Instituto Benjamin Constant em visita à instalação oBichoSusPensoNaPaisaGen, do artista Ernesto Neto. Leopoldina, Rio de Janeiro, 05 de outubro de 2012. Foto: Anita Sobar. Parceria: Núcleo de Pesquisa Cognição & Coletivos (NUCC)/UFRJ

O Corpo do Encontro
Bernardo Zabalaga

Desde a unidade até a globalidade, uma boa união faz uma boa força.

Guilherme Vergara1

Há um espaço onde a obra de Ernesto Neto se abre para o pensamento e a experiência deslocando os conceitos mais estáveis de escultura ou instalação. Para o grupo constituído por cegos e videntes que visitou a instalação oBichoSusPensoNaPaisaGen no 5 de outubro de 2012 parece que a obra expandira na imaginação das pessoas outro espaço-tempo, sobretudo a partir do fato de se ter permitido habitar a obra2. Esse foi um dos aspectos mais marcantes da visita, a construção de um coletivo que, ao compartilhar por um tempo prolongado o estar juntos, se deixa afetar e constitui vínculo.

Esta construção de vínculo se estabelece desde o momento em que, ao pensar a ação, a equipe (composta de artistas/educadores e pesquisadores) planeja, constrói e debate sobre qual seria o melhor percurso para chegar a estabelecer um espaço-tempo diferenciado3. O desafio está em permitir que as mesmas premissas que orientam a ação sejam as que orientem o planejamento. Para isso, se parte sempre de princípios básicos: uma ideia inicial pode ser re-elaborada pela equipe e os aspectos formais podem mudar de lugar até chegar a uma configuração que habilita o estar na experimentalidade e ao mesmo tempo ter um fio condutor e a conceituação da ação como suporte. Tudo isso sob um princípio norteador: tudo se configura no presente e o risco é parte do jogo.

Frame_BenjaminConstant_Gustavo_ (11)Instituto Benjamin Constant em visita à instalação oBichoSusPensoNaPaisaGen, do artista Ernesto Neto. Leopoldina, Rio de Janeiro, 05 de outubro de 2012. Filmagem/imagens: Gustavo Cruz Ferraz. Parceria: Núcleo de Pesquisa Cognição & Coletivos (NUCC)/UFRJ

De onde vem a necessidade da criação de um coletivo? Essa necessidade, embora implícita na boa constituição de qualquer dinâmica, não acontece a priori ou vem dada como um valor intrínseco do grupo que se apresenta na hora H na porta de um museu, galeria etc. O coletivo se cria e se estabelece do entendimento, estranhamento, tensão e distensão entre os indivíduos. É o motor desse espaço-tempo diferenciado que permite criar no simbólico pontes que conectam e atravessam a todos e a ninguém ao mesmo tempo. Permite essa fusão entre o genérico e o específico que abre os sentidos à experiência e se desdobra na clara sensação de pertencimento no coletivo e no lugar da ação. O grupo que se formou na visita deste Bicho Suspenso ligou inconscientemente a experiência ao ancestral da roda, da tribo e de uma troca sem um foco específico ou hierárquico. Dentro da obra, os princípios de estar e de conviver se afrouxaram, o movimento era o de se deixar cair, deitar, alongar, encostar e rir.

O simbólico entrou nas subjetividades e permitiu que as informações e sensações se tornassem a rede que suportava os corpos. O vínculo criado é esse dado intangível, é esse componente extra que facilita que o fluxo e os estados do fazer e do estar se alarguem e permitam que um novo corpo se revele. O caminho para que esse encontro corporificado se revele no coletivo, a configuração do inominável, ou como o define Suely Rolnik ao falar das proposições de Lygia Clark: “[a] conquista de uma intimidade com o ponto inominável de onde emergem as formas” – essa é a criação do vínculo. O ponto zero desde onde toda criação se expande.4

Dado o tamanho da obra era necessário que a visita fosse feita de maneira gradual, e que as ativações da percepção, pelo menos no início, seguissem um percurso mais lógico e organizado do que o habitual. Desde cedo foi claro para a equipe o desejo de ativar microentendimentos e aproximações poéticas e sensoriais da obra. Para isso, no início da visita, para o melhor acompanhamento dos deficientes visuais, fomos conversando sobre os vários elementos que por separado compunham essa extensa obra que, suspensa e amorfa, navegava sobre as nossas cabeças e habitava, ora leve, ora monumental, o grande hall de entrada da desativada estação Leopoldina. Aos poucos, manipulando separadamente os materiais, esclarecemos aspectos mais específicos da manufatura, dos números e quantidades necessários para fazer a estrutura em crochê, e da quantidade de pessoas envolvidas no processo.

03_Virgina_2imgsInstituto Benjamin Constant em visita à instalação oBichoSusPensoNaPaisaGen, do artista Ernesto Neto. Leopoldina, Rio de Janeiro, 05 de outubro de 2012. Filmagem/imagens: Gustavo Cruz Ferraz. Parceria: Núcleo de Pesquisa Cognição & Coletivos (NUCC)/UFRJ

O percurso começou com o toque e escuta de uma área da estrutura que estava mais perto do chão, e que por isso facilitava a exploração através do tato. Depois, e à medida que a obra se afastava do chão, veio o reconhecimento da variação de alturas, feito com as guias. Lembro que muito rapidamente fomos avançando, quase como que puxados por uma força gravitacional, até a entrada do Bicho. O dia era cálido e luminoso, o ânimo estava em cima e o grupo, embora ligeiramente tímido e cauteloso, foi rapidamente engolido para dentro da estrutura.

Dentro do Bicho, o convite era claro: em duplas, os participantes podiam andar e investigar os corredores e caminhos, participando desde uma perspectiva lúdica e descontraída. Podiam também parar, sentar, deitar, falar ou namorar. A constante procura por resultados visíveis ou até processos de ativação mais clássicos foi suspensa: o desejo natural e poético dentro da instalação era o de estar, sem mais. A sensação de permissão implícita que se instaurou, de prolongamento atemporal e de se autorizar à partilha pela palavra ou pelo íntimo ato de pousar o corpo sobre a rede era já um acontecimento. Lembro de ter tido a clara sensação de desistir de qualquer tentativa de guiar ou provocar um movimento ou conversa. O coletivo estava relaxado, pousado, suspenso. O tempo não era mais o de fazer. Era como se, entregues à nossa sorte, fôssemos levados por aquela gigantesca massa para outro lugar. O papo ia e vinha com todo o seu devir. A saída foi lenta e dengosa. Toda curva e desvio era uma desculpa para se jogar na rede, para brincar, saltar e rir. Um estado de infância se apoderara do grupo, e todos íamos, meio que motivados por uma agradável fricção, dando espaço à brincadeira.

Leandro: “Senti como se fosse um homem-aranha, subindo a teia das aranhas.”

Rose: “A gente não vê o óbvio, né? Então o que que acontece? Quando a gente não vê o óbvio, relaxa e goza, e pronto.”

Frame_BenjaminConstant_Gustavo_ (19)Instituto Benjamin Constant em visita à instalação oBichoSusPensoNaPaisaGen, do artista Ernesto Neto. Leopoldina, Rio de Janeiro, 05 de outubro de 2012. Filmagem/imagens: Gustavo Cruz Ferraz. Parceria: Núcleo de Pesquisa Cognição & Coletivos (NUCC)/UFRJ

Uma vez fora, a ideia era a de continuar testando e descobrindo como potencializar a experiência. O ateliê de Ernesto Neto fornecera uma série de materiais, e a nossa vontade era a de permitir que o grupo se organizasse de maneira experimental na descoberta de um corpo coletivo. Ora era a corda que nos segurava, ora a rede que nos cobria, ora para a direita, ora para a esquerda, todo movimento, ritmo e impulso solto. O caminho era o de trazer para o corpo a vivência dentro da obra. Tudo era possível: os acordos e ajustes se decidiam na hora, o grupo ia ritmando os tempos e movimentos, se libertando na ação. Era como se, ao contrário do impulso no interior da obra, do lado de fora o desejo respondesse a um estado mais ativo, de se jogar no mundo.

A experiência trouxe à tona muitas questões sobre o que significa descobrir com um coletivo de cegos e não cegos a vivência da arte. Poderemos começar a entender que tipo de questões surgem quando cegos e não cegos se juntam para ter uma experiência artística, na medida em que descobrimos como se modulam nesse coletivo as conexões e variáveis da experiência da arte. A partilha é necessariamente múltipla e ao mesmo tempo fragmentada. Dentro da complexidade que significa criar um corpo coletivo com as características desse, um dos pontos que se apresenta como uma fortaleza é o estranhamento e o sentido de diferença que necessariamente se apresenta aos participantes. Portanto, uma das premissas que deve delinear o encontro está em permitir que a vivência da arte se inscreva nessa multiplicidade fragmentada. Abrindo-se ao desconhecido e ao outro em mim desde uma sensorialidade múltipla; desejos, sentidos e capacidades cognitivas em definitivo trânsito e atravessamento. A arte no estar, o coletivo como obra múltipla, a vibração do grupo como o entendimento do meu lugar no mundo. E o vazio.

Nesse dia, a potência vital se amplificou e foi sustentada pela dinâmica da estrutura da obra. Criou-se o espaço do estar e o de gerar ação que não vem de um esforço feito de fora para dentro. Foi como se todo o impulso estivesse munido de um gérmen instaurado no impulso precedente. O fluxo correspondia às vontades do coletivo o tempo todo. A sensação que fica é aquela que se corresponde com um jogo de forças em equilíbrio, nem peso a mais nem peso a menos. A justeza como resultado do esforço aplicado. E um rédito: a memória da infância e da brincadeira livre e solta. Na lembrança, a fala da Rose durante a conversa final: “Então relaxa e goza, e pronto”. No meio do movimento, o grupo abrindo a percepção para uma vivência que, na sua qualidade, navega e flutua sobre o chão, sem deixar por isso de fazer uso das tensões e acordos necessários para existir ao par da obra, como toda criação artística. Um outro corpo se formou, efêmero e fugaz. Um corpo que, quando cuidadosamente invocado, passo a passo, se faz presente. Entre atravessamentos, partidas e chegadas fica algo de inominável. Talvez no próximo encontro poderá voltar.


O Corpo do Encontro. Instituto Benjamin Constant em visita à instalação oBichoSusPensoNaPaisaGen, do artista Ernesto Neto. Leopoldina, Rio de Janeiro, 05 de outubro de 2012. Parceria: Núcleo de Pesquisa Cognição & Coletivos (NUCC)/UFRJ. Filmagem: Paulo Victor Catharino Gitsin. Edição: Bernardo Zabalaga. Música: Pili Pili


1Comentário no encontro com cegos e videntes feito pelo Luiz Guilherme Vergara, coordenador do encontro.
2Explicação do uso de termos cegos e videntes baseado na prática e pesquisa de Virginia Kastrup, coordenadora do Núcleo de Pesquisa, Cognição e Coletivos (NUCC), Universidade Federal de Rio de Janeiro (UFRJ): “Utilizamos aqui o termo vidente para nos referir à pessoa que possui visão dentro dos parâmetros de normalidade e o termo cego para nos referir àqueles que possuem deficiência visual total ou parcial (“baixa visão”). Há outros termos usuais na área, como “deficiente visual”, “portador de deficiência visual” e “portador ou pessoa com necessidades especiais”. Embora haja uma longa discussão a este respeito nas diferentes áreas (educação, psicologia, acessibilidade), com diversos argumentos a favor e contra, não há consenso. Num balanço geral, pode-se dizer que hoje prevalece a noção de pessoa com deficiência visual (incluindo cegos e baixa visão), pessoa cega ou simplesmente cego (Moraes e Kastrup, 2010). Nossa escolha pela utilização do termo “cego” ou “pessoa cega” deu-se ao longo do projeto e justificou-se pelo fato de ser o termo mais corrente entre essas próprias pessoas, além de evitar caracterizá-las apenas pela questão da deficiência.”
3Os artistas/educadores éramos eu, Bernardo Zabalaga, e Bianca Bernardo, em colaboração com a coordenação do Núcleo Experimental de Educação e Arte (2010-2013) do MAM Rio de Janeiro e do NUCC/UFRJ e Instituto Benjamin Constant.
4 ROLNIK, Suely. Lygia Clark e a produção de um estado de arte. Imagens, Campinas, Ed. Unicamp, n. 4, p. 106-110, abr. 1995.