Papel Pinel em visita à instalação oBichoSusPensoNaPaisaGen, do artista Ernesto Neto. Leopoldina, Rio de Janeiro, 11 de outubro de 2012. Foto: Anita Sobar

O Corpo de memórias: vínculos afetivos tramados no tempo quando estamos juntos. Papel Pinel visita oBichoSusPensoNaPaisaGen
Bianca Bernardo

Olá, muito prazer, meu nome é Bianca Bernardo. Estou muito feliz que vocês estejam aqui. Veio quase todo mundo, como perceberam o caminho? Já conheciam este lugar? Vamos caminhar um pouco? Estamos na antiga estação. Arquitetura monumental de esqueleto aparente. Vigas de sustentação desnudam desenhos de formas sutis, desenhos de sombras dançantes ao pôr do sol. É bonito aqui. Vocês acham? Eu me lembro de pegar trem aqui, mas já faz tempo, muito tempo. Verdade, sempre que meu pensamento busca a antiga estação Leopoldina sinto o roçar da poeira em sussurros mansos de abandono. Tentei fazer de cabeça a conta dos anos passados. Medir a distância do tempo em cada centímetro de ferro e mármore, transportar o corpo para aquela outra cidade que existe debaixo dos meus pés – a cidade que cresce sobre a cidade e que desconhece e reconhece a si mesma nas múltiplas passagens de ocupação e organização dos espaços públicos. Estou de pé, na porta de entrada, à espera do grupo. Por algum motivo, todas essas informações atravessam meu corpo de memórias. Do lado de fora a paisagem é árida, cinzenta. Talvez, nem sempre tenha sido assim. Antes de sofrer o sucateamento dos meios de transporte coletivos já vigentes naquele Rio de Janeiro do passado, a estação Leopoldina pulsava como coração central da malha ferroviária que conectava distintas zonas da cidade. Nada obstante, há sempre zonas da cidade que são planejadas para estar eminentemente dentro e fora de lugar: espaços designados para a exclusão social, onde determinados grupos de indivíduos são desta maneira compreendidos e inevitavelmente condenados. Entre pontes invisíveis, a manutenção de manicômios através do discurso da homogeneização da loucura e sua distinção do padrão normativo autorizado na ordem do sensível, e o sucateamento da malha ferroviária resultante de modificações do território direcionadas por interesses capitais de pura especulação estão de acordo, de mãos dadas. Como podemos ultrapassar o viés opressivo do sistema de controle garantindo a transformação e a sobrevivência da nossa subjetividade? Uma brisa suave beija meu rosto enquanto penso comigo, baixinho. Belo dia para encontrar amigos. O encontro, como todos nós, conta uma história.

A visita do Papel Pinel começou mais de um ano antes, no dia em que nos conhecemos. Estávamos sentados à mesa, escolhendo os novos parceiros para o IrradiAções, um dos programas de ação continuada do Núcleo Experimental de Educação e Arte do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM)1. Entre as opções, escolhi o desafio de trabalhar com o Papel Pinel, um projeto de geração de renda e cidadania realizado dentro do Instituto Philippe Pinel2. Como um programa de ação continuada, a proposta apresentada para o IrradiAções deveria prever uma série de encontros entre a instituição parceira e o MAM. Ao longo de um ano, alternamos encontros pontuais entre as instituições, construindo uma relação de intimidade com o museu, ao passo que tencionávamos uma reinvenção do pertencimento ao serviço da saúde mental do qual o grupo configura-se como usuário. Pela primeira vez passei o portão do Hospital. Onde a loucura se derrama sobre a cidade? Onde a cidade esconde a loucura? Vi algumas pessoas ao sol ao cruzar o pequeno pátio. Usavam uniformes, a pele embrutecida como velha casca de árvore. Como as marcas que os amantes deixam ao escrever seus nomes, cada um deles, anônimos, olhos tristes e vagos em busca de vida, eu vi muitas carcaças. Naquele primeiro grande prédio à sua direita, quase no final do corredor você encontra a sala. Dra. Esther, a coordenadora do projeto, foi quem apresentou ao grupo. Neste dia, conversamos um pouco sobre o que eu estava fazendo ali, nada seguro, apesar da vontade que eu tive de nos conhecermos, despertar o interesse comum de passar um tempo juntos – porque um gesto de afeto abre muitos lugares dentro da gente.

Estou na porta, esperando a chegada do grupo. Uma pergunta base, não apenas para destituir o exercício da mediação de olhares conservadores em relação a essas ações em espaços expositivos – dentro e fora de museus – e que, em linhas gerais, têm a concepção da prática como serviço de mera interpretação, codificando obras de arte em discursos repetitivos, institucionalizados, e muitas vezes pré-estipulados por curadores, mas também para ser meu guia nesta escrita que parte da vontade de falar da vivência própria: como poderíamos definir a experiência com a Arte? Onde começa esse lugar de recepção? Qual a leitura que faríamos nas entrelinhas de um pequeno ensaio que lança voo sobre as potencialidades de mediação como ativação e provocação? Onde começa o corpo de memórias e de quais modos levamos as lembranças para outras experiências? Interessa-me pensar onde o contexto da recepção defronta uma dimensão criativa – para pensar, praticar e expandir os processos de produção de subjetividades e do próprio encontro com a Arte.

Lia, Sami, Daniel, Elise, Carol, João Batista, Ricardo, Esther. Estou muito feliz que vocês estejam aqui. Veio quase todo mundo, como perceberam o caminho? Já conheciam esse lugar? O que é? É algo novo, isso não estava aqui. Como os nossos olhos poderiam descrever? Uma grande estrutura tramada com cordas coloridas atravessa o espaço da antiga estação e pousa no ar. Depois de uma volta ao redor da obra, encontramos uma entrada possível. Retiramos nossos sapatos, guardamos as bolsas e mochilas. Lia olhou para mim, e nos seus olhos percebi que sentia um pouco de medo diante do desafio de subir naquela estrutura gigante. Vamos, Lia, coragem. Subimos engatinhando como bebês e quando nos sentirmos seguros, ficaremos de pé. Devagar, segurando bem nas paredes moles, um após o outro, pela grande língua-caminho fomos engolidos pelo Bicho Suspenso. Acho que parece uma casa na árvore, ou será um labirinto? Uma nave espacial, o interior de um animal, células, moléculas. Aquela artista japonesa que visitamos também era muito interessante. Lembramos das nossas infâncias, das nossas casas da infância, quando pulava o muro para roubar fruta, ou para namorar. Como voltar a ver de pequeno o mundo adulto, sentir-se solto para brincar, rir, encostar para dormir, cantar, ouvir e contar histórias… Dentro da obra do Neto habitamos a paisagem, somos a paisagem. Bianca, a gente podia passar o dia inteiro aqui dentro. Olhamos para as pessoas que passam embaixo de nós. Como você se sente? Muito bem, confortável. Eu tive um pouco de medo, passou. Vertigem? Não muito.

Como crianças, descobrimos os lugares da memória como casas vazias. Através do encontro, a experiência da nossa dimensão criativa acontece entre redes construídas por nós de memórias. Por meio de metáforas variadas, a memória, como atividade da vida psíquica, é definida por Freud em termos do aparelho, enfatizando as ideias de dispositivo, transmissão e transformação de energia. Esse aparelho psíquico tem valor de modelo, de ficção. No retorno a essas propostas teóricas, o aparelho psíquico expressa-se aberto às possibilidades de novas significações, sendo possível criar um pensamento poético sobre as propostas artísticas no contexto de recepção. Considerar a memória como relação possibilita que, a partir de cada novo encontro, a própria história individual ou coletiva possa ser reinventada através dos diferentes sentidos manifestos em suas relações. “Abre-se a possibilidade de que a memória, ao invés de ser recuperada ou resgatada, possa ser criada e recriada”, escreve Jô Gondar, “a partir dos novos sentidos que a todo tempo se produzem tanto para os sujeitos individuais quanto para os coletivos – já que todos eles são sujeitos sociais.”3

Arte e educação, neste sentido, caminham juntas na afirmação da teimosia do desejo de existir. O que me parece que esses encontros podem agenciar em nós é o confronto direto com uma imagem que irrompe o cotidiano, que escapa a todas as formas padronizadas e já conhecidas. O estranhamento e a irreverência deste encontro é o alcance de um ponto inominável. Encontrar-se com uma imagem em sua potência libertadora, no terreno fértil de criação de novas possibilidades, e nas novas possibilidades a confiança em si mesmo – fonte do desejo de ver-se na transformação do mundo.

Dizem que os lugares da memória são como casas vazias. Convido você a medir sua casa pelos espaços vazios.


1Mais informações disponíveis em: http://www.nucleoexperimental.wordpress.com.
2Mais informações disponíveis em: http://www.sms.rio.rj.gov.br/pinel/media/pinel_papel_pinel.htm.
3GONDAR, Jo. Quatro proposicões sobre memória social. Disponível em: http://www.scribd.com/doc/37483519/GONDAR-Jo-Quatro-Proposicoes-Sobre-Memoria-Social. Acesso em: 5 out. 2013.