
a terra é chão, heart to heart
Mônica Hoff
Se habla lo que se siente.
[Diga o que sente]
Brus Rubio
When we love the earth, we are able to love ourselves more fully.
[Quando amamos a Terra, somos capazes de nos amar mais plenamente.]
bell hooks
BIXI AWO’TAN
[O que diz o seu coração?]
Juan López Intzin
Corpo chão coração
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Entre uma palavra e outra, um abismo. Entre uma palavra e outra, o que se sente e sua historicidade — o modo como adquirem valência conforme algo muda, temporal ou geograficamente.
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Corpo chão coração: três palavras, uma episteme.
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O cheiro da massa frita passada no açúcar com canela, preparada diariamente às 15h na cantina da escola. A escalada da estante da sala na casa da avó, sexta à noite, para pegar os livros da última prateleira. O tempo nos livros didáticos da biblioteca, na casinha dos fundos, antes um galinheiro, para onde fugia depois do almoço. Os sucos de limão-bergamota que acompanhavam todos os outonos, todos os invernos. Por que o som da letra A corresponde ao desenho da letra A? (Por que) o pintor tem que pintar? Professora, você pode falar mais sobre o que é o sublime, por favor?
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Corpo chão coração — três substantivos, cinco ou mais memórias, um poema, ou um pedaço de terra para roçar.
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Limão-bergamota, galego, cravo, caipira, limão-capeta, cavalo, rosa, vinagre — oito nomes de “um mesmo”, radicalmente diferentes.
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Corpo chão coração, ou o vestígio do impronunciável presente nos momentos que anunciam mais do que uma memória, revelam um cenário formado por afetos, arquiteturas, climas, cheiros, gestos, paisagens, temporalidades, geografias.
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Corpo chão coração: a relação que não cabe em suas individualidades semânticas; o que passa a existir no momento em que uma (palavra) se infiltra na outra. Mais do que um deslocamento, uma tradução por encantamento.Uma palavra relacionando-se a outra, ativando em si e na outra aquilo que não conseguem dizer sozinhas.
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Corpo chão coração. Sozinhas: substantivos. Juntas: comunidade.
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Corpo chão coração: uma palavra-mundo.
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Corpo chão coração: A, B e C.
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A se parece com B que se parece com C. C não se parece com A — diria Wittgenstein?
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O que a dessemelhança entre C e A provoca em B, que se assemelha a ambas?
O que a semelhança de ambas com B produz em sua dessemelhança?
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— Lituraterra — responderia Lacan?
— Talvez.
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— Tremblement — nos brindaria Glissant?
— Provavelmente.
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“[O pensamento do tremor] Não é incerteza, tampouco medo. Não é aquilo que nos paralisa. [É] Um instinto, uma intuição do mundo que não podemos alcançar com pensamentos imperialistas, com pensamentos de dominação, com pensamentos de um caminho sistemático que leva a uma verdade pressuposta. É algo metafórico, mas também real, concreto.” 1
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Amuyt’aña: pensar com el chuyma, com as entranhas superiores: coração, pulmões, fígado. O pensar do corpo em sua respiração e ritmo — presentes na caminhada, num ritual, na dança, no preparar da roça. 2
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“Corpo chão coração”
(como um tambor que marca o ritmo, os contratempos, a cadência, o movimento)
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Como o tremor que nos leva a recusar toda forma de pensamento fixo ou imperativo, convidando-nos a encontrar outra forma de estar e não estar no sistema-mundo.
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O corpo — esse grande motivo da alma para os gregos: uma grande razão: uma colônia: um produto: um território de defesa: um conjunto de forças em constante devir e relação — atravessado pela insurgência do chão, descolocado pelas epistemologias do coração.
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El cuerpo es tierra, acena Lorena Cabnal.
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A terra é chão, revela bell hooks.
Heart to heart. 3
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Colocar mais palavras na língua portuguesa, diria Antônio Bispo dos Santos, semear sementes que são nossas e que não são, transformar nossas mentes em roças. 4
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Saber “se fundir aos mais diversos ambientes de vida, e tirar proveito de seus acidentes” 5, ensina Dénètem Touan Bona.
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Corpo chão coração: um emaranhado de cipós que obstaculiza o linear, o racional, o harmonioso.
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Corpo chão coração: “um território acidentado […] propício para uma liberdade que se inventa no momento, sem provisões e em total ‘opacidade’” 6.
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Para um lekil kuxlejal 7, ou uma vida em plenitude, digna e justa, com consciência comunitária.
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Ser-estar no cosmos junto a outros seres: o ch’ulel 8, a vida em tudo.
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Fazer voltar ao cosmos o coração.
Como saber. Como insurreição.
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Como quem dança, como quem pinta, planta e canta. Com língua de fogo, como sugere Gloria Anzaldúa9. Enlouquecendo a linguagem, colocando as tripas no papel. Como quem coreografa o descontrole da batida, a falta de ritmo, bailando o acidental presente no encontro das palavras-mundo.
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Como poesia, “a única coisa capaz de conectar o concerto do mundo à fantasia do mundo”, como nos diz Glissant. 10
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Como um teatro-fórum corpo chão coração in-surgindo-se.
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Como uma forma de estar juntes:
no desamparo
na poesia
na rua
numa quarta-feira de 1968, num domingo de 2025.
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Porque nem Brancusi, nem engenheiro algum “conseguiu chegar ao nível de precisão e polimento de materiais extremamente frágeis que têm o cu-cloaca de uma galinha” 11.
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Tampouco ao gosto de amor que oferece um limão-bergamota, galego, cravo, caipira, capeta, cavalo, rosa, vinagre.
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Porque nem poetas, políticos, filósofos.
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Porque a terra está tremendo. Não há mais caminhos retos.
Nem lugar para ideias fixas.
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Porque, hoje.
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21 de setembro de 2025, 14h43.
O céu estremece a ordem aos 29 graus-caos.
[É muito cedo… ou tarde demais.]
O povo está na rua. O povo está na rua!
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Guapuruvus, aracuãs, macacos-prego anunciam tempestade.
A cachorra pequena parece estar prevendo algo desde ontem.
Rios e montanhas se reúnem.
Chove, e pés batem forte no chão
há mais de 500 anos.
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As minhocas não têm paz.
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Mônica Hoff é artista, curadora e pesquisadora. Doutora em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2019), com pesquisa sobre artists-run art schools e como metodologias artísticas se convertem em pedagogias instituintes e estas em escolas; e Mestre em História, Teoria e Crítica de Arte, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2014), com pesquisa sobre o fenômeno educational turn e o contexto de arte brasileiro. Ao longo de sua atuação no campo das artes, em curadorias e publicações diversas, vem investigando as relações entre as práticas curatoriais, artísticas e educativas e como estas contribuem, friccionam e/ou determinam as políticas e pedagogias institucionais.
1 GLISSANT, Edouard e OBRIST, Hans Ulrich. Conversas do arquipélago. Rio de Janeiro: Cobogó, 2023. p. 101-102.
2 CUSICANQUI, Silvia Rivera. Un mundo ch’ixi es posible. Ensayos desde un presente em crisis. Buenos Aires: Tinta Limón, 2018. p. 121-122.
3 “heart to heart” faz alusão ao título do último capítulo, na versão em inglês, de: hooks, bell.Teaching Community: a Pedagogy of Hope. Rutledge: New York and London, 2003. No Brasil: hooks, bell. Ensinando Comunidade: uma pedagogia da esperança. São Paulo: Elefante, 2021.
4 BISPO DOS SANTOS, Antonio. A terra dá, a terra quer. São Paulo: UBU/Piseagrama, 2023.
5 BONA, Dénètem Touan. O levante vegetal das zonas de incerteza ofensiva negra. Conferência performática apresentada no Programa de Estudos do Pivô Pesquisa, em 21 jun. 2023. Disponível em: https://pivo.org.br/blog/o-levante-vegetal-das-zonas-de-incerteza-ofensiva-negra-denetem-touam-bona/. Acesso em: 29 set. 2025.
6 Idem.
7 INTZÍN, Juan López. Sp’ijilal O’tan: Saberes o Epistemologías del Corazón. In: Resistant Strategies, editado por Marcos Steuernagel e Diana Taylor. Duke University Press and HemiPress, 2019. Disponível em: https://resistantstrategies.hemi.press/spijilal-otan-saberes-o-epistemologias-del-corazon-es/?lang=es Acesso em: 29 set. 2025.
8 Idem.
9 ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para mulheres escritoras do terceiro mundo. In: A vulva é uma ferida aberta & Outros ensaios. Rio de Janeiro: A Bolha, 2021. p. 43-62
10 GLISSANT, Edouard; OBRIST, Hans Ulrich. Conversas do arquipélago. Rio de Janeiro: Cobogó, 2023. p. 94.
11 Reflexão da artista e educadora Mariana Berta, janeiro de 2021.