Instituto Benjamin Constant em visita à instalação oBichoSusPensoNaPaisaGen, do artista Ernesto Neto. Leopoldina, Rio de Janeiro, 05 de outubro de 2012. Filmagem/imagens: Gustavo Cruz Ferraz. Parceria: Núcleo de Pesquisa Cognição & Coletivos (NUCC)/UFRJ

Devires e acessibilidade estética numa visita com cegos e videntes
Virgínia Kastrup

Vamos juntos fazer uma visita à obra de Ernesto Neto oBichoSusPensoNaPaisaGen, instalada na antiga Estação Leopoldina, localizada no Centro do Rio de Janeiro. Somos um grupo de 16 pessoas, sendo sete com deficiência visual e nove videntes. Alguns enxergam, outros são cegos, outros têm baixa visão. Somos um grupo bem heterogêneo, formado de reabilitandos do Instituto Benjamin Constant, artistas, educadores, estudantes universitários e pesquisadores na área de acessibilidade estética. No grupo que formamos misturam-se diferenças no que diz respeito ao ver e não ver, eficiências e deficiências, níveis de escolaridade e familiaridade com a arte. Alguns têm conhecimento das obras do artista, há pessoas ligadas à música – compositora, instrumentista, cantora – dois cegos alemães que estão de passagem pelo Brasil e um casal de deficientes visuais cujo rapaz acaba de voltar ao Brasil depois de viver alguns anos nos Estados Unidos. Alguns animados, outros curiosos, outros simplesmente aceitaram nosso convite e estão ali para conferir.

O grupo do Benjamin Constant chega de van, acompanhado dos estagiários da pesquisa, e recebe as boas-vindas no saguão da Estação Leopoldina. Para quem vê, já é possível perceber uma gigantesca rede feita de crochê colorido, pendurada no teto da Estação. Falamos do título da obra: “Bicho suspenso na paisagem”, de seu tamanho descomunal, e logo nos dirigimos para um local mais próximo da obra para conversar um pouco mais.

Experimentação, curiosidade, apreensão

Conversamos sobre a obra: do que se trata, sua forma, seu tamanho. Uma engenheira assistente do artista nos contou um pouco sobre a obra e seu processo de criação. Ficamos sabendo que ela tem 42 metros de extensão, 12 metros de largura, está pendurada a cinco metros do chão e pesa pouco mais de uma tonelada. De que materiais a criatura é feita? Ao todo, uma tonelada feita de bolinhas de plástico cinza e de fios de algodão trançados em crochê. O trabalho demorou três meses para ficar pronto e contou com a ajuda de mais ou menos vinte mulheres. Apenas uma mulher sabia fazer crochê e ensinou às outras. Juntas, em trabalho coletivo, deram vida àquele bichão.

Para sensibilização e preparação da visita, fizemos uma grande roda. Foram distribuídas várias bolinhas, as mesmas que compõem o chão da estrutura, e um pedaço do material que faz como que a pele do grande bicho. Ficamos bem juntos uns dos outros, passando adiante a bolinha e o tecido. A coisa ficou divertida, pois alguns ficavam com mais bolinhas ou demoravam a passar adiante.

01_Virgina_2imgsInstituto Benjamin Constant em visita à instalação oBichoSusPensoNaPaisaGen, do artista Ernesto Neto. Leopoldina, Rio de Janeiro, 05 de outubro de 2012. Filmagem/imagens: Gustavo Cruz Ferraz. Parceria: Núcleo de Pesquisa Cognição & Coletivos (NUCC)/UFRJ

Chegando mais perto, os cegos mediram a distância que separava a obra do chão, com suas bengalas. Os mais altos se esticavam, tentando se pendurar nas cordas. De repente, começamos a ouvir o som da obra, produzido pelas pessoas que caminhavam lá em cima. Alguns disseram parecer com barulho de chuva, outros achavam que era como o som de pisar em pedrinhas numa rua. Ficamos ali experimentando aquela sensação. Falaram que as bolinhas poderiam ser as gotas de chuva e o chão da obra uma espécie de nuvem negra.

Conversamos que parece uma cobra bem grande, sobrevoando a gente. Sobrevoo de algo. Parece conjugar, de modo paradoxal, peso e leveza – algo em suspensão. Lembramos do título. Alguém diz que há perigo de cair, pois a obra está suspensa na paisagem, suspensa no ar. Uma jovem com baixa visão afirma: “Se essas cordas se romperem é traumatismo craniano certo”. O tecido é frágil, mas, no seu emaranhado, fica forte e sustenta peso. Vamos entrar na obra? Vamos lá, vamos juntos.

Entrando na obra

Há na entrada uma espécie de corredor ou túnel, com certa inclinação. É preciso se pendurar para subir. Parece uma escada com degraus. É uma trama, uma teia, logo, é possível subir se agarrando nos dois lados das paredes, para não cair. Sente-se, de saída, a dificuldade de acesso. É necessário força nas mãos para poder subir. Ou ir agachado, em quatro apoios, de gatinho. Vários dizem que sentem um pouco de medo de cair. “Será que vou conseguir?”. Uma moça cega diz: “Medo é uma coisa que não faz parte de meu vocabulário”. Uma outra afirma, evocando uma memória corporal cinestésica, que está se lembrando da ladeira da casa da sua mãe. Seguimos em fila indiana. Risadas, nervosismo, mãos dadas.

Frame_BenjaminConstant_Gustavo_ (4)Instituto Benjamin Constant em visita à instalação oBichoSusPensoNaPaisaGen, do artista Ernesto Neto. Leopoldina, Rio de Janeiro, 05 de outubro de 2012. Filmagem/imagens: Gustavo Cruz Ferraz. Parceria: Núcleo de Pesquisa Cognição & Coletivos (NUCC)/UFRJ

Foram formadas duplas de cegos e videntes. Numa delas, um rapaz cego, muito animado, foi sem medo para cima do bicho. A jovem vidente se mostrava bem mais desconfortável e cautelosa. Às vezes a situação se invertia. Alguns saíam correndo, pulando e falando alto, outros adentravam andando com todo cuidado, enfrentando devagar a experiência de entrar na obra. Ofegantes, cumprimos a primeira etapa: estamos lá dentro. Ou melhor, entramos no fora-dentro da rede, que não é uma figura geométrica, definida por limites espaciais que separam o interior e o exterior. Como numa rede de pescar, o que define a rede são seus nós. Não falamos aqui de limites fechados, mas de um todo aberto que pode crescer por todos os lados e em todas as direções.

Uma parada no movimento: tempo de reverberação, metaestabilidade e devir-animal

Ao entrar, há uma clara mudança nas condições de equilíbrio. O chão da obra balança um pouco. Tínhamos que nos acostumar com isso. O bicho balançava. Seria seguro? Ao caminhar pela obra, temos a certeza de que fomos deslocados da condição de equilíbrio estável. Experimentamos uma condição de equilíbrio metaestável. Lembrando Simondon (1989), o equilíbrio metaestável deriva de uma diferença interna da forma individuada, que pode ser entendida como uma diferença de potencial. A estabilização da forma é momentânea e não abole a metaestabilidade. Não se aplica aqui a tendência ao equilíbrio, tal como concebida pela Teoria da Forma. A tendência ao equilíbrio é um princípio de anulação das forças, enquanto a ideia de uma metaestabilidade fala de uma tensão permanente, assegurando a processualidade das formas. O Bicho de Ernesto Neto propõe uma experiência de metaestabilidade que, na vida cotidiana, se apresenta quando andamos de bicicleta ou quando um bebê tenta dar os primeiros passos. Trata-se de um equilíbrio em movimento.

Frame_BenjaminConstant_Gustavo_ (6)Instituto Benjamin Constant em visita à instalação oBichoSusPensoNaPaisaGen, do artista Ernesto Neto. Leopoldina, Rio de Janeiro, 05 de outubro de 2012. Filmagem/imagens: Gustavo Cruz Ferraz. Parceria: Núcleo de Pesquisa Cognição & Coletivos (NUCC)/UFRJ

Em meio aos corredores, descobrimos uma espécie de pequena sala, que nos convida a uma parada. Sentamos na obra. Não se trata de uma parada do movimento, mas de uma parada no movimento. As associações soltas de cada um contribuem para compor um território. Corpos largados na rede. Algumas pessoas tiram os sapatos e a maioria deita tranquilamente, sem medo ou sem lembrar que estavam suspensas no ar em cima de uma coisa de uma tonelada. Nada é rígido. A obra se acomoda ao corpo e o corpo a ela.

Não tem forma definida. Dá para parar e ficar onde quiser. Percebe-se que é uma trama, pois se vê dentro e fora. Pensamos em outros nomes para a obra. Surgiram nomes como minhocão, nave espacial e rede social. Sentíamos estar numa rede, trocando experiências. Sentimos o grupo solto, deixando reverberar a experiência da entrada na obra. Falam que aquilo lembra rede, renda, teia de aranha, árvores, coisas vivas. Fala-se em células, aranhas, casulos, em um proliferado. Sim, lembra fungos que se proliferam. O Bicho suspenso na paisagem é micro e macrobiologia. Bicho gigantesco e bichos microscópicos. Lembra trato digestivo.

Experimentamos uma desaceleração, um tempo solto, propício a reverberações. É bom para namorar, conversar, pensar. A gente para e fica. Somos bichos lá em cima. Quem é quem? Quem é cego e quem é vidente? Quem conhece arte? Quem acompanha o trabalho do artista? Quem já leu algo sobre aquela obra? Parece que nada disso faz diferença ali. Por alguns momentos os limites identitários se desfazem e prevalece um encontro banhado numa atmosfera de devires.

Frame_BenjaminConstant_Gustavo_ (7)Instituto Benjamin Constant em visita à instalação oBichoSusPensoNaPaisaGen, do artista Ernesto Neto. Leopoldina, Rio de Janeiro, 05 de outubro de 2012. Filmagem/imagens: Gustavo Cruz Ferraz. Parceria: Núcleo de Pesquisa Cognição & Coletivos (NUCC)/UFRJ

Cabe lembrar que Deleuze e Guattari (1980) distinguem o conceito de devir de outras noções como identificação, imitação ou metamorfose. Devir não é imitar, nem identificar-se. Devir-animal não é manter com o animal qualquer relação de semelhança, não é imitar o animal. O devir se faz por desterritorialização e fuga das formas constituídas, fazendo com que outros regimes e outros territórios possam vir a ser constituídos. Devir também não pode ser confundido com metamorfose. Não é passagem de uma forma a outra. O devir surge como uma espécie de involução, sendo um movimento de dissolução das formas individuadas, sem ser uma regressão a antigas formas. O que define o devir é uma atividade no meio molecular, denso e invisível.

Foi uma experiência!

Aos poucos as pessoas vão buscando a saída. Algumas saem abraçadas, muitas estão descalças. “Uh! Conseguimos!”. Uma expressão ouvida na saída – “Foi uma experiência!” – lembra a formulação de John Dewey (1934), ao falar da experiência estética. Para ele, a experiência estética é algo que cria uma diferença em relação à banalidade cotidiana. A experiência não é interrompida pela ação, como habitualmente acontece, mas é a consumação de um movimento, de um processo. Por isso ela possui caráter de completude, com início, meio e fim, culminando na sensação de unidade da experiência. A sensação de unidade é dada por uma qualidade singular que perpassa a experiência inteira, a despeito da variação das partes e dos movimentos que a compõem. A experiência estética é, enfim, marcante e intensa.

02_Virgina_2imgsInstituto Benjamin Constant em visita à instalação oBichoSusPensoNaPaisaGen, do artista Ernesto Neto. Leopoldina, Rio de Janeiro, 05 de outubro de 2012. Filmagem/imagens: Gustavo Cruz Ferraz. Parceria: Núcleo de Pesquisa Cognição & Coletivos (NUCC)/UFRJ

Vamos nos dirigindo ao local onde o grupo se reuniu na chegada. Abrimos uma conversa. Um rapaz cego diz que adorou: “Sempre gostei de ir além, subir em mangueira, goiabeira, adorava subir em árvore. Buscava ver as coisas de outro ângulo”. Uma jovem afirma: “No início foi muito engraçado, me senti como uma criança. A obra oferece muitas possibilidades, poderia ser muitas coisas”. Um rapaz comenta: “No começo eu estava inseguro.” Outro retruca: “Eu parecia o homem-aranha segurando nas teias”. Outra jovem descreve a experiência como “algo lúdico, desconhecido, eufórico. “A infância não passou, ela está comigo.” O rapaz alemão com baixa visão repete insistentemente, em inglês, que adorou. O outro rapaz, também deficiente visual, que havia morado nos Estados Unidos, conversa com ele, trocando impressões, e ajuda na tradução, para que todo o grupo possa compartilhar a experiência. Como pessoa com baixa visão acentuada, ficou impressionado com a obra e a experiência de acessibilidade. “Como eu vou explicar isso para os meus amigos alemães?”. Uma moça com baixa visão acrescentou: “Basta tirar fotos”. Ao que ele respondeu: “Não, não”. Alguém comenta que mesmo que se tenha todas as informações sobre a obra, a experiência é de cada um. E nem sempre conseguimos traduzir isso em palavras.

Frame_BenjaminConstant_Gustavo_ (22)Instituto Benjamin Constant em visita à instalação oBichoSusPensoNaPaisaGen, do artista Ernesto Neto. Leopoldina, Rio de Janeiro, 05 de outubro de 2012. Filmagem/imagens: Gustavo Cruz Ferraz. Parceria: Núcleo de Pesquisa Cognição & Coletivos (NUCC)/UFRJ

Uma moça com baixa visão deita-se sobre um saco de bolas e lá fica um bom tempo. Parece totalmente relaxada. Uma das mediadoras fica passando a mão no seu cabelo. A cena tocante e de grande intimidade dificilmente aconteceria entre um mediador e um visitante de uma exposição. Aconteceu naquele momento. Tudo parecia, em certos momentos, uma brincadeira, mas a obra revelou um forte poder de transporte.

Antes de terminar, cabe apontar dois aspectos que servem de analisadores dessa visita com um grupo de cegos e videntes, cujo horizonte era suscitar a acessibilidade estética. O primeiro são os devires suscitados pela obra – devir-animal, sobretudo, mas também devir-criança e devir-imperceptível. Como segundo analisador, destaca-se a formação de grupalidade que foi experimentada naquela tarde. A experiência intensa e inusitada criou uma curiosa intimidade entre as pessoas que ali estiveram. Experiência de grupalidade que, enfim, remete ao processo coletivo de criação da própria obra. Os dois analisadores remetem à singularidade das estratégias que foram empregadas para a criação de condições de acesso a obras de arte por pessoas que não dispõem da visão. Como já afirmava Arnheim (1990), cegos são capazes da fruição estética, desde que sejam criadas condições adequadas, que devem ir bem além da descrição puramente verbal. Nesta medida, uma obra multissensorial como o Bicho suspenso na paisagem se mostrou muito fecunda. Por outro lado, o encontro que reuniu cegos e videntes parece ter sido, para os videntes, oportunidade para pensar na potência da experiência do invisível para a experimentação de uma obra de arte.

Frame_BenjaminConstant_Gustavo_ (27)Instituto Benjamin Constant em visita à instalação oBichoSusPensoNaPaisaGen, do artista Ernesto Neto. Leopoldina, Rio de Janeiro, 05 de outubro de 2012. Filmagem/imagens: Gustavo Cruz Ferraz. Parceria: Núcleo de Pesquisa Cognição & Coletivos (NUCC)/UFRJ


Referências bibliográficas
ARNHEIM, R. Perceptual aspects of art of the blind. Journal of aesthetic education, v.24, p.57-75, 1990.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mille Plateaux. Paris: Minuit, 1980.
DEWEY, J. Art as experience. US: Penguin Group, 1934.
RENAULT, L. M.; BARROS, S. E.O problema da análise em pesquisa cartográfica. Fractal – Revista do Departamento de Psicologia da UFF, v.25, n.2, 2013.