes da cidade —, o que impede estarmos diretamente sob o sol.
Público: Eu achei esse projeto muito interessante de verdade, muito bonito… porque realmente humaniza as pessoas privadas de liberdade, que a gente acaba desumanizando, esquecendo que por trás existe um ser humano.
Tania: Qual é o seu nome?
Tato: Julia Tavares, é caloura da turma de 2024.1.
Tania: Sim, Julia, você tem razão, é isso mesmo. Desde o início, em 2023, o projeto me fez pensar sobre isso, mas naquele primeiro momento eu estava fora do Rio, fazendo um Pós-Doutorado, e acompanhava a equipe por reuniões online que se davam após as idas ao presídio. Desde que comecei a participar efetivamente, se impôs a mim a pergunta: o que o projeto realiza? Ele “(re)humanizaria” uma situação de segregação e violência desumanizante? Estamos levando algo específico, ou será que oferecemos simplesmente nossa disponibilidade? Somos agentes disso, sim, agenciamos nossa disponibilidade — uma das poucas coisas de que a gente realmente se assenhora na vida é se dispor a ir para um lugar, estar ali com pessoas.
Não acho que a gente leve algo especial a elas, e talvez o projeto nos obrigue a pensar isso, um discurso diferente de “nossa, que legal, a arte está levando alguma coisa para essas pessoas”. Somos levadas a pensar de uma maneira mais sistêmica, situando também como parte do projeto a lida com o todo: o dispositivo do presídio, a burocracia do sistema prisional e do Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF), a burocracia da justiça, enfim, e inclusive a lida com essa abstração que se concretiza em instituições como essa, ou com a aberração que é a “justiça”, especialmente em um país injusto como o nosso. Estamos nos prestando a isso e, no fim, talvez elas façam mais por nós, de alguma maneira, do que nós por elas. Isso não quer dizer que o projeto não tenha valor e não faça diferença, mas se trata de uma questão ética: a recusa em se colocar na posição de um projeto que leva algo para pessoas necessitadas, quebrando a lógica de que temos algo que elas não têm e podemos lhes oferecer.
Tato: Legal, Tania. Ouvindo você falar eu fico pensando como é assim que eu me sinto como professor. Com você também não é a mesma coisa? No sentido de que, no fundo, mais do que levar algo, o que fazemos é criar ambientes que favoreçam conexões e trânsitos de percepções e saberes, em múltiplas vias e direções. Todas as vias têm chaves. Você leva algumas, que abrem portinhas que estão fechadas, mas você recebe outras que também abrem espaços inacessíveis de outra maneira porque partem de subjetividades diferentes da sua. Acho que o que vocês fazem no presídio não é muito diferente da disponibilidade de estar em determinado espaço como docente. Você não está apenas levando algo, você está apontando o dedo em várias direções para o que te move e, claro, nem todo mundo vai olhar para o que você aponta, mas para o seu dedo. Mas, ao mesmo tempo, pensando o espaço da sala de aula como dispositivo multidirecional, quem interage com você normalmente aponta para o que está fora do seu plano.
Tania: Te ouvindo me veio a ideia de que, além de pensar disponibilidade como o que se dá, também se deva pensar disponibilidade ancorada em certo despojamento. Não é que a gente tenha algo que vamos levar para elas. Às vezes me incomoda o fato de sermos as três mulheres brancas e de classe média supostamente levando algo àquelas mulheres, que, em sua maioria, são mulheres negras em situações de extrema precariedade sociocultural e econômica. Esta ideia me incomoda bastante.
Alice: Me incomoda também.
Tania: O que estamos tentando fazer, de uma maneira mais ou menos intuitiva, é criar um espaço de despojamento nosso, nesse improviso, entendendo que se trata do despojamento de uma posição de poder, na proposta de estar ali levando algo — a arte, o gesto, o afeto, a nossa presença.
Alice: É a criação de uma circunstância para aquele espaço. No princípio ficamos um pouco na dúvida até de falar de onde somos, o que a gente faz. Falamos muito pouco, porque entendemos que isso poderia criar um certo distanciamento hierárquico, o que poderia inibi-las de alguma maneira, como se estivéssemos no posto de passar um conhecimento, tendo em vista que esse é um projeto da universidade. Talvez tenhamos falado uma vez isso para elas quando perguntaram. Isso tem a ver com o que a Tania falou. E eu fiquei pensando que cada vez mais as nossas estratégias criativas são uma forma de criação junto delas. Buscamos mais o que elas podem trazer em termos de gestos do que levarmos gestos prontos. Por exemplo, desde o começo repetimos um exercício gestual a partir do nome delas, isso é muito divertido. Elas trazem gestos muito interessantes até quando se inibem de fazer o gesto, o que gera uma atitude corporal interessante, e elas percebem quando apontamos que a inibição já é o próprio gesto. Na semana passada fizemos uma coreografia a partir de gestos, organizamos filas para elas brincarem com o gesto de uma com a outra…
Tania: Uma fazendo o gesto e as outras imitando.
Alice: A coreografia foi criada por elas e ficou muito legal. Elas se divertiram tanto, elas riram por se surpreenderem que elas podem criar um movimento ou até uma coreografia.
Tato: Lembra aquela cena final do filme do Wim Wenders sobre a Pina Bausch, da fila…
Alice: Da fila, quase isso… são corpos tão diferentes.
Tania: Eu gostei da palavra circunstância que você usou para falar da situação, porque implica movimento, como na palavra “circundar”. Estar em circunstância seria pôr-se em movimento circular, seria circular com e entre as pessoas.
Tato: Tem um entorno, um círculo em volta, e eu acho interessante que vocês não falam muito de vocês, do que são vocês lá fora. Talvez não falar sobre isso ajuda a imantar, a fermentar a constituição de um espaço de liberdade, que se desconecta do antes na relação com os outros, um não lugar, um espaço interno.
Alice: É bem isso mesmo. E isso nos aproxima delas ao mesmo tempo em que elas se aproximam delas mesmas.
Tato: É uma cápsula, e aí essa cápsula pode se expandir muito, pode se expandir muito na medida da intimidade, da confiança, do aprendizado com as experiências. É um universo que cresce dentro daquele espaço restrito, paredes com metros quadrados, mas é um espaço de uma outra natureza.
Tania: E a áudionutrição, como entraria ali?
Tato: Pois é, eu fico imaginando o quanto elas sabem do que acontece através das paredes, o quanto elas se informam do que acontece pela escuta.
Alice: Então você tem que ir lá com a gente um dia porque a sonoridade lá é surreal. É um espaço sujeito a muita dispersão sonora, tem muito ruído. No entanto, elas têm uma boa relação de escuta com as nossas indicações e proposições.
Tato: Muita coisa acontecendo…
Alice: Tudo vazado.
Tania: Tem os cânticos do templo evangélico…
Público: Eu não sei o que é a áudionutrição.
Tato: É aquela proposta muito simples que eu lancei no começo, o quanto a gente pode se alimentar pelo que a gente escuta, ou seja, entender o que acontece à nossa volta mais pela escuta do que pela visão. De alguma maneira fazer do que soa fonte de informação… A gente faz isso normalmente, mas é diferente quando se faz de modo mais atento. Essa é a ideia.
Público: Como foi para vocês chegarem lá e ter essa realidade? Que provavelmente vocês nunca conheciam? E para quebrar esse medo dessas pessoas? A gente sempre tem esse medo. Como foi para vocês quebrar todos esses títulos para conseguirem fazer um trabalho?
Caroline: Eu cheguei lá carregando todo esse imaginário sobre o que é o presídio, numa mistura de receio e curiosidade, mas com um grande interesse em conhecer esse contexto de perto. Entrar no presídio já é um ritual: seguimos os protocolos de segurança, passamos pela revista e falamos com as guardas. Mas, no projeto, lidamos com mulheres e com o que elas trazem. Não ficamos presas ao que elas fizeram no passado; estamos interessadas no que pode surgir lá, no presente.
Uma vez, bem no começo, nos colocaram na igreja, logo após um culto. Fizemos um exercício convidando todas a fechar os olhos e, em duplas, uma ser guiada pela outra. Isso foi bem no começo. Agora, imagine fechar os olhos em um lugar onde a desconfiança é constante. É um ato desafiador até para nós, que estávamos chegando, sem vínculo algum, e, de repente, precisávamos nos permitir ser guiadas por alguém. Mas esse momento também nos mostrou algo importante: os processos que propomos não são apenas sobre movimento, mas sobre criar laços. O vínculo no trabalho, a confiança, é essencial. Assim, fomos estabelecendo uma relação que vai além da atividade em si. Para essas mulheres, acostumadas a um ambiente de vigilância e restrição, o projeto se torna um espaço onde a presença do outro deixa de ser uma ameaça e se transforma em algo positivo. Aos poucos, elas começaram a chegar mais dispostas, mais abertas a compartilhar suas experiências conosco. O trabalho foi ganhando corpo, tanto para nós como para elas.
Alice: Isso que Carol falou, esse exercício que a gente fez na igreja, foi uma experiência muito forte! Lembro que eu propus isso e, quando estava de olhos fechados sendo levada por uma presa, eu pensei: “Caramba, que loucura! Nós quatro de olhos fechados com as detentas nos guiando por um espaço amplo e aberto”. Eu não tinha me dado conta do estado de vulnerabilidade que ficamos, mas foi ótimo. O que foi impressionante é que nos sentimos à vontade com elas. Às vezes, elas demoram para ficar à vontade conosco, porque elas têm medo também, não sabem o que vamos fazer, principalmente as que estão entrando pela primeira vez. Nesse dia percebemos a torção desse lugar de propositores e praticantes.
Caroline: Uma coisa que sempre me perguntam e comentam comigo é sobre a energia do presídio ser pesada. De fato, não é um lugar alto astral, mas a energia lá é dinâmica — muda a cada dia, dependendo do que acontece. Pode ser leve ou densa, tudo influencia. Nesse processo, especialmente no início, as supervisões com a Tania foram essenciais para nos ajudar a entender nossas emoções e lidar com essas variações de energia, tanto das presas como as nossas próprias.
Alice: Porque saímos mexidas, cansadas…
Caroline: Envolvidas com quem aparecia. Mas entendemos a importância do distanciamento para que o trabalho aconteça.
Tania: Eu nunca me senti em perigo, até porque já trabalhei em hospitais psiquiátricos e, em comparação com estes, o Talavera Bruce é muito tranquilo. Claro que algumas mulheres ali estão deprimidas, principalmente as grávidas. E isso não é à toa, porque as mulheres detentas no Brasil não costumam ter direito à visita íntima, diferente dos homens, nos presídios masculinos. Portanto, elas não ficaram grávidas na prisão; trata-se de mulheres que, diferente do resto da população carcerária do Talavera Bruce, não estão sentenciadas, estão esperando um alvará, e muitas podem ser soltas a qualquer momento, o que faz com que este grupo seja bastante variável, como já mencionou Alice. Só percebi há pouco tempo que muitas mulheres se descobrem grávidas no momento em que são presas e têm que fazer os exames de praxe. Me pus a imaginar então a dupla prisão de uma mulher quando se descobre grávida e, por estar presa, sem nenhuma chance de eventualmente fazer um aborto.
Público: O que acontece com a criança depois?
Tania: No final da gravidez elas vão para outro lugar, que é uma unidade materno-infantil, aí ficam seis meses com a criança depois que nasceu.
Alice: Depois elas ficam com a família, se tiver, ou são guiadas para adoção. Os bebês não ficam com a mãe.
Tania: É muito difícil. É muito duro.
Alice: Nunca fomos na unidade materno-infantil, o Evandro [Salles — diretor do CCJF] foi e comentou conosco.
Caroline: O tema da maternidade é um tema que aparece com as mulheres no “Seguro”, que têm as penas muito longas e têm essa saudade dos filhos, das famílias.
Alice: Elas falam dos filhos, muitas têm tatuagem com o nome deles no corpo. Há mesmo essa relação de memória.
Tania: Tem. Mas agora me dei conta ouvindo vocês que pra mim é tranquilo, imagina, comparando com o hospital psiquiátrico… super tranquilo, mas porque é um presídio feminino. Não sei se me sentiria assim num presídio masculino… eu acho que não, eu acho que num presídio masculino me sentiria em perigo, acho que se trata de uma questão de gênero.
Público: Houve uma escolha de vocês de trabalhar com este presídio?
Alice: Então, o CCJF já tinha uma parceria com o Talavera Bruce e com o Oscar Stevenson, que é o presídio semiaberto em Benfica.
Tania: Soubemos pelo curador Evandro Salles que o Centro Cultural estava iniciando uma parceria com esse presídio e que haveria a possibilidade de receberem projetos. Convidei então para elaborarmos um projeto, e o CCJF o acolheu com entusiasmo, ficando responsável apenas pelo transporte da equipe. Mas nada nos parece fácil neste projeto. Não que seja difícil estar lá com as mulheres, pelo contrário. O difícil é tudo que envolve esse trabalho institucionalmente. A violência do sistema prisional é tão institucionalizada que tudo parece concorrer para que o trabalho não aconteça.
Além disso, seria muito importante se a gente tivesse pelo menos bolsas, um pagamento mínimo para as pessoas da equipe, especialmente alunes de graduação.
Alice: É bem cansativo pela relação demasiadamente burocrática. Às vezes estamos impedidas de fazer coisas que gostaríamos de fazer porque a burocracia impede mesmo. Então, isso que a Tania disse sobre não termos nenhum suporte, dificulta. Logo no início tentamos fazer pedidos, como por exemplo alguns materiais para as práticas. Nossa, uma burocracia sem fim para conseguir papéis grandes, até o ponto em que falamos: “Não vamos pedir mais nada”. Trazemos alguns materiais de nossas casas. A Carol tem materiais maravilhosos, papéis diversos, tecidos grandes e elásticos. Eu levo bolas. Dessa forma vamos nos autogerindo nesse processo. De qualquer forma, ter o carro do CCJF é fundamental.
Tania: Acho que desde o começo entendemos também que não se trata de dificuldade com pessoas exatamente, mas de uma estrutura, a da justiça, especialmente a da lógica prisional, que é violenta por excelência. Isso se apresenta em pequenas coisas, não só a dificuldade burocrática, mas também o fato de que cada vez que chegamos parece que os funcionários não estão a par do projeto…
Alice: Parece que é a primeira vez: “Vocês são de qual projeto?”
Caroline: “Vocês são as religiosas”.
Tato: “Pastoras”.
Todos: [risos]
Tania: Parece que nada se pode instituir e que não existe uma rotina das detentas. Não se pode estabelecer algo. A instituição justamente está ali para suspender a vida e, portanto, o tempo, a passagem do tempo. Uma das piores violências talvez seja a de impedir que as detentas tenham uma rotina. Você imagina o que é estar cumprindo uma pena estabelecida em dias ou meses e você não poder organizar o seu dia a dia de maneira a ter o tempo passando? O presídio é uma instituição na qual parece que o tempo não passa. Tudo ali está meio cristalizado. Agora me veio à cabeça aquela imagem clichê do preso contando os dias na parede… talvez isso seja mesmo necessário.
Público: É uma violência psicológica. Eu me lembrei de um filme que eu assisti que tinha uma cena em que um dos personagens era preso porque ele cometia algum crime grave, e colocaram ele numa solitária. Tudo escuro, um lugar pequenininho, coisa horrível mesmo e, para ele não surtar, para ele não enlouquecer, ele ficava pegando uma moeda e tacando pra cima, pegando no chão, pegando no chão toda hora.
Tania: É uma maneira bonita de fazer o tempo passar, fazendo som.
Alice: A violência psicológica é posta em vigor naquele ambiente…
Público: Foi Milton Gonçalves, no filme Carandiru,que era uma prisão em São Paulo.O ator interpreta Chico, um personagem dentro do presídio que era para receber uma visita da filha, e aí ela não foi e fizeram uma piada com a filha dele, aí ele agrediu o cara na hora e o colocaram numa solitária.
Público: Eu queria fazer uma pergunta. Não tem relação com este assunto, mas uma pergunta em geral: por que o corpo no trabalho de vocês? Me aparenta ser muito mais a questão da movimentação do corpo do que necessariamente uma coisa… uma produção gráfica. Claro que essas coisas estão intimamente ligadas, não tem como separar, mas por que o corpo? Por que a movimentação do corpo especificamente nesse projeto?
Tania: Muito boa. Qual é seu nome?
Público: Luana.
Tania: Luana, eu posso dizer o que me fez convidar Alice e depois ler pra vocês o trechinho do projeto em que a gente explicita isso, mas queria sugerir que depois o Tato falasse sobre o barulho da moeda batendo no teto e no chão. Acho interessante pensar o lugar do som marcando e, portanto, permitindo a passagem do tempo.
Tato: Sim, é o tic-tac. Ele criou um módulo de tempo. Na inexistência de qualquer referência, ele criou um pêndulo, um relógio, um tic-tac, algo que materializa a passagem do tempo.
Alice: Total, seria um vazio do tempo…
Tato: … uma eternidade, ele criou um…
Alice: … um pulso.
Tania: Pulso.
Alice: Muito bom. Porque o pulso é apaziguador.
Tato: Sim! O pulso é apaziguador, porque a regularidade é apaziguadora.
Tania: Gente, que bonito isso. Pulso. Agora a gente vai chamar o projeto de Pulso.
Alice: Dançar sem música pode ser muito desconfortante, então o pulso pode ajudar muito. Muito legal isso.
Tato: Trazer isso para pensar que, na privação de ciência da passagem do tempo, o instinto é de criar algum módulo.
Tania: Que bonito isso. Talvez este seja uma espécie de ponto zero da música.
Tato: No princípio era o pulso.
Público: A música tem o bpm.
Tato: Sim, tudo à nossa volta, visível ou invisível, tem bpm também, da menor unidade microfísica à maior unidade do cosmos, tudo tem um bpm, uma velocidade de vibração.
Público: Tudo tem sequência.
Tato: O que muda é a velocidade, a frequência da vibração. Você chama de som quando vibra a uma certa velocidade. Em outras velocidades, você chama de luz, rádio, micro-ondas ou órbitas de planetas, mas é tudo vibração em diferentes frequências.
Tania: E a gente. E pessoas.
Tato: Um monte de pulsos ao mesmo tempo. A gente é uma multiplicidade de pulsos, mas fomos poupados de ouvir esses pulsos todos. A gente ia pirar ouvindo a quantidade de pulsos que acontecem o tempo inteiro dentro da gente. A respiração, a circulação, o sistema digestivo, as glândulas secretando, o cabelo crescendo…
Tania: Então, tem psicanalistas que trabalham sobre a música, como Jean-Michel Vivès, e propõem a ideia de uma espécie de “recalcamento” sonoro, que marcaria a diferenciação básica entre ruído e voz, necessária para que alguém aceda à linguagem.
Tato: Qual o sentido do termo recalcamento?
Tania: O recalcamento originário ou primário marca o processo de advento do sujeito, de surgimento do sujeito. Fala-se em recalcamento primário como algo importante para que a pessoa entre na linguagem, situe-se como ser falante entre seres falantes. Alguns psicanalistas indicam uma dimensão sonora disso na diferenciação primeira entre ruído e voz, porque, seguindo isso que você está dizendo, a gente está envolto em uma massa sonora que tem que ser trabalhada, modulada. A palavra é modulada em termos de um privilégio dado pela percepção a algumas unidades, consideradas significativas, em detrimento de outras, que não seriam portadoras de sentido.
Alice: A ponto de nós, por exemplo, podermos ignorar o que está fora, e o pulso tem a ver com essa possibilidade de a gente se organizar.
Tato: Isso faz a gente pensar que temos embutida essa capacidade de delimitar unidades, de não perceber tudo a nossa volta como um borrado de átomos. Já quando você faz um sonograma, que é uma fotografia digital de um som gravado, a imagem te entrega as frequências, durações e intensidades, mas não discrimina com clareza as unidades do que foi gravado. Interessante pensar que, se a visão segrega, a escuta não discrimina…
Tania: Não é que se eliminem totalmente esses outros sons, esses outros registros sonoros que são nesta operação delimitados. Como indica a palavra recalcamento, eles permanecem abafados, mas não deixam de pulsar — para usar o termo que surgiu nesta conversa. O recalcado não é eliminado, mas permanece encriptado, retido, sem poder se apresentar plenamente como tal. Talvez se possa pensar a arte como o que, às vezes, de modo provisório ou parcial, abre o caminho para o que estava retido se apresentar como tal. Você acha que isso faz sentido no domínio sonoro, Tato?
Tato: Faz total sentido em todos os domínios. Pelo relato de vocês, primeiro vejo quanto de coragem pessoal vocês têm no engajamento sem mapas nessa jornada. Para mim, isso tem muito a ver com o salto do carrapato descrito por [Jacob Von] Uexküll, de abraçar a incerteza num salto no vazio.
Tania: Ótima palavra, o salto. Pulso e salto, até agora…
Alice
Muito bom.
Tato: Essa experiência daria um belo projeto de extensão, já que vocês são professoras universitárias. Partindo dessa relação com outra instituição, o CCJF, vocês podem criar na UFF ou UFRJ um projeto de extensão, engajar estudantes, solicitar bolsas, engajar estagiários e por aí vai.
Tania: Muito bom que o [Tato como] coordenador [do curso de Artes da UFF] se lembre disso! Não é que não tenhamos pensado em fazê-lo, apesar de, confesso, eu ter muita dificuldade hoje em dia com a burocracia universitária, mas porque também não sabíamos se o projeto poderia continuar contando com o apoio do CCJF, por uma eventual mudança na direção do Centro. Tudo nesse projeto é muito precário e é graças a esse convênio entre o CCJF e o presídio que o projeto acontece, pois seria impossível arcarmos com o transporte. Também do ponto de vista administrativo é importante que o projeto seja parte de um convênio do CCJF, sem dúvida.
Alice: Porque não é o presídio. A SEAP cuida de todo o complexo de presídios do Rio de Janeiro e do Estado do Rio de Janeiro. Então SEAP também é uma instituição com todas as burocracias próprias de uma instituição com esse grau de complexidade, por isso demoramos oito meses para começar…
Tania: Mas eu acho que é muito importante transformar em extensão, tanto na UFRJ quanto no curso de Artes da UFF, com certeza.
Tato: Até porque o mais difícil vocês já fizeram, esse espaço já foi criado.
Tania: Eu gostaria muito que a gente tivesse alunes do curso de Artes conosco nesse projeto, é óbvio, e espero conseguir um dia tornar isso possível.
Gostaria de voltar à pergunta da Luana sobre o motivo de estarmos pensando em termos de corpo. De minha parte, já havia um desejo forte de trabalhar com a Alice. Sempre dizíamos “vamos fazer alguma coisa juntas”, e acho que vi na oportunidade de apresentar um projeto para o CCJF o salto, para usar o termo que o Tato trouxe agora há pouco. O que me viria naturalmente seria eu fazer um trabalho de fala, pois tenho formação e prática clínica em psicanálise, além de trabalhar com arte. Mas nos últimos anos tenho buscado o salto em outro lugar, e ter Alice ao meu lado me trouxe a parceria necessária para essa experimentação.
Apesar de sempre ter tido em minha vida uma presença do movimento e da exploração de possibilidades corporais, nunca havia me proposto realmente a fazer algo num campo expandido da dança, vamos dizer assim. Gosto de poder experimentar outros caminhos. Tato, como coordenador do curso de Artes, me convidou inclusive para dar uma disciplina de corpo no próximo semestre e eu estou muito animada.
Tato: Vai ser maravilhoso para os calouros de 2024.2.
Tania: Para mim se trata de um desafio importante. Vou tentar inventar um corpo para começar.
Tato: Como diz o [filósofo] Claudio Ulpiano, existe o pensamento, o resto é tudo corpo.
Alice: Para Ulpiano, o corpo é o impensado.
Tania: Eu também poderia responder, ainda sobre a razão de propor um trabalho corporal, que nos presídios já existe atendimento psicológico, é claro. Mas a verdade é que eu não teria desejo de trabalhar no Talavera Bruce com um projeto de psicanálise no sentido estrito. Acho que a questão do espaço se impõe numa prisão de uma maneira que convoca o meu corpo, um corpo feminino, ou seja, de alguém que se define, se identifica com o significante “mulher”. A ideia de um corpo encerrado, e de como um trabalho ali tem que se dar no espaço, nos levou, com Alice, a pensar uma atividade com gesto, afeto e espaço, em uma espécie de campo expandido da dança.
Em nossa primeira visita, quando fomos com a equipe do CCJF conhecer o presídio, percebemos, diante da cela do “Seguro”, quando as detentas vieram conversar conosco através das grades, percebemos que elas pareciam estar muito bem organizadas como microssociedade. Imagina o que é passar anos num mesmo espaço, em um só cômodo, com muitas outras mulheres, em uma área exígua e sem nenhum espaço de privacidade. Percebemos que já havia todo um regime de representação entre elas, que algumas falavam em nome de todas. Uma coisa muito bonita em termos de construção social, que nos fez pensar o projeto como algo que viria simplesmente tentar trazer reforços para essa construção.
Tenho um desejo muito grande de refletir sobre os modos de criação de um comum feito especialmente por mulheres e numa situação extrema como a de encarceramento, de privação de liberdade. Então pensamos o projeto não para trazer algo que elas não teriam, mas tentando trazer alguma contribuição para um processo que elas mesmas já estão realizando, apostando nessas construções afetivas de laços sociais que, sem dúvida, podem transformar substancialmente a vivência de cada detenta.
Público: Queria fazer uma pergunta. Fiquei pensando muito como vocês passam por vários portais até chegarem lá e, dentro desse trabalho, vocês criam um portal para essas mulheres, de um outro universo, mas vocês atravessam vários até chegarem lá. Queria que vocês falassem um pouco sobre isso.
Tania: Qual é seu nome?
Público: Sérgio.
Tania: Sérgio, obrigada pela pergunta. Eu queria só te pedir licença para pedir pra Alice e pra Carol falarem sobre a questão do corpo, antes de pensar especificamente nesses atravessamentos.
Alice: Primeiro queria dizer que o convite da Tania foi muito transformador. Estar com ela e a Carol nesse lugar, e as estudantes que foram sendo agregadas no projeto, tudo isso tem sido uma experiência e tanto. Somente junto da Tania para me sentir encorajada de estar nesse lugar. Também, como a Tania disse, no primeiro ano ela não estava presente, mas ela deu um suporte, ela deu um corpo para enfrentarmos esses outros corpos, foi fundamental. Nós tínhamos reuniões semanais com ela, pois necessitamos de uma organização do nosso próprio corpo para estar no presídio. Precisamos de um suporte.
Há um outro projeto que o CCJF também implementou que é o de cinema. Em algum momento a pessoa que coordena o projeto do cinema entrou em contato comigo perguntando se a gente não poderia dar um suporte emocional para elas. Enfim, só pra dizer que o suporte da Tania trouxe o corpo de escuta necessário para o projeto de uma maneira geral. As minhas ferramentas como bailarina não seriam suficientes para estar naquele lugar.
Então, num primeiro momento, pensamos: “Com que corpo chegamos ali?”. Tem uma questão que eu penso acerca do corpo marginalizado e o confronto com aqueles corpos literalmente marginalizados. O que resta daquelas mulheres? Elas só têm o corpo mesmo ali, elas não têm nenhum bem material, nada. A roupa delas é igual, elas usam uma blusa branca igual. Elas não têm objetos, elas não têm relação com o espaço de uma casa, por exemplo. Tudo o que elas têm é o corpo. Então, o projeto tem o sentido de potencializar aquele corpo. O que podemos junto com elas e o que elas podem entender junto de nós — é um vai e vem, levamos algo para que aquele corpo seja potencializado e, em contrapartida, o nosso corpo também é potencializado. Passamos por altos e baixos, também ficamos nos perguntando muitas coisas que tem a ver com a nossa vida e com a forma como construímos mesmo a nossa vida. O que ocorre é que saímos com um corpo diferente dessa experiência e tem esse sentido comum de criarmos junto com elas modos de como podemos potencializar um corpo, independente de ser uma dança X, Y ou Z, mas é como podemos descobrir a potencialização do nosso corpo diante de um ambiente impeditivo por natureza.
Tania: Muito importante podermos te ouvir sobre isso, Alice, você que tem uma longa trajetória de trabalho artístico que já se dava fundamentalmente com o corpo, é claro, mas de outra maneira.
Caroline: Ouvindo vocês falarem, percebo como o corpo me aproxima delas. Foi nesse processo que firmei o conceito de “corpo transante”, um corpo em fluxo, que atravessa barreiras e rompe com as limitações impostas. Na prisão, onde tudo é rigidamente controlado, permitir que o corpo se expresse livremente é um ato poderoso. Diferente de outras atividades, o movimento não exige palavras ou justificativas, ele simplesmente acontece, conectando cada uma consigo mesma e com as outras.
Este conceito se manifesta nessa experiência coletiva, onde, através da dança e do gesto, as mulheres transitam entre o espaço físico da prisão e o espaço imaginado da liberdade. Ali, dentro das grades, conseguimos criar brechas para outro modo de estar, ainda que por um instante. O corpo que dança não se submete totalmente ao cárcere, ele encontra fissuras por onde escapa, resiste e se transforma.
Público: As mulheres têm medo de simplesmente fazer isso [levantando os braços], porque tem que ficar andando com o braço para trás. A prisão é física, mas ela também acaba sendo mental.
Público: Tem essa prisão dos gestos, faz muito sentido realmente o trabalho desse corpo.
Tato: Acho que essa é a grande subversão que um trabalho como esse pode fazer, porque eles prendem os corpos, os corpos estão presos…
Público: Presos numa coreografia.
Tato: Estão presos numa coreografia, e aí enquanto esse espaço interno puder ser expandido com o trabalho de vocês, os corpos estão presos, mas o ser está livre.
Tania: O espaço se constrói, é uma construção corporal também…
Tato: Sim, também.
Tania: Acreditamos que ativar as relações e transformar as relações com o espaço e com os demais corpos também pode ser libertário nesse contexto.
Para voltar ao que o Sérgio perguntou, queria dizer que nunca tinha pensado a entrada como uma passagem por muitos portais. Achei interessante a ideia e quase ouvi os portais fechando, plaf-plaf.
Tato: Uma imagem muito cinematográfica…
Tania: Há ali várias portas gradeadas, de fato.
Tato: Como é que vocês internamente vão se sentindo a cada “passagem de portal”?
Tania: Eu não me sinto passando em nenhum portal. Engraçado… sinto que estou ali e poderia estar em qualquer lugar com aquelas mulheres, sabe? Mas ao mesmo tempo isso é uma abstração que não se sustenta, porque a instituição está ali, inexorável, e ela tem efeito nos nossos corpos também, podendo até impedir que pensemos, que tenhamos agência sobre o trabalho.
Alice já mencionou que lidamos com grande variação do grupo, especialmente o das grávidas. Não temos nem mesmo a possibilidade de definir quantas pessoas estarão conosco, nem os meios para garantir que continuem vindo as mulheres que querem participar e já participaram antes. Desconfiamos que o nosso trabalho possa ser usado como objeto em um esquema de recompensa e punição, e que eventualmente aconteça de alguém interessado em participar não ter permissão para tal.
Já aconteceu de uma guarda definir, por conta própria, que todas as mulheres daquela cela tinham que ir para a atividade, por exemplo. Tivemos um grupo enorme neste dia, mas nem todas estavam a fim de estar ali. Percebemos que elas tinham sido obrigadas. No final foi ótimo, trabalhamos com isso, cada vez estamos submetidos a uma arbitrariedade que está no âmago do que consideramos “a justiça”.
Neste sentido, a prisão está na ponta extrema de um contínuo que define nossa sociedade em geral… ou seria uma espécie de miniatura da sociedade, na qual se explicitaria a dimensão da arbitrariedade implicada em toda instância de poder.
Alice: É muito aleatório, somos chamadas lá dentro como as mulheres do… “Ah, vocês são do projeto Corpo e Alma?” [risos]
Tania: Chamam nosso projeto de “Corpo e Alma”. É Corpo, Gesto e Afeto, mas parece ser difícil a aceitação de um corpo sem alma. [risos]
Alice: Ninguém sabe quem a gente é, mesmo falando sempre que somos do projeto Corpo, Gesto e Afeto. Um dia uma falou: “Ah, vocês são do Corpo e Alma?”. Respondemos: “Isso!”. Ficamos tão felizes que a pessoa pelo menos lembrou uma parte do título do nosso projeto e, desde então, brincamos, “nós somos do Corpo e Alma agora”. [risos]
Eu fico pensando que, quando chegamos no espaço para trabalhar com elas, nos sentimos num lugar muito protegido, como se fosse uma camada muito dura que vamos passando. Quando começamos a falar hoje, eu fiquei pensando em uma imagem de uma pedra dura que vamos entrando e quando chegamos parece que fica um espaço mais livre. Incrível isso. Porque é uma guarda que não nos conhece e que não quer que o trabalho seja feito e chama a outra que vai pegar a outra e a outra que pode pegar a chave e a lista que tem que pegar… parece uma saga infinita. Meia hora só para essa travessia. Então, realmente, acaba sendo um portal mesmo.
Parece que é tudo muito organizado porque é difícil entrar lá. Antes de entrar eles investigam o seu nome, depois vem uma autorização, e a partir disso que começa o trabalho. Então parece que eles querem mostrar que há uma organização. No primeiro dia pensamos no material para levar. Chegamos lá e a guarda disse: “Ah, quem são vocês?”. Então, ela nunca achava o tal papel que dizia o material que íamos levar e percebemos que esses pedidos, imagino de menor importância [para eles, acabaram sendo] aleatórios [risos]. Quando entendemos isso, foi libertador, não é?
Tato: Um alívio…
Alice: Levamos elástico, tecido, bola, cartas, milhões de coisas e no papel só estava… Sei lá o que tinha naquele papel que ele nunca achou. Então é uma organização totalmente desorganizada e, nesse sentido, nos aproveitamos disso para poder criar nosso espaço de liberdade.
Público: As portas como se fossem um sermão de preces.
Tania: Exato, exatamente.
Caroline: Além dessa burocracia, nenhuma das guardas permanece conosco, o que também demonstra uma confiança em nosso trabalho…
Alice: Gostamos que seja assim, porque quando elas estão perto da guarda, elas são muito diferentes. É o olho de fora endurecido que as endurece.
Tania: Olho para as mulheres do “Seguro” e sei que muitas delas cometeram crimes hediondos, mas não as vejo como diferentes de mim, de jeito nenhum. Creio que algo ali se dá entre mulheres, simplesmente. Vocês não acham? Construímos um clima lúdico que nos aproxima, ainda que não deixem de existir as diferenças de situação socioeconômica e de raça, é óbvio.
Alice: Total. Ficam nesse outro lugar ou não lugar, não é? Assim, ficamos no que parece uma relação mais horizontalizada.
Caroline: Com as grávidas, a relação é diferente, pois o grupo está sempre mudando. A cada novo ciclo precisamos construir um novo vínculo, o que nos faz retornar constantemente a uma fase inicial de aproximação e confiança.
Tania: Não é possível estabelecer uma continuidade.
Caroline: Fica nesse lugar de desconhecimento sobre o que fazemos ali. De não entender nosso trabalho. Já as mulheres do “Seguro”, por outro lado, já sabem, já ouviram falar e/ou comentaram entre si na cela.
Tania: Exatamente, inclusive por vezes aparecem elementos que foram trabalhados meses antes. É o caso dos gestos de festa junina que pedimos certa vez que elas trouxessem no encontro seguinte. Algumas vezes tivemos notícias de que o trabalho reverbera e se faz presente no dia a dia. Talvez hoje já esteja estabelecido este pulso, mas isso levou tempo. É um pulso que talvez seja o que faz a diferença ali, em um tipo de instituição que, por definição, visaria impedir o pulso, manter uma linha contínua.
Tato: Igual quando morre…
Tania: Isso.
Alice: Mas muitas têm uma boa comunicação entre elas. Engraçado que eu fui trabalhar com uma outra bailarina, a Laura Samy, em função de um outro projeto no Oscar Stevenson e, quando cheguei lá, elas já sabiam do nosso projeto porque algumas já tinham falado para as do outro presídio! Olha que loucura? Chegamos lá já com o respaldo de que o trabalho era bom.
Público: Eu fiquei pensando na coisa de registro. Eu acho que seria interessante interagir sempre fotografando, mas sei que não pode, mas talvez a ideia de gravar o áudio seria interessante?
Alice: No começo a gente até tinha uma preocupação de querer usar o papel para escrever e tal, mas acho que usamos muito mais o registro do que fica e da troca entre nós de forma mais oralizada mesmo. O fato de não ter celular acaba nos ajudando muito porque talvez não teríamos tanta atenção para guardar essa memória mesmo no corpo.
Caroline: Acredito que, de alguma forma, já fazemos esse registro. Quando escrevo sobre isso no mestrado, por exemplo, essas impressões acabam se transformando em texto, e agora, ao discutirmos aqui, também estamos documentando. Concordo que a ausência do celular nos mantém mais presentes, mas me pergunto: como podemos expandir esse projeto para além do que já fazemos? Mas eu também acho isso maravilhoso. Percebo que fico muito mais atenta ali — aos nomes de cada uma, ao que foi dito, ao que aconteceu — porque, no final, o que permanece é aquilo que capto diretamente da experiência.
Público: Eu acho que é legal, normalmente a gente registra tantas coisas que acabamos não registrando.
Caroline: Acho que estamos meio desmemoriados, acostumados a registrar tudo o tempo todo, sem depender tanto da nossa própria lembrança.
Tania: Talvez possamos tentar inventar um modo de inscrever as experiências, de alguma maneira. O que Tato dizia me fez pensar que realmente temos que trabalhar mais a dimensão sonora que está presente, quem sabe até fazendo composições sonoras que, se não pudermos registrar, poderemos cantar — e dançar.
Alice: Pode.
Tania: Dançar pode ser uma forma de registrar.
Tato: Linguagem, linguagem que transpõe paredes…
Alice: Linguagem.
Tato: Movimento.
Tania: Eu gosto dessa ideia de que o que os corpos lá presentes fizeram poderia ser repetido por nós, ou por outras pessoas.
Tato: Isso é muito especial.
Público: Elas só têm um corpo, não têm roupas, não têm nada ali que seja delas?
Tania: Não têm espelho.
Público: Isso ficou gravado na minha mente, eu estou até agora pensando nisso e eu acho muito interessante a gente ter essa oportunidade de ter essa visão sobre as pessoas. A sociedade precisa saber…
Tania: Podemos pensar um trabalho, com a participação de Alice Poppe, Carol Valansi e Tato Taborda, que tenha como título: Elas Só Têm o Corpo…
Tato: Que tal Só Têm o Corpo?
Tania: Só Têm o Corpo.
Tato: É tão forte isso.
Alice: Em geral, nos dispersamos muito do nosso corpo, porque temos muitas coisas materiais no nosso entorno…
Tato: O que Tania falou da peça evoca textos maravilhosos que foram escritos no cárcere, memórias do cárcere. Talvez, de alguma maneira, como cartas escritas na prisão, isso possa vazar, não é? Porque não tem parede que segure o pensamento delas — expresso nos movimentos que elas fizeram e feito linguagem — de que seja solto no mundo. É fruto daqueles corpos, do quanto eles se engajaram, do quanto eles produziram. Tem algo muito significativo mesmo nessa ideia desse corpo-pensamento vazar para fora daqueles limites físicos, como linguagem, como linguagem coreográfica, linguagem sonora…
Tania: O que vaza da prisão.
Tato: O que vaza da prisão.
Alice: … pelas brechas.
Tania: Vamos fazer!
Tato: Acho que hoje já está de bom tamanho, se não tiver alguma pergunta.
Tania: Foi muito bom. Esta conversa reafirma que apenas contando com a escuta de outras pessoas a gente pode escutar a nós mesmas. Acho que posso falar em nome também de Alice e Caroline para dizer obrigada ao Tato por ter se unido a nós. E também para agradecer ao Guilherme Vergara pelo convite para fazermos esta conversa, assim como à Jessica Gogan, pela incitação à transcrição e edição do registro desta mesa.
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Caroline Valansi é artista visual que atua entre arte, educação e saúde mental. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela UFF, investiga criação e experiências colaborativas, com destaque para o Ateliê Entreaberto. Sua produção aborda corporeidade, desejo e prazer, propondo a arte como ferramenta de transformação sensível. Seus trabalhos integram acervos da Bienal de La Habana, Museu de Arte do Rio, MAM Rio e a Biblioteca do IMS.
Maria Alice Poppe é artista da dança e investiga o corpo e suas relações poético-políticas com o chão, o peso e a gravidade, em uma perspectiva híbrida de dança e educação somática, através da Metodologia Angel Vianna. Doutora em Artes Cênicas pela UNIRIO e professora dos cursos de Dança da UFRJ, Alice vem atuando em diversas produções de dança contemporânea no Brasil. Seu último trabalho, Celeste, coreografado por Marcia Milhazes, estreou no Palco Carioca do Dança em Trânsito 2025.
Tania Rivera é ensaísta, psicanalista, curadora e professora titular do departamento de arte, além de lecionar na Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes da Universidade Federal Fluminense (UFF). Atua também junto ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Publicações recentes incluem Lugares de delírio: arte e expressão, loucura e política (n-1 edições/SESC, 2023) e Psicanálise antropofágica: Identidade, gênero, arte (Artes & Ecos, 2020).
Tato Taborda, músico e compositor experimental, professor do departamento de arte da UFF, e atualmente coordenador do curso de graduação em Artes. Autor de textos e composições multimídia, como a ópera A Queda do Céu, realizada em diálogo com Davi Kopenawa. Também tem experiências numerosas de colaboração com performances teatrais e de dança e, recentemente, lançou o livro Ressonâncias: vibrações por simpatia e frequências de insurgência (UFRJ, 2021).