1_Claudia Zeiske_town is venueA cidade é o espaço. Centro da cidade e arredores, Huntly, Escócia.

A cidade é o espaço: arte, comunidade e lugar
Claudia Zeiske

A cidade é o espaço (“The Town is the Venue”) é uma prática de curadoria desenvolvida nos últimos 15 anos na Deveron Arts, organização de artes contemporâneas de Huntly, pequena cidade rural do nordeste da Escócia. Diferentemente da grande estrutura das artes contemporâneas que favorece os moradores de metrópoles urbanas, nosso trabalho demonstra que é possível criar uma vida sustentável para esse tipo de arte no contexto de uma cidade pequena. Não temos um centro de artes; a cidade, sua história, geografia e vida comunitária são o material, o contexto e o local da intervenção artística. A passagem para novas formas de prática artística incorporadas ao local se deu ao longo das últimas décadas. O livro Six Years: The Dematerialization of the Art Object from 1966 to 1972, de Lucy Lippard, foi um dos precursores das práticas artísticas mais ligadas ao processo e baseadas em experiências. Recentemente, outros estudiosos contribuíram com novas estruturas críticas e percepções sobre participação, diálogo e comunidade nas práticas das artes contemporâneas. Grant Kester reuniu estudos de casos de artes desde a década de 1960 até a virada do século em Conversation Pieces: Community + Communication, 2002. Artificial Hells, 2012, de Claire Bishop explora a arte socialmente engajada do século XXI. Ainda assim, se o foco em como os curadores podem promover uma prática socialmente engajada tem sido relativamente raro, o que dizer da atenção dada àqueles de nós que estão tentando realizar um trabalho criativo e crítico em cidades pequenas e ambientes rurais. Em 2010, publiquei, junto com o curador Nuno Sacramento, ARTocracy: Art, Informal Space and Social Consequence com o objetivo de ajudar a preencher essa lacuna. O presente artigo tem por base esse material, destacando aspectos fundamentais do nosso trabalho e descrevendo uma série de projetos artísticos socialmente engajados realizados nos últimos cinco anos.

Arte em que contexto?

A história da Deveron Arts tem início neste contexto. Em 1995, três moradores de Huntly com afinidade de ideias, Annette Gisselbaek, Jean Longley e eu, sentimos que não existiam atividades culturais suficientes na região. Tínhamos em comum o fato de termos nos mudado para lá de cidades maiores (Copenhague, Londres, Berlim). Huntly é um centro comercial com população de 4.500 habitantes, que atende a região à sua volta num raio de cerca de 20 quilômetros, e tem ainda outros 4.500 habitantes de propriedades rurais ou pequenos povoados e vilarejos. Os grandes centros urbanos mais próximos que possuem espaços culturais são Edimburgo e Glasgow, ambas a cerca de quatro horas de distância de trem ou de carro. É a localização rural que a torna especial enquanto centro de desenvolvimento de artes contemporâneas no norte do país.

2_Huntly in Scotland map
Mapa da Escócia com Huntly, conforme vista do sul.

Huntly está situada a 57° norte; logo acima dessa longitude ficam as cidades de Quebec, Estocolmo e São Petersburgo e, mais acima ainda, as maiores cidades são Helsinki, Turku e Rovaniemi. Fora isso, pouquíssimas cidades passam dos 100 mil habitantes, sendo que a grande maioria da população vive em comunidades que não diferem muito de Huntly. As necessidades e recursos sociais para abrigar um programa de artes contemporâneas nesse tipo de cenário demandam um tratamento muito diferente do que geralmente se dá às metrópoles do sul do país.

A cidade remonta ao século XV, com a chegada do Clã Gordon1, que construiu o Castelo de Huntly, hoje em ruínas. O centro é uma área tombada, com suntuosa arquitetura em granito indicando seu passado de prosperidade. A vida hoje, assim como no passado, gira em torno de uma praça histórica no centro, e a cidade abriga mais de 140 clubes e sociedades, desde Institutos Rurais para Mulheres até um Rotary Club e o Fundo de Desenvolvimento de Huntly, este relativamente recente. Além disso, conta com uma rede cultural que abrange desde a tradicional gaita de fole, música e danças folclóricas escocesas até os âmbitos contemporâneos da Deveron Arts.

Há bastante mudança econômica no ar. Os maiores empregadores são os serviços públicos. Em termos de indústria, houve muita transformação, com empresas buscando terceirização na Europa Oriental. O advento da internet gerou algumas mudanças na vida econômica das redondezas, levando ao estabelecimento de alguns pequenos negócios na região, muitas vezes para fugir dos preços dos imóveis do sul e buscar um estilo de vida mais tranquilo. Como muitas outras cidades no norte da Escócia, a posição econômica de Huntly foi enfraquecida com o declínio da agricultura, mudanças nos hábitos de consumo (como compras pela internet) e a centralização dos serviços em pólos maiores no sul do país. Dois novos supermercados localizados nos limites da cidade apresentam um importante desafio para o centro comercial tradicional da cidade. A decadência é visível no centro, que agora ostenta lojas vazias, bazares de caridade e terrenos industriais pouco desenvolvidos ao lado de lojas tradicionais, como açougues, padarias e uma livraria. Assim, Huntly tem sido identificada como uma região socialmente vulnerável, com desemprego relativamente alto e uma série de indicadores de pobreza. Por outro lado, a cidade foi considerada parte do corredor de crescimento de Aberdeenshire, que contempla desenvolvimento para os próximos 25 anos. Esse fato certamente apresenta oportunidades econômicas, mas o que significará para a cidade? Crescimento imobiliário, aumento de migração, construção de mais parques eólicos, mais conexões?

Embora singulares sob vários aspectos, diversos obstáculos para a criação de uma organização de artes contemporâneas são encontrados em cidades de porte semelhante. Após realizar, logo no início, diversos cursos de verão, oficinas e pequenas mostras, a Deveron Arts começou a pensar na criação de um espaço. Os resultados de um estudo de viabilidade, porém, não foram favoráveis devido à fraca base financeira e à localização remota. Em comparação com ambientes urbanos, o público provável era limitado pelo alcance geográfico e não existia público já acostumado a visitar galerias para garantir o comparecimento a eventos. Os custos financeiros de adquirir ou construir um espaço dificilmente gerariam retorno algum dia e a população local poderia até se sentir excluída se o espaço seguisse o modelo projetado para gostos modernos, urbanos e cosmopolitas.

Essa situação repete-se em muitas outras cidades rurais do mesmo porte em todo o mundo. Considerando-se especialmente o “norte”, o tamanho e distanciamento aumentam quanto mais nos aproximamos do ártico. O tamanho de Huntly é importante: a cidade é observável; poderíamos até dizer “controlável”. Tem aproximadamente 1 quilômetro quadrado de área e, andando-se em passo rápido, leva-se dez minutos para ir de uma extremidade à outra. Isso nos permite considerar a cidade como um todo controlável, como uma grande e animada galeria: um lugar espaçoso, que pode ser examinado minuciosamente do ponto de vista artístico.

Para as três pessoas que iniciaram a Deveron Arts, a primeira motivação foi pessoal. Como todos tinham um passado internacional, decidiram trazer elementos dessa experiência para Huntly. A arte parecia um bom processo para contrapor as necessidades de um contexto local como o de Huntly com contextos internacionais. Por trás de tudo estava a noção de que uma cidade com variedade de culturas, comidas e hábitos forma uma comunidade mais rica. A segunda motivação foi social. Poderíamos dizer que Huntly, assim como muitos outros lugares, precisava disso. Huntly já foi muito criticada por ser uma comunidade que se orgulha pouco de si. Como em muitos outros lugares na Europa, os jovens estão se mudando e a população está envelhecendo. O cinema fechou há muito tempo, deixando uma lacuna de entretenimento. Mas a história e herança de Huntly são muito mais ricas do que se vê à primeira vista. A cidade tem muitos bares, clubes, um mercado, tradições musicais que incluem os bailes Ceilidh, centros de esportes, figuras históricas importantes, etc., e inúmeros temas sociais e culturais para inspirar um programa artístico. Junte-se a isso um grande número de pessoas animadas, inspiradas e talentosas e temos em Huntly um ótimo lugar para morar, trabalhar e realizar experiências.

Como a arte se encaixa nesse contexto?

Para A cidade é o espaço, começamos com a escolha de um tema. Diferentemente de um imóvel, em que os parâmetros físicos definem as possibilidades logísticas de cada evento ou projeto, quando a cidade é o espaço, as possibilidades são definidas pelo caráter social, cultural e geográfico da cidade. Selecionar o tema certo é fundamental, pois é ele que cria a relação entre o artista visitante e a comunidade local. Como o público da Deveron Arts consiste principalmente nas pessoas que moram no distrito de Huntly, o tema precisa mobilizá-las.

Não importa tanto se A cidade é o espaço se situa no espaço público da cidade ou se desloca para áreas rurais. A cidade é vista como o perímetro que define a localização de temas e não só de espaços ou construções. A identificação de um tema que seja relevante para a vida social das comunidades é realmente fundamental e, a partir daí, um artista é convidado para trabalhar com elas em torno desse tema. Qualquer tópico é válido desde que encontre ressonância com o contexto cultural, social e histórico da cidade. Esse ponto de partida é incomum, pois os projetos costumam partir de ideias intelectuais do curador e do artista, apresentadas como uma visão original para que o público admire e manifeste reações. Em Huntly, isso simplesmente não funcionaria.

Para identificar os temas e os grupos com os quais a Deveron Arts quer trabalhar, realiza-se uma auditoria cultural, que determina vários fatos relativos à vida e recursos da comunidade (por exemplo: número de moradias, nível de emprego, etc.) como parâmetro para a pesquisa e desenvolvimento. A auditoria cultural contém todos os tipos de fatos, desde dados demográficos (tamanho, economia e situação geográfica) a interpretações mais subjetivas (questões políticas e problemas sociais). Essa auditoria nos ajuda a identificar ideias, temas e tópicos para tratarmos na colaboração com a comunidade e com os artistas envolvidos. A pesquisa para identificar os tópicos e espaços, além das pessoas e grupos com os quais a Deveron Arts quer trabalhar, baseia-se em grande medida no boca a boca e no envolvimento direto, usando um método de observação participante emprestado da antropologia social.


Diagrama que explica a auditoria cultural para Huntly. Traduzido do livro  ARTocracy: Art, Informal Space and Social Consequence

Diagrama de Contexto do ARTocracy

Cabe destacar neste ponto que, embora os artistas sejam moradores temporários, toda a equipe da Deveron Arts mora na cidade onde fazemos a curadoria de projetos. Somos parte integrante da comunidade e temos as mesmas responsabilidades sociais para com ela que todos os outros moradores. Esse senso de pertencimento permeia a pesquisa contínua realizada diariamente por meio de uma série de atividades na cidade, que incluem desde o comparecimento a eventos públicos, leitura da imprensa local e encontros frequentes com sua equipe editorial até a participação em conselhos e comitês. É vital que toda equipe, inclusive estagiários e temporários, sinta-se à vontade com essa forma de trabalhar e estilo de vida e que, se necessário, sejam capacitados para aplicar esses métodos.

A pesquisa antropológica participativa é fundamental para a realização de uma auditoria cultural e é ela que norteia a definição de tópicos relevantes que podem ser aplicados com proveito em praticamente qualquer cidade pequena. Como resultado da auditoria cultural de Huntly, os projetos da Deveron Arts hoje são estruturados livremente em torno de temas de meio ambiente, herança, identidade e questões intergeracionais. Esses temas passam por uma série de tópicos específicos que podem ser questionados e explorados em relação às particularidades da cidade e dentro de uma gama variada de práticas artísticas. Após a auditoria cultural e a definição de temas amplos, podemos começar a formar uma estrutura organizacional e convidar artistas para projetos específicos.


Diagrama que explica como fazer sua própria auditoria cultural. Traduzido do livro  ARTocracy: Art, Informal Space and Social Consequence

Como fazer arte nesse contexto?

O processo de definição de uma estrutura organizacional geral e a coordenação de projetos individuais requer diversas camadas. Neste ponto, voltamos ao essencial e relacionamos todos os detalhes relativos a pessoas, contexto, processos e resultados para a elaboração de projetos.

Todos esses itens devem ser considerados para cada projeto, mas as experiências em termos de ênfase e organização garantem a constante evolução e desenvolvimento da organização. Por exemplo, em alguns casos, pode ser que os financiadores tenham um poder de decisão maior quanto ao direcionamento de um determinado projeto, enquanto em outros, tenha mais a ver com as partes interessadas e o público ou o artista. A Deveron Arts é financiada por uma ampla gama de recursos públicos, privados, locais e internacionais, bem como parte de sua própria renda advinda de eventos e vendas. Alguns projetos podem ter resultados físicos muito concretos, enquanto projetos mais efêmeros podem gerar uma mudança de opinião duradoura. Cabe aos curadores (na Deveron Arts, eu e o curador externo nomeado para cada projeto) negociar o equilíbrio como um todo entre essas camadas da programação organizacional.

Chamamos esse malabarismo de abordagem meio a meio. Ou seja, metade local e metade internacional; metade da comunidade e metade do mundo artístico; metade de artistas emergentes e metade de artistas de renome; metade com motivação conceitual e metade com motivação organizacional. É importante que esse equilíbrio seja aplicado em todos os níveis: na seleção de artistas, temas e espaços, mas também em termos operacionais, como captação de recursos, marketing, aprendizado e ensino. O conselho de administração consiste estritamente em 50% de moradores locais (um professor, um contador e um assistente social) e 50% de profissionais de artes (curadores, artistas e outras pessoas do setor cultural). Com isso, temos um mecanismo que garante a boa qualidade dos projetos tanto em termos artísticos como na resposta às questões sociais locais.

É com esse equilíbrio que a Deveron Arts cria um espaço para que as artes sejam consideradas e valorizadas na cidade e também para que a cidade seja considerada e valorizada no discurso artístico internacional. Devido ao contexto relativamente pequeno e remoto em que esse método é aplicado, a relação com o mundo das artes mais amplo não é automática. Um esforço muito proativo deve ser realizado para manter o contato com movimentos artísticos e tendências, convidando para a cidade não só artistas, mas diversos outros profissionais. Um método que se mostrou eficaz é convidar um “curador-sombra” para cada projeto. Trata-se de um profissional das artes externo selecionado para cada projeto para oferecer uma voz crítica sobre o desenvolvimento conceitual e organizacional do projeto. Assim como os ministros do “Shadow Cabinet”2, um componente do sistema de governo do Reino Unido, o relacionamento do curador-sombra com o curador principal é comparável ao relacionamento do ministro desse gabinete da oposição (o “ministro-sombra”) com o ministro que está no poder: um relacionamento de oposição pacífica e construtiva ou de antagonismo crítico. Entretanto, ao passo que o ministro-sombra está interessado na queda de seu oponente para tomar o seu lugar, o curador-sombra está interessado em fortalecer a posição do curador, resultando, portanto, numa prática curatorial mais robusta. O primeiro curador-sombra da Deveron Arts foi Nuno Sacramento3, natural de Moçambique e morador da Escócia, que desenvolveu a metodologia. Em seguida, vieram o escritor e pesquisador François Matarasso4, que trabalhou no Palace of Puzzles (Palácio de Enigmas), do Utopia Group; o artista Dave Beech5, curador-sombra de How do you live this place? (Como se mora este lugar?), de Maider Lopez, e a curadora e crítica Christine Eyene6, que trabalhou em Mbereko, de Nancy Mteki.

Depois de definido o tema e desenvolvida uma estrutura organizacional geral, os curadores podem começar a convidar artistas para criar projetos. Os curadores inserem-se na comunidade e propõem debates entre a população e os artistas visitantes. Um artista é convidado a morar por algum tempo na cidade. Essa residência, ou período longe de sua casa, tem uma importância especial, pois significa que o artista está totalmente comprometido com o projeto e, ao mesmo tempo, chega com um novo olhar sobre o contexto. A Deveron Arts recebe quatro artistas residentes por ano, sendo que cada residência dura cerca de três meses. Em nossa experiência, esse período funciona bem. Se a duração é menor, é difícil entender inteiramente a cidade, desenvolver ideias conceituais e colocá-las em prática; se o período é mais longo, os artistas costumam achar complicado compatibilizar a residência com suas vidas pessoais em sua cidade de origem. Outra questão é que os projetos podem crescer demais a ponto de perturbar o equilíbrio organizacional, ficando difícil determinar quando encerrá-los.

O fato de virem artistas de todas as partes do mundo tem um profundo impacto na comunidade. Eles trazem novas ideias e abordagens para velhos temas, valorizando, ao mesmo tempo, as especificidades do lugar onde estão trabalhando. Os artistas envolvem-se mais profundamente com partes da comunidade que se interessam sobre um determinado tópico. Depois das primeiras semanas, pedimos para o artista finalizar uma proposta, descrevendo detalhadamente as pessoas e o formato de um projeto de seu interesse. Em seguida, começamos a buscar contextos, locais e colaboradores adequados.

O projeto Slow Down (Desacelere), da artista Jacqueline Donachie, pode ajudar a ilustrar como um tema é desenvolvido em termos conceituais e pragmáticos.


Jacqueline Donachie: Slow Down, 2009, Deveron Arts. Foto: Alan Dimmick

Análise do projeto – Meio ambiente
Slow Down, 2009, Jacqueline Donachie

Resumo do projeto

Os curadores selecionaram o tema do transporte. As questões ambientais estão no topo da agenda política da Escócia e de todo o Reino Unido e estão sendo abordadas com frequência em diversos fóruns e por várias disciplinas. O planejamento urbano vem tratando da questão de cidades sem carros, desafiando a tendência difundida na segunda metade do século XX, que transformou muitas praças municipais em estacionamentos, inclusive em Huntly. Hoje, é amplamente reconhecido que esses estacionamentos são lugares feios, antissociais e inseguros para crianças, moradores e visitantes. Como a qualidade de vida mudaria em nossos centros comerciais se o acesso dos carros fosse limitado a entregas e coletas e as áreas centrais das cidades fossem dedicadas a ciclovias, parques e outros espaços sociais? Qual seria a cara das nossas cidades se, em alguns minutos de bicicleta, pudéssemos chegar a lojas, academias, escolas e campos de golfe? E qual seria o efeito de pedalar e andar nas nossas vidas diárias?

O processo artístico

A artista convidada para tratar dessa questão foi Jacqueline Donachie, de Glasgow, depois de previamente consultada. Jacqueline tem um histórico de prática socialmente engajada, trazendo problemas difíceis de planejamento à atenção da comunidade7. Pensando em locais no exterior que são bons exemplos de cidades onde os carros são proibidos(como Hallstatt, na Áustria, Zermatt, na Suíça, e Vauban, na Alemanha), Jacqueline decidiu que tentaria transformar Huntly, temporariamente, numa área livre de carros.

A artista iniciou o processo com uma ampla consulta à comunidade, que permitiu ao público externar suas opiniões sobre a questão de restringir o uso de carros em Huntly. Isso por si só gerou um debate acalorado, enfatizando o papel do artista como catalisador crítico. Muitos moradores de Huntly amam seus carros, e a logística de banir os carros da cidade simplesmente não era prática dentro do contexto de uma residência de três meses.

Como seria praticamente impossível fechar toda a cidade, o projeto se desenvolveu em torno do fechamento da praça. Essa ação foi incorporada a um festival de três dias da Deveron Arts dedicado a caminhadas e ciclismo, denominado Slow Down (Desacelere), que reuniu grupos e organizações específicos, bem como a comunidade local, para comemorar e promover atividades tranquilas e ambientalmente sustentáveis.


Jacqueline Donachie: Slow Down, 2009, Deveron Arts. Foto: Alan Dimmick

Durante o período de residência antes do festival, o programa incluiu uma anistia das bicicletas da cidade, oficinas de conserto de bicicletas e aula de ciclismo para novatos. Tudo em colaboração com a AutoSpares, oficina que, desde então, diversificou sua atividade, passando a oferecer peças e serviços para bicicletas. Durante o festival propriamente dito, Jacqueline incentivou o máximo de pessoas a pedalarem pela cidade, culminando num grande desfile sobre rodas em que 100 moradores locais saíram com um mecanismo sob medida acoplado a suas bicicletas que desenhava linhas de giz coloridas nas ruas enquanto pedalavam. O desfile criou um desenho de seis quilômetros de diâmetro, com a cidade como tela, deixando uma faixa de cor nas ruas que levou dias para desaparecer.


Jacqueline Donachie: Slow Down, 2009, Deveron Arts. Foto: Alan Dimmick

Durante o processo, Jacqueline também mobilizou negócios, escolas e muitos grupos locais para discutir como Huntly poderia desenvolver uma abordagem mais sustentável. O projeto buscou incentivar o uso da bicicleta – incomum na Escócia até hoje – como meio de transporte alternativo, capaz de levar a melhorias no meio ambiente, com a redução das emissões de carbono, mas também na qualidade de vida e na saúde.

A praça de Huntly ainda não foi transformada em área para pedestres, mas o projeto continua vivo na memória das pessoas e é lembrado com frequência como exemplo de grande evento que reuniu diferentes ideias da comunidade de forma divertida.


Jacqueline Donachie: Slow Down, 2009, Deveron Arts. Foto: Alan Dimmick

Análise do projeto – Social
A Perfect Father Day? (Um dia do pai perfeito?), 2011, Anthony Schrag

Resumo do projeto

A imagem estereotípica da família euro-americana – mãe, pai e dois filhos morando numa casa –, muito propagada depois da 2ª Guerra Mundial, está rapidamente se tornando um mito. O censo de 2011 confirmou que, agora, uma proporção maior de famílias britânicas é formada por pais ou mães sozinhos, filhos adultos morando com os pais e aposentados. É um aumento considerável desde o último censo em 2001. Para a Deveron, esse fato gerou interesse pela mudança da dinâmica da unidade familiar e, especificamente, pelo papel do pai na família moderna, tendo em vista sua ausência, seja por motivo de trabalho ou do rompimento de um relacionamento. Começamos a formular perguntas provocativas: para que servem os pais?

O artista de Edimburgo Anthony Schragfoi convidado para uma residência de três meses entre abril e julho de 2011 para pensar a questão. Anthony é um artista socialmente engajado, que usa a experiência física do corpo em sua prática. No passado, fez paredes tombadas e pisos grudentos, sequestrou vereadores e escalou prédios para envolver o público com a arte e seu papel na mudança da sociedade.

A obra de Anthony busca levantar o tipo certo de perguntas e, portanto, seu trabalho em Huntly desenvolveu-se de formas que incentivaram um envolvimento de qualidade com os moradores locais, convidando-os a examinar o papel da paternidade (e dos homens em geral). Como a noção de paternidade/modelo de vida masculino é algo tão arraigado na sociedade, a ideia do artista era abordá-la de forma indireta, com humor, fisicalidade e uma estratégia de “pesquisa performática”10.

Essa estratégia, diz o artista, “tem menos a ver com os gêneros tradicionais de ‘performance’ e ‘live art’ e mais com estar de fato presente e ‘vivendo’ com os participantes – ao invés de um espaço mediado, como uma galeria ou teatro, trata-se de estar ‘na rua’, convivendo com as pessoas, atuando na vida diária.” Ao agir assim, ele busca encontrar uma interligação relacional não mediada em que participante e artista sejam parceiros iguais numa experiência compartilhada que promove o senso de propriedade e investimento no desenvolvimento dos conceitos que estão sendo examinados.

Anthony mobilizou um público amplo e variado na cidade de Huntly com ações como, entre outras, “Male Roll Model”11 (Modelo de rolar masculino), “Rent-a-Dad”12 (Alugue um pai) e “Make Beer Drink Beer”13 (Faça cerveja, beba cerveja).


Anthony Schrag. Um dia de pai perfeito? Cabo de Guerra, 2011. Deveron Arts. Foto: Jan Holm.


Anthony Schrag. Um dia de pai perfeito? Faça cerveja/Beba cerveja, 2011. Deveron Arts. Foto: Jan Holm


Anthony Schrag. Um dia de pai perfeito? Alugue um pai, 2011. Deveron Arts. Foto: Jan Holm.

O auge de sua residência foi um evento chamado “A Perfect Father Day?” (Um dia do pai perfeito?). Realizado no Dia dos Pais, o evento visava investigar as questões e estereótipos da paternidade por meio de diversas brincadeiras e atividades.

Com o papel do pai na família moderna ainda em transformação, esse projeto trouxe o tema para o consciente de uma comunidade onde é comum o pai trabalhar em alto-mar14 ou longe de casa, deixando famílias e crianças “sem pai” por longos períodos.

Qual o impacto da arte nesse contexto?

Ao avaliar cada projeto, distinguimos entre produtos e resultados. Os produtos variam muito. Podem ser intervenções públicas, eventos, festas, instalações, exposições, livros, vídeos, sites de internet, etc. Discussões, debates e festivais que unem as pessoas da comunidade, a arte e os campos temáticos muitas vezes acompanham esses produtos físicos. Cada atividade acontece numa parte da cidade que tem a ver com o tema. Todos os projetos são documentados, revistos e arquivados de forma bastante tradicional: registro de comparecimento, documentação fotográfica, relatórios, etc.

Vemos os resultados, diferentemente dos produtos, como, por um lado, relacionados a uma mudança nas percepções de certas questões da comunidade e, por outro, como um aprofundamento dos conceitos artísticos. Talvez seja a promoção do orgulho ou de uma nova noção de espaço da comunidade, o entendimento das posições de mais de um grupo comunitário, a percepção de que existem semelhanças entre diversas cidades europeias ou simplesmente uma mudança de opinião como consequência de um determinado projeto15.


Simon Preston. A cidade é o cardápio, 2012, Deveron Arts. Foto: Deveron Arts.

Cada projeto tem um impacto imediato, mas também um efeito cumulativo no desenvolvimento da vida da cidade. Em termos de produtos, a Deveron Arts criou um tipo de museu vivo de seu histórico de artes no que chamamos de “acervo da cidade”. Ao final de cada projeto, um produto, um documento físico, um objeto usado no processo, uma imagem ou instalação é guardado e abrigado num lugar de interesse da cidade. Isso quer dizer que hoje pode-se andar em Huntly como se fosse uma galeria, mas do tipo vivo. Não com paredes brancas vazias, mas com personagens, histórias, arquitetura, comida, árvores, céu azul ou cinza, antigas vitrines ou salas de espera da delegacia abrigando as peças. Assim, A cidade é o espaço não coleciona ou esconde suas obras de arte numa unidade fechada, mas apresenta-as na vida cotidiana da cidade.

Em termos de resultados para os artistas, essas intervenções podem ser uma oportunidade de definir sua prática artística dali em diante. Ross Sinclair, por exemplo, o artista de Real Life Gordons of Huntly (Os verdadeiros Gordon de Huntly), afirmou sobre sua experiência: “Antes de chegar, eu havia proposto uns dois projetos definidos que foram educadamente rejeitados pela Deveron Arts… quando cheguei, não fazia a mínima ideia de como o projeto iria se desenvolver. Mas isso acabou sendo muito útil, pois me permitiu realmente me envolver no projeto de uma maneira aberta e orgânica. Foi diferente para mim, porque estou mais acostumado a desenvolver um projeto e depois fazê-lo acontecer no espaço, conforme o meu plano. Ou seja, essa abordagem foi um desafio, mas também foi muito revigorante.” Além de permitir que o artista tenha uma experiência capaz de transformar e desenvolver sua própria prática, a Deveron Arts, através de cada projeto e cumulativamente ao longo dos anos, visa desenvolver novos sistemas transferíveis de curadoria e, assim, contribuir para o discurso artístico mais amplo e para o planejamento da cidade e da comunidade. Além de incluir atores variados em sua organização – e justamente por causa disso – a Deveron Arts tornou-se uma parte influente no planejamento da comunidade local e no panorama cultural nacional. Devido a sua capacidade de trabalhar questões sociais de formas criativas e envolventes, serviços locais e grupos comunitários perceberam que os projetos eram úteis para suas própria pautas de desenvolvimento de programas sociais, econômicos e culturais.


Coro Room to Roam. Projeto realizado junto com a redefinição da marca para a cidade com Jacques Coetzer, 2008, Deveron Arts. Foto: Deveron Arts

Jacques Coetzer: Room to Roam (Espaço para vagar) – Identidade

Um exemplo do papel da Deveron Arts como importante ator da cidade foi a colaboração com o Fundo de Desenvolvimento de Huntly para redefinir uma marca para a cidade. O objetivo era, em parte, realizar um exercício artístico para investigar o que é importante para a identidade local e para tornar Huntly mais atraente para turistas e investidores, fomentando a economia local. Após um rigoroso processo de seleção, o artista e designer Jacques Coetzer16 foi convidado, com sua família, a vir de Pretória, na África do Sul. O projeto correlacionou muitos aspectos da cidade que eram importantes para os moradores e interessantes para as pessoas de fora. Foi criado um novo logotipo; um novo brasão foi aprovado pela autoridade nacional; um novo lema foi definido para a cidade – Room to Roam (Espaço para vagar). O lema foi tirado de um poema de George Macdonald, famoso escritor da cidade do século XVIII, que fora musicado por uma banda local, The Waterboys. A música foi então reposicionada como novo hino da cidade. Os produtos e resultados desse projeto são visíveis em toda a cidade e também num vídeo do hino sendo entoado na Prefeitura, que agora pode ser visto como parte do acervo permanente da Aberdeen Art Gallery.


Sinalização na entrada da cidade. Projeto realizado junto com a redefinição da marca para a cidade com Jacques Coetzer, 2008, Deveron Arts. Foto: Deveron Arts

Até que ponto é possível aplicar a prática da Deveron Arts em outros contextos?

A cidade é o espaço conecta regiões geralmente excluídas das artes contemporâneas à comunidade artística internacional. Apesar de a prática ter se desenvolvido no contexto de uma cidade rural do norte da Escócia, ela pode ser transferida para outros lugares. Para ilustrar a possibilidade, os curadores da Deveron Arts visitaram uma série de pequenas cidades em locais variados. Elas foram escolhidas por diversos motivos: ao acaso, com base em interesse na comunidade ou por causa de uma sugestão de um artista. O tamanho foi o único denominador comum – entre 2 mil e 6 mil habitantes, com uma distância mínima de 25 quilômetros de uma cidade maior. Os dois primeiros exemplos escolhidos, Huntlosen e Sesimbra, são cidades da Alemanha e de Portugal, respectivamente. O terceiro exemplo foi a cidade de Ribeek Kasteel, na África do Sul, onde Jacques Coetzer, o artista que desenvolveu a marca Room to Roam para a Deveron, morava. Realizamos auditorias culturais e comparações com os temas de meio ambiente, herança, identidade e questões intergeracionais de Huntly em cada localidade. Em Sesimbra, por exemplo, as preocupações ambientais giravam em torno da pesca predatória e, em Ribeek Kasteel, a população estava mais preocupada com o uso irresponsável de agrotóxicos e fertilizantes industriais. Em Huntlosen, também localizada na região norte do país, o tema herança poderia ser pensado em relação ao autor August Hinrichs, natural da cidade. Em Ribeek Kasteel, o tópico demandaria enfrentar os legados do Apartheid. Cada um desses contextos poderia se beneficiar muitíssimo de uma abordagem do tipo “a cidade é o espaço”.

Além disso, as práticas da Deveron Arts não são relevantes somente para a arte socialmente engajada em contextos de cidades pequenas ou rurais. Consideramos que elas podem ser facilmente adaptadas de modo a colaborar com pesquisas engajadas para várias disciplinas e também produzi-las. Isso pode se dar em muitos níveis. Nestes anos na Deveron Arts, fazendo a curadoria de inúmeros projetos sociais de arte e trabalhando com comunidades e grande variedade de artistas contemporâneos, vi como o nosso trabalho repercute em diferentes círculos e é considerado importante. Não é a cidade ou as artes que têm a prioridade para determinar o que acontece, mas sim as duas em sua relação uma com a outra. Se a ideia é considerar contextos fora das grandes cidades como espaços para as artes, as inúmeras pequenas comunidades que definem sua geografia social devem ser um ponto de partida para os curadores desenvolverem programas artísticos sustentáveis e significativos. Penso que essa abordagem é possível de aplicar amplamente. Natureza selvagem, pequenas cidades e contextos rurais existem em todos os lugares, e a singularidade de cada local pode ser uma valiosa inspiração, cada qual exigindo métodos específicos, sensibilidade e receptividade à comunidade e ao contexto para produzir programas artísticos estimulantes. Cidades pequenas são lugares ricos e gratificantes para práticas artísticas novas e promissoras. As comunidades artísticas deveriam reconhecer esse potencial. As cidades pequenas também deveriam reconhecer o potencial dessas práticas artísticas no sentido de mobilizar e discutir questões sociais, culturais, políticas, históricas e ambientais urgentes. Ambos devem desenvolver uma ecologia social e artística que veja a cidade ou o lugar como seu ponto de partida. Ou seja, as cidades são os espaços.

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1Grande clã escocês também conhecido como a Casa de Gordon. Seu chefe era o poderoso Duque de Huntly, hoje também Marquês de Huntly. O clã (do gaélico “clann”, ou progenitura) escocês é um grupo de parentesco que confere a seus membros a mesma noção de identidade e descendência e, nos tempos modernos, tem uma estrutura oficial reconhecida pela Corte de Lord Lyon, que regulamenta a heráldica e brasões escoceses.
2No Parlamento inglês, o “Shadow Cabinet” (literalmente, Gabinete-Sombra) é composto por membros do Parlamento e membros da Câmara dos Lordes da liderança do segundo maior partido, ou seja, o partido de oposição oficial. O partido de oposição nomeia um membro do Parlamento para acompanhar de perto cada um dos membros do Gabinete. Dessa forma, a oposição pode ficar atenta a todos os setores do governo e questioná-los minuciosamente. Além disso, significa que a oposição terá membros do Parlamento e lordes prontos para assumir tarefas específicas no Gabinete caso vençam a eleição geral seguinte. Na Câmara dos Lordes, o termo “porta-voz” é usado em vez de “sombra”. Ver glossário em www.parliament.uk (acessado em setembro de 2013).
3http://www.ssw.org.uk/staff/nunosacramento/profile/
4http://parliamentofdreams.com/about/
5http://freee.org.uk/about/
6http://www.contemporaryand.com/blog/person/christine-eyene/
7http://www.jacquelinedonachie.co.uk/
8Ver outros lugares em http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_car-free_places.
9http://www.anthonyschrag.com/
10Diz o artista: “estratégia de pesquisa performática” – para mim, isso tem menos a ver com os gêneros tradicionais de “performance” e “live art” e mais com estar de fato presente e “vivendo” com os participantes – ao invés de um espaço mediado, como uma galeria ou teatro, trata-se de estar “na rua”, convivendo com as pessoas, atuando na vida diária, porque é esse estar na experiência vivida que faz compreender as questões e preocupações pertinentes dos participantes  – e não as percepções do artista (externo). É também o lugar onde as perguntas difíceis que os artistas fazem podem ser explicitadas e ganhar significado, e não um lugar distante de uma população, num cenário institucional (ou seja, museu/galeria). Comunicação por e-mail com o artista, setembro de 2013.
11 O artista convidou os participantes a questionarem o propósito do modelo de vida masculino levando-os ao topo de uma colina e pedindo que rolassem colina abaixo. O jogo de palavras com “roll” (rolar) e “role” (em “role model”, modelo de vida), cuja pronúncia em inglês é a mesma, foi pensado tanto para evocar a forte tradição britânica de piadas ruins, chamadas de “piadas de pai”, como também para permitir uma abordagem indireta do tema, com humor e fisicalidade.
12Um anúncio foi colocado no jornal local oferecendo os serviços de um “pai”, e qualquer família sem pai (por motivos de trabalho ou outros mais pessoais) poderia contatar o artista e pedir que ele fizesse tarefas que os pais deveriam ou teriam feito.
13O artista convidou os homens que ainda moravam na cidade (ou seja, aqueles que não trabalhavam longe de casa ou no exterior) a se juntarem a ele na atividade bem masculina de fazer cerveja como forma de desenvolver discussões sobre os problemas e alegrias com os quais se deparavam como pais e como sentiam que o papel dos pais estava mudando.
14 Por sua proximidade do Mar do Norte, Aberdeenshire é um centro de trabalhadores de plataformas de petróleo em alto-mar.
15Como, por exemplo, o projeto The Town is the Menu (A cidade é o cardápio). Durante o outono de 2012, Simon Preston, consultor gastronômico geralmente baseado em Edimburgo, trabalhou junto com a população local para revelar a identidade gastronômica de Huntly e para criar e adotar um cardápio que fosse o carro-chefe da cidade. O cardápio foi inspirado nas histórias e tradições da população e montado por um grupo de chefs locais. Esse projeto ajudou a recuperar a identidade culinária de Huntly e trouxe à tona uma seleção de pratos locais com um toque contemporâneo. O cardápio ainda é servido hoje em restaurantes e lanchonetes locais.
16 http://www.jacquescoetzer.co.za/