Registro da instalação oBichoSusPensoNaPaisaGen, do artista Ernesto Neto, por alunas do curso de fotografia da Spectaculu – Escola de Arte e Tecnologia. Leopoldina, Rio de Janeiro, 26 de setembro de 2012. Foto: Lidi Cutrim e Kelly Malheiros. Parceria: Spectaculu.

O Pescador de Pérolas
Anita Sobar

Este texto pretende refletir sobre o contexto artístico como um espaço discursivo para a realização criativa do ato de educar, em que a experiência com a obra de arte não se limita ao campo da arte, é também uma ferramenta para compreender o mundo, e como o projeto educativo do artista provoca novas formas, incitadas pela observação de desvios que escapam aos contornos fixos.

A coleta de experiências como obra de arte

Como um pescador de pérolas que desce ao fundo do mar, não para escavá-lo e trazê-lo à luz, mas para extrair o rico e estranho, as pérolas e o coral das profundezas, e trazê-los a superfície.
Nas profundezas do mar, onde afunda e se dissolve aquilo que outrora foi vivo, algumas coisas sofrem uma transformação marinha e sobrevivem em novas formas e contornos cristalizados que se mantêm imunes aos elementos, como se esperassem o pescador de pérolas que um dia descerá até elas e as trará ao mundo dos vivos.

Hanna Arendt1

A proposta foi desenvolver um conjunto de ações a partir da instalação do artista Ernesto Neto, oBichoSusPensoNaPaisaGen, em diálogo com a arquitetura da antiga estação de trem da Leopoldina para provocar processos de subjetivação, potencializando as experiências do público com a obra e a cidade.

A instalação reserva um lugar central na negociação, onde a estrutura penetrável confirma o desejo de fazer do espectador elemento central da obra, significado do trabalho – no seu interior o visitante anda, equilibra, aconchega o corpo; a experiência estética do bicho que não somos desmancha as fronteiras do que é particular do campo da obra de arte e o que pode ser do caminhar da própria vida.

1_Anita_Lomo 2imgs copyGrupo de alunos da Spectaculu – Escola de Arte e Tecnologia em visita à instalação oBichoSusPensoNaPaisaGen, do artista Ernesto Neto. Leopoldina, Rio de Janeiro, 19 de setembro de 2012. Foto: Anita Sobar

Esta obra me dá possibilidade de existir ou me anula? O espaço-tempo sugerido por essa obra, com as leis que a regem, correspondem às minhas aspirações na vida? Ela critica o que julgo criticável? Eu poderia viver no espaço-tempo que lhe correspondesse na realidade?

O objetivo de cada ação era criar um território poético para gerar diálogos reflexivos – consigo e com o mundo – para coletar pérolas e ampliar a trama do bicho na paisagem.

O grupo em questão é de jovens alunos e ex-alunos da Spectaculu – Escola Fábrica de Espetáculos, ONG criada em 2000 por Gringo Cardia, situada no Cais do Porto, que reúne jovens de mais de 90 comunidades da periferia do Rio de Janeiro.

No projeto foram envolvidos 60 jovens – alunos dos cursos de arte e tecnologia, alunos dos cursos de artes cênicas e ex-alunos formados em diferentes cursos pela escola que na ocasião atendiam como monitores da mostra na tarefa diária de mediador.

Tirei o sapato, subi. Imediatamente me veio o desconforto do toque dos meus pés na linha, a sensação de vertigem por estar pisando em um território instável, o estranhamento, o medo – a minha curiosidade me fez seguir em frente. Pude perceber a obra reagindo ao meu corpo. Estávamos trocando experiência, respondendo um ao outro. Então o bicho me pegou. Pude sentir nele a potencialidade entre arte e vida.

Beatrice Martins, aluna do curso de marketing visual

Ação I: Corpo/obra – a escultura como estrutura viva coletiva

A instalação é uma ocasião para uma experiência sensível baseada na troca do corpo do espectador com o corpo da obra no espaço-tempo suspenso. A ideia é questionar o caráter antropomórfico do trabalho e criar um mapa da simbiose da arte com a vida.
Depois de vivenciar e compartilhar com o grupo atribuímos à obra características humanas e criamos um só corpo a partir das associações, em que cada jovem respondia com o corpo ao movimento do outro, criando uma coreografia orgânica.

Onde o indivíduo não é meramente um espectador, mas parte da obra como um todo que é coletivo. Se a necessidade da arte é ajudar a entender melhor a vida, nada mais justo que nós sejamos a arte.

Lucas Reis, aluno do curso de fotografia

O corpo é arte e a arte possui corpo. É essencial pensar essa obra como o próprio corpo humano e ver como metáfora das relações e emoções. A interação é nossa dinâmica de troca com o outro. É interação com outra pessoa: deixo um pouco de mim e levo um pouco do outro.

Ivy de Souza, aluna do curso de fotografia

Na fluência criativa, o grupo avança a obra em si, questiona seus limites e vê o processo como um aprendizado existencial.

6_Kelly Malheiros_2imgsRegistro e grupo experimentando a obra oBichoSusPensoNaPaisaGen, do artista Ernesto Neto. Registrado por alunas do curso de fotografia da Spectaculu – Escola de Arte e Tecnologia. Leopoldina, Rio de Janeiro, 26 de setembro de 2012. Foto: Lidi Cutrim / Kelly Malheiros. Parceria: Spectaculu.

Ação II: Continuidade da superfície – dentro e fora para a mobilidade

Marcas humanas se inscrevem nos elementos formais da escultura e na necessidade da proximidade física dos corpos para que ela adquira sentido – o espectador é a extensão, continuidade de volume, superfície e conceitos implícitos na obra.
Criamos a continuidade da obra a partir de assuntos que o corpo sustenta no fluxo cotidiano, agenciando confronto entre forças distintas, utilizando os seguintes conceitos atrelados à obra: dobra, acúmulo vazio, agrupamento, densidade, elasticidade, acaso, peso, recolhimento, resistência, tensão, isolamento.

O debate foi uma tentativa poética de criar um coro de reivindicações – manifestação política a partir de metáforas.

A ideia do artista nos fez refletir sobre o que tem ao nosso redor, as grandes construções urbanas que compõem a nossa cidade – até onde eu vou e que cidade me pertence?

Laís Miranda, aluna do curso de marketing visual

A vida que levamos – a rotina nos aprisiona, a obra cria uma nova possibilidade, uma nova realidade critica o comum e confortável – nos provocando.

Guilherme Pinheiro, aluno do curso de fotografia

O conceito de dobra de Gilles Deleuze remete ao aspecto coexistencial do dentro e do fora, bem como uma configuração entre os fluxos e as formas que tramam determinados planos históricos pertencentes à ordem do acontecimento. Tais considerações nos incitam a observar alguns desvios que escapam aos contornos fixos, como o conceito de nômade, proposto ainda por Deleuze. O pensamento nômade considera o acontecimento como algo que provoca e produz a desacomodação, ou seja, se constitui na mobilidade do próprio pensamento.

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Grupo de alunos da Spectaculu – Escola de Arte e Tecnologia em visita à instalação oBichoSusPensoNaPaisaGen, do artista Ernesto Neto. Leopoldina, Rio de Janeiro, 19 de setembro de 2012. Fotos: Anita Sobar

Ação III: O homem nada mais é que um sopro

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Grupo experimentando a obra oBichoSusPensoNaPaisaGen, do artista Ernesto Neto. Registrado por alunas do curso de fotografia da Spectaculu – Escola de Arte e Tecnologia. Leopoldina, Rio de Janeiro, 26 de setembro de 2012. Foto: Lidi Cutrim. Parceria: Spectaculu.

O trabalho do artista Ernesto Neto presta-se tanto a uma relação de exterioridade, na qual é apreendido apenas como forma e volume, quanto a uma relação de interatividade. A ideia é dar forma à singularidade da experiência e compartilhar.

O Homem nada mais é que um sopro.
E a trama de seus anos é curta e frágil.
Cabe a nós…
Sabiamente, usar o prazer para embelezar,
O mais que pudermos, os nossos instantes.2

Depois de experienciar a obra, com cautela, escrevemos em um papel o sonho adquirido e colocamos dentro de um bolão – o sopro de esperança deu forma à escultura. A intenção era sair da estação e compartilhar sonhos com os passantes. Provocar, tomar de assalto e propor outras leituras para libertá-los das coisas ao redor.

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Grupo experimentando a obra oBichoSusPensoNaPaisaGen, do artista Ernesto Neto. Registrado por alunas do curso de fotografia da Spectaculu – Escola de Arte e Tecnologia. Leopoldina, Rio de Janeiro, 26 de setembro de 2012. Foto: Lidi Cutrim. Parceria: Spectaculu.

Para Ernst Bloch, o presente é uma espécie de ponto cego e o utópico é sustentado pelo sonho para frente, não aponta para o agora, é a busca.

O homem é alguém que ainda tem muito pela frente. No seu trabalho e através dele, ele é constantemente remodelado. Ele está constantemente à frente, topando com limites que já não são mais limites; tomando consciência deles, ele os ultrapassa.3

E a aprendizagem como arte sustenta o sonho para frente. Na pedagogia da autonomia, Paulo Freire coloca que ensinar exige estética e ética – decência e boniteza de mãos dadas4. Formação ética sempre ao lado da estética. Somos seres histórico-sociais, e nos tornamos capazes de comparar, de valorar, de intervir, de escolher, de romper – e só somos porque estamos sendo.

A coleta de experiências como obra de arte

As ações foram ancoradas na ideia de que a arte é meio de apreensão e de simultânea reinvenção da realidade. Vivemos em um mundo de conflitos diversos e os padrões a serem seguidos de sociabilidade são o tempo todo questionados. O projeto “O pescador de pérolas” propôs interromper as coordenadas habituais e fazer do contexto social do espaço da arte o meio para reverberações, em muitas de suas formas, colocando o sujeito em contato com maneiras de pensar e fazer para além do consenso.

2_Kelly Malheiros 002Grupo experimentando a obra O Bicho Suspenso na Paisagem, do artista Ernesto Neto. Registrado por alunas do curso de fotografia da Spectaculu – Escola de Arte e Tecnologia. Leopoldina, Rio de Janeiro, 26 de setembro de 2012. Foto: Kelly Malheiros. Parceria: Spectaculu.


1ARENDT, Hannah. Walter Benjamin: 1892-1940. In: Homens em Tempos Sombrios, São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 222.
2Escritas poéticas da autora.
3BLOCH, Ernst. O Princípio da Esperança, v.1. Trans. Nelio Schneider. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2005 p.243.
4FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia, p. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1997. p.45