Nº7 Corpo chão coração
Conversa com Sandra Benites, Companhia de Mystérios e Novidades, 26 de outubro de 2022. Foto: Vitor Szpiz

Tembiapo: Arte e povos da cura

Conversa com Sandra Benites

Mediação: Luiz Guilherme Vergara

Luiz Guilherme Vergara: Boa tarde. Bem vindes a todes. Agradecemos imensamente a Companhia de Mystérios e Novidades por nos acolher hoje, e a Lígia Veiga pela sua maravilhosa chamada de concha, e, especialmente, a Sandra Benites, por ter, generosamente, aceitado nosso convite para falar hoje.

Certa vez, em um seminário internacional sobre Transculturalidade no MAC Niterói (Museu de Arte Contemporânea de Niterói), uma das lideranças indígenas abriu sua fala afirmando que “nós, os povos [indígenas] pensamos redondo”. Pensar redondo é uma imagem que quebra com toda a nossa educação de linearidade. Então eu convido a Sandra Benites para que ela possa se colocar e expressar a sua narrativa pensante, compartilhada, redonda.

Sandra Benites é professora de história e filosofia do ensino fundamental e médio. Mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional da UFRJ e doutoranda da mesma instituição. Foi curadora-adjunta do MASP (Museu de Arte de São Paulo). Fez a curadoria da exposição “Dja Guata Porã: Rio de Janeiro Indígena”, entre 2017 e 2018, no Museu de Arte do Rio (MAR) com Clarissa Diniz, Pablo Lafuente e José Ribamar Bessa. E, atualmente, compõe a equipe curatorial do Museu das Culturas Indígenas em São Paulo. 26 de outubro de 2022, Casa de Mystérios e Novidades — Gamboa, Rio de Janeiro1.  

Sandra, na sua pesquisa de mestrado, aponta para o sentido de arte como uma outra linguagem, uma outra língua, uma outra poiesis que não está estabelecida, não está estática. E também aborda as desavenças e conflitos entre a tradução, a educação imposta nas aldeias pela escola formal e a educação guarani. Utilizando do conceito de bilinguismo como ferramenta, ela apresenta uma descrição prática através das experiências vividas das formas com as quais os guaranis Nhandeva transmitem conhecimento às suas crianças e jovens. As histórias Nhandeva são a base da formação de condutas, crenças e personalidades. Destaca-se aqui a formação que diferencia as mulheres guaranis dos homens guaranis, com ênfase na história de Nhandesy Eté, figura feminina da cosmologia guarani.

Dentro dessa escrita provocante, Sandra já trouxe as questões iniciais de complexidade que dialogam com a disciplina de PPGCA “Conchas, Peneiras e Bainhas”, que Jessica Gogan está ministrando com diverses convidades ao longo do semestre. Acredito que estamos na bainha? Aquela costura por dentro. Costurando relações de arte, clínica e cuidado. Talvez isso fosse desnecessário para os povos indígenas, porque a saúde, a clínica, a terapia, a arte, as celebrações estão todas juntas. Mas nós somos povos da doença, da separatividade, e o nosso caminho regenerante é voltar ao caminho de síntese, de conectividade. Dentro da proposição da aula hoje eu trouxe a seguinte questão: a necessidade de mudanças atravessa e denuncia as dicotomias obsoletas dos debates estéticos no campo das artes, filosofia e pensamento. Revelando barreiras herdadas do humanismo, reduzindo a um eurocentrismo fragmentado pela cegueira do dualismo humanidade-natureza, marcante também do antropoceno. Neste cenário de abrigo e abismo poético do fenômeno humano, entram em colapso também as instituições democráticas das artes, educação e saúde política.

O objetivo dessa conversa é exatamente realizar um encontro gerador de partilhas, práticas, saberes e intuições palpáveis de futuros, com a trajetória de Sandra Benites como ponte entre artes, no plural, e sua pluralidade de sentidos: como educação, práticas terapêuticas e clínicas de saúde coletiva, que se desdobram em produção de conectividade, coletividade e novos agenciamentos de subjetividade, reconfigurando a dimensão corpo, coração, espiritualidade e institucionalidades em territorializações experimentais de futuros ancestrais.

Lígia Veiga, diretora, Companhia de Mystérios e Novidades. Fotografia: Vitor Szpiz

Essa é uma conversa que se desenha ao longo de alguns encontros com a Sandra Benites nos preparativos para a mediação de uma mesa de Fórum Povos sobre arte, cultura e saúde, com diversos representantes indígenas, realizada no âmbito do 15º Congresso Internacional da Rede Unida (2022). A discussão reconheceu o quanto os saberes e práticas comunitárias (dos fazeres, até a produção do simbólico) apontam fundamentalmente para as mudanças urgentes de valores — fazeres contracoloniais, contracapitalistas — que regem nossas instituições, tanto das artes, da educação, saúde, quanto das espiritualidades e religiões.

Nesta ocasião, e em nossas conversas, Sandra trouxe algumas palavras/conceitos em guarani que me parecem chaves para futuros ancestrais das artes e que, imagino, vão atravessar nossa discussão agora. Vou começar com tembiapo que, inclusive, intitula o encontro de hoje. Eu perguntei se existia uma palavra mais próxima de arte e ela disse: “Tembiapo, vem de tembi, produção de relações, processos de pertencimento. Também significa coração, estômago e sentimento. Apo significa o fazer artesanal, com as mãos…”. O artista é aquele que tem habilidade de fazer cestaria, dançar, esculpir animais de madeira. E nesse fazer-saber que se torna coletivo, identitário de uma comunidade, e a comunidade se reconhece nesses fazeres-saberes. Outra palavra/conceito/prática-chave que Sandra trouxe é hendu. Hendu significa escuta, ouvir com o corpo, também no sentido de “pedir permissão com sentimento de ser parte do que escuta”. Olha que beleza: ser parte do que escuta. E ela continua: “[…] sendo parte do que escuta com o coração-corpo”. Este sentido de uma responsabilidade compartilhada também vale por tudo: o humano, a natureza, o não humano e que “somos parte do que caçamos”, que é teko, uma outra palavra-chave que Sandra nos oferece para a “relação corpo-território”. Como ela diz, “toda a nossa existência é uma caminhada”…

E, por último, como parte desta caminhada, teríamos os desafios de transmutações terapêuticas institucionais. Que transmutações são necessárias e como exatamente essas cosmovisões, essas escutas, esses princípios éticos podem remodelar futuros das artes, ciências e espiritualidades? Como as práticas de artes e ciências da cura — que estão totalmente entrelaçadas com o sentido de rezar, banhos, benzimentos, cantos, danças e ervas medicinais —, como elas podem (re)inventar e transformar o museu convencional assim como centros de saúde comunitários? Passo a esfera da conversa para você. Muito obrigado. 

Sandra Benites: Obrigada pelo convite também, eu acho que o meu esforço hoje, de estar aqui com vocês, é pensar o futuro. Como enfrentar, durante esses quatro anos, o que a gente enfrentou?

Uma coisa que me marca muito enquanto corpo racializado, enquanto corpo de mulher e enquanto mãe… isso me chocou muito mais do que a gente já vinha enfrentando. Eu acho que eu comecei a entender isso há muito tempo, desde que eu comecei a dar aulas, na minha ida para a academia exatamente em busca dessa resposta: como que a gente vai dialogar, ou desconstruir aquilo que não me faz bem enquanto mulher, enquanto mulher indígena? Eu dei aulas para as crianças guaranis no Espírito Santo — morei lá de 2000 até 2015 — e, então, eu encontrava muita dificuldade de ter a autonomia de ensinar aquilo que é importante para nós. Porque no nosso costume guarani, por exemplo, as meninas, quando vem a primeira menstruação, elas ficam de resguardo, e assim constantemente até a próxima menstruação. Existe o resguardo. Porque isso depende muito da nossa saúde mental, primeiro. Porque, como no nosso corpo, esse fluxo de sangue se movimenta e mexe — a minha avó falava — do dedo, à cabeça, até o cabelo. Então a gente precisa saber lidar com isso, que é cuidar do nosso corpo nesse período. E aí, por isso é muito importante a gente se resguardar, porque nesse período você pode falar besteira por estar impaciente e também alguém pode te aborrecer e isso vai levando, estendendo as coisas para a sua saúde. Então, por isso, é muito importante essa preservação do período menstrual da mulher. Eu lembro que a gente fez currículo, a gente fez projeto, tudo que a gente podia fazer, que temos direito de fazer, a gente construiu. Porque na nossa escola indígena brasileira existem quatro princípios que temos obrigatoriamente que respeitar: a escola tem que ser diferenciada, bilíngue, comunitária e também específica. Isso vai depender de cada contexto para cada aldeia, de cada língua, de cada comunidade. E, assim, fizemos o nosso projeto político pedagógico, a nossa proposta curricular especificamente para a comunidade guarani que fica no município de Aracruz.

Voltando à relação da menina, a maioria das minhas alunas eram de 10 a 13 anos, idade do início do período menstrual, e estudavam comigo. Nós e a comunidade conversamos sobre isso. Quando vem a primeira menstruação, os pais vêm me comunicar e avisar que elas vão ficar em tal período de resguardo. E aí movimenta toda a família. É um processo de educação que eu chamo de educação coletiva, não é só uma pessoa. Por exemplo, os meninos nesse período vão buscar erva para lavar a cabeça e dar remédio para as irmãs. Daí, então, dei “ok” e as meninas foram liberadas. Eu lembro que uma vez a secretária, o comando da Secretaria de Educação, veio me dizer que eu tinha que fazer atividade para mandar para as meninas que estão de resguardo na casa delas com a família. Eu tinha que fazer tarefa de casa, ou dever de casa, uma coisa assim… para mandar para elas todo dia para constar no diário. Isso me deixou muito indignada, porque literalmente é dizer que o que a gente ensina em casa, a nossa educação guarani, não é válida para nada, inclusive para a escola. E aí eu via a distorção da coisa. E eu comecei, a partir dessa questão, a ir em direção às questões das mulheres, das mães, porque nunca é separado, nada é separado, tudo é junto! A questão do costume, da forma, dos nossos valores… tudo isso vai ser próprio deste processo da caminhada que a gente fala, que chamamos de teko. O teko é nossa relação corpo-território, é como se fosse algo que você toda hora vai manusear. Porque a caminhada, para nós, tem sérios rituais que a gente tem que praticar durante nosso processo de existência, de existir no mundo, e isso é uma complexidade.

Então eu acho que essa educação juruá [como os guaranis denominam o homem branco] que impõe e fala para a gente como é que a gente tem que se moldar é um processo de adoecimento, de fragilidade, de você não entender o que é que está acontecendo consigo mesmo. Eu acho que o que acontece principalmente para nós brasileiros juruá — assim chamamos os brasileiros — somos fronteiras. Também falo isso: essa ideia da fronteira… porque, para nós, indígenas, não existem fronteiras, “isso aqui é Paraguai, isso aqui é Brasil”. Não existe isso, não existia isso. Para nós, a fronteira é só um teko. O que é um teko? Um teko é, como eu falei, como se fosse algo que o tempo todo vai ser moldado de acordo com a sua vivência, com sua caminhada, com o seu entendimento, e depende também do que está em torno.

Porque, muitas vezes, você tem outra forma de pensar e a escola vem, desde muito tempo, te moldar em determinada forma e, às vezes, você não consegue reagir a isso e você tem que se submeter a essa violência que vivemos até hoje. Essa é a minha indignação que eu sempre trago para observar onde eu caibo e onde eu não consigo caber.

Quando a gente se coloca: onde você cabe? E por que cabe? Entendemos rapidinho porque é que a gente cabe e porque não cabe. Então eu acho que isso é uma coisa muito importante para nós, inclusive para o nosso fortalecimento. Porque quando você individualmente não cabe, isso não é só você que não cabe. Coletivamente não cabe!

Mas voltando… Eu fui para a educação, depois eu saí e vim para a cidade, para estudar, fazer mestrado. E nessa minha caminhada eu tive oportunidade de conhecer outras pessoas: juruás e indígenas. A gente foi fazendo parcerias, o que compreendi também quando participei pela primeira vez como curadora de uma exposição. Eu lembro que quando entrei para fazer essa curadoria, recebi vários textos para ler, para entender um pouco sobre o que é meu papel de curadora. Eu não li, e falei que não ia ler, porque eu já venho com muitas demandas carregando nas costas, enquanto mulher indígena, mulher, e também enquanto professora. E eu foquei nisso, porque o que vai me ajudar a entender se eu vou caber aqui, ou não, é exatamente isso, esses aparatos todos que eu carrego comigo. Então eu entrei, e aí comecei a entender um pouco. E eu acho que a instituição tem muito ainda, de concreto, que precisa se quebrar! Primeiro que falam que é o sistema, mas o sistema são pessoas… Eu sei que a gente já resistiu, já viveu, já conviveu com isso, então a gente precisa pensar nas futuras gerações. Porque, hoje, a gente não vai mais quebrar aquilo que já está aí, mas é importante pensar como é que a gente vai movimentar o que está aí.

E quando a gente é fragilizado, você se agarra em qualquer coisa, sabendo que você não cabe lá, mas você tem que se agarrar naquilo! E, por um lado, isso é importante, mas, por outro, você tem que saber sair de novo depois que você entrar. Essa é a grande questão. Porque quando eu entrei no mestrado, eu achava que Antropologia era mais próximo daquilo que eu trazia, mas na verdade é distante como se fosse uma coisa lá e você aqui. Aí eu me senti perdida. E tive que brigar para alguém me escutar. E, às vezes, quando você começa a ser muito briguenta, nem todo mundo dá ouvidos para você. Por isso a gente precisa se agarrar com mais gente! Sozinha eu não vou dar conta disso. E às vezes, quando a gente se agarra, a gente divide as dores em vários pedaços.

Por exemplo, eu vou contar uma história. No nosso costume guarani, a anta é um animal que tem um espírito muito forte. A gente é parte dela, porque ela tem história! E aí, quando os homens vão caçar a anta, eles trazem pra comunidade dividir a carne. E quanto mais você divide a carne, mais você responsabiliza o outro pela caça. E o pedaço da carne, da anta, é você! Dividir a carne da anta é responsabilizar todo mundo pelas questões, pela caça também. Como saber caçar? Quando matar é para necessidade mesmo, não é para outras questões.

Então eu tento imaginar isso hoje, quando eu discuto com outras pessoas. Eu sei que muitas pessoas não vão entender muito bem o que eu estou falando, mas eu acho que é importante levar isso: essa reflexão de responsabilidade a partir da escuta e a partir do outro. Porque é uma responsabilidade que eu acho que é importante a gente pensar. Por exemplo, não lembro em que mês, eu estava recém-chegada aqui no Rio e fui convidada para falar num seminário na UFF. Eu morava no Estácio e vim andando para pegar a barca, para atravessar para a UFF. E aí, quando eu cheguei no Largo da Carioca, eu vi que não tinha ninguém e achei muito estranho isso. Porque todo dia, ali, é uma fervura de gente… achei estranho quando eu cheguei lá e tipo não tinha ninguém. Assim, meio vazio… aí eu olhei de um lado, tinha um bar cheio de pessoas, todas formais, de paletó, que estavam bebendo cerveja. Fui andando, e comecei a sentir alguma coisa no meu olho… aquela fumaça cinzenta, um barulho lá na frente. E, quando eu fui perceber, estava tendo manifestação ali na frente da Alerj. De um lado, tinha muita gente bebendo cerveja, que não estava nem aí… e, do outro lado, o que me chocou muito: jovens negros e professoras cadeirantes sendo arrastados, bombas, o pessoal no carro de som totalmente massacrados… Era uma cena de guerra! Eu comecei a chorar, eu cheguei na UFF totalmente triste. Porque é isso que eu falo… quando a gente é fragilizado, a gente não consegue enxergar isso… todo mundo deveria estar ali! Soube depois que a manifestação era por causa da melhoria de salários dos professores, dos muitos professores aposentados que não estavam recebendo mais…

Então, parece que a responsabilidade da sociedade na qual a gente está parece separada, dividida, todas as coisas divididas! E isso é muito ruim, isso é uma doença! A gente prepara as crianças, desde pequenas, para entender que dividir um pedacinho da carne da anta é sagrado, mas você também joga a responsabilidade para o outro. E, na época, eu fiquei muito impactada, eu fiquei deprimida total. Porque na comunidade, eu não estou dizendo que a gente não briga, mas, às vezes, por causa da falha de um, todo mundo vai na reunião… A gente participa, todo mundo opina: por que é que falhou? Por que é que a gente falhou? Se alguém falhou, nunca jogamos a falha em cima de um, porque a falha é do coletivo. Então vamos juntos! A gente pode cair e se machucar no meio de um, de outro, mas a gente vai… E com certeza a gente consegue sem deixar ninguém para trás.

O caminho, para a gente, eu acho que para todos nós, indígenas, é uma experimentação que você vai testando. Para nós guaranis existe caminho que já vem e a gente vem andando, caminhando… Mas tem um momento que temos que chegar no lugar de encruzilhada, que existe uma escolha, depois de você percorrer várias coisas. Não obrigamos ninguém a escolher a coisa, mas isso, esse processo experimentativo, de experimentar e saber sentir com o ouvido, a gente fala hendu. Hendu significa escutar com o ouvido, escutar com o corpo. Hendu é prática, é vivenciada na maioria das vezes. Então a gente não fica dizendo, a gente não obriga ninguém, principalmente nós, guaranis… mas a gente dá uma experimentada e, mesmo que as pessoas escolham um caminho errado, isso coletivamente também é isolado, o próprio coletivo vai isolar.

Recentemente eu conversei muito com Cacique Babau, Tupinambá, que falou de uma violência contra uma mulher na comunidade dele, e a comunidade teve que banir este indivíduo e tirar ele totalmente de lá. Para tirar uma pessoa que praticou essa violência, foi preciso todo mundo entrar em consenso, inclusive a família. E isso não é uma tarefa fácil. As mães choram, ficam tristes, falam que não vão ficar bem, não vão ficar com saúde por causa disso. Por isso, a gente dá a opção de experimentar coisas anteriormente.

Na nossa língua guarani existe a expressão kuimba’e ete que significa um homem de verdade. Kuimba’e ete não está falando pela questão biológica, está falando pelo ser, pela capacidade de demonstrar a sua função enquanto homem. Como, por exemplo, de escutar, saber escutar, ser tolerante, saber cuidar da irmã, saber a sua própria postura e a própria função na comunidade. E em que momento que é importante também de protagonizar a sua masculinidade. Quando a irmã não está bem, ele vai saber buscar o remédio, ele vai saber buscar o remédio certo. Então isso é um processo, todo um processo.

Então, a gente consegue, com toda dificuldade que temos na comunidade, ainda praticar isso. Mas quem impede a gente de praticar isso, em vez de dialogar conosco, é a própria escola. Como fez, como se não fosse conteúdo aquilo que é importante para nós. Isso é uma das coisas que eu queria trazer um pouco hoje…

Mas eu queria muito escutar. Porque eu acho que o diálogo também, ele é muito importante de ser escutado, chamo isso de soma. Temos várias pessoas que têm suas caminhadas diferentes da minha, mas é importante que a gente se una pelas coisas, questões comuns. Então como que nós podemos, na prática, desconstruir aquilo que a gente quer desconstruir?

Conversa com Sandra Benites com mediação de Luiz Guilherme Vergara. Fotografia: Vitor Szpiz

Em relação ao tembiapo, como o professor já mencionou, quando eu fui entrar no mundo da arte, da forma do juruá, eu fiquei meio confusa. Eu não queria entender e não queria entrar nesse jogo da forma que é! Às vezes, me parece que é a própria romantização: a arte no mundo da arte é como se fosse uma coisa muito incrível, uma coisa que não tem dor, não tem passo, não tem esforço, não tem depressão. Mas para a gente, para nós, indígenas, é para a gente não ter depressão que a gente faz isso. Quer dizer, a arte não é para deprimir você, é, ao contrário, é para não ter depressão! Porque aí vem o seu desejo, a sua força, a sua resistência… não é para deprimir você, é, ao contrário, para fortalecer você como indivíduo ou coletivo. E parece que o mundo da arte, os artistas, muitas vezes, estão muito deprimidos e muito iludidos também. No meu caso, quando eu fui olhar, eu falei “o que é que eu vou fazer?”.

Essa visão da arte ocidental, que parece que é muito maravilhosa, mas quando é um corpo de uma mulher, um corpo racializado, você tem que fazer mais esforço ainda. Ou, às vezes, você é totalmente deprimida, por mais que você faça esforço, você nunca chega naquilo que você gostaria de chegar. Por isso, parto do meu entendimento enquanto guarani e como posso fazer circular as coisas, movimentar, e não ficar parado, como se fosse algo que é acabado… porque quando você busca a perfeição, você não consegue chegar nesse lugar, e eu não posso adoecer agora, eu não consigo!

A partir daí, eu comecei a perguntar para os parentes: “O que é Arte? O que juruá chama de Arte?”. E eles falaram assim: “No nosso entendimento é outra coisa… seria o tembiapo.Juruá acha que tembi é algo que você tem, mas tembi, para nós, é a sua relação! A caça também é tembi: aquilo que você busca, mas não é fácil você buscar a caça, você tem uma responsabilidade sobre sua caça, tem sentimentos sobre sua caça. Tembi… é uma questão que movimenta. Já apo, para nós, guaranis, é mão. E djapo é como se fosse: a mão que está em movimento, é fazer coisa com a mão. Então, eu tentei juntar isso para poder traduzir o que eu acho que é a Arte; é relação do seu próprio corpo e as habilidades do indivíduo, o que você consegue fazer. Por exemplo, eu não sei fazer cestaria, mas tem outras mulheres que sabem fazer. Tem muitos jovens guaranis que sabem fazer bichinho, mas outros não.

Lembro agora do Xadalu Jupã Jekupé que é um artista que se chama mestiço, do Rio Grande do Sul. Ele fez uma obra que eu achei muito incrível: ele colocou colete à prova de balas nas pessoas, nos parentes. Porque no Rio Grande do Sul tinham uns parentes que estavam ocupando um território, e aí os policiais foram tirar eles de lá à força, com a arma e tudo, e falou que se eles não saíssem de lá, eles iam morrer. Xadalu não se movimentou, não se assustou e falou que poderia atirar nele, ali mesmo, na frente de todo mundo: “Você pode matar meu corpo, mas meu espírito você nunca vai matar”. A partir disso, ele fez uma obra de figuras com os parentes com colete à prova de balas.

Então, a arte em si, no meu entendimento, é uma relação. O artista é o indivíduo que tem capacidade de manusear coisas, criar coisas. Então, automaticamente, arte e artista já têm uma relação, um tembiapo. Quando você traz uma obra, o objeto que você transforma em arte não pode ficar parado no lugar, tipo, esquecido… ela tem que ser, o tempo todo, movimentada! Aqueles que produziram e por que produziram. E isso tem que ser para fazer sentido. Se a gente faz uma arte, uma obra, e deixa ela parada, como sempre acontece, os parentes chamam de memória morta. Eu pensei muito em tentar traduzir o tembiapo. Porque existe essa ideia de que traduzir é uma traição também. Como diz o Eduardo Viveiros de Castro: “Você tem que refletir muito bem a quem trair”. Por isso que eu falo: pra gente pensar sobre o futuro para futuras gerações, é importante que a gente consiga caminhar junto. Caminhar junto não é todo mundo pensar igual, mas sim saber as limitações e cada passo do outro. Saber a sua própria fronteira. Saber quem é quem. Uma outra questão também que é muito difícil para mim é a tese que eu estou fazendo. Como é que a gente materializa aquilo, não só em forma de texto? A minha avó falava que o texto escrito é uma memória morta. Por isso, a gente precisa acrescentar, rechear o tempo todo.

Enfim, eu acho que é isso, não sei se alguém quer falar.

Iê Carvalho Rizzo: Uma coisa bem breve. Você falou dos livros, da escrita ser uma memória morta… estava numa mesa de bar esses dias depois de uma palestra [na plataforma] Selvagem. Uma pessoa contou que lembrou um indígena (não lembro a etnia) falando que eles veem os livros como uma ambição de absorver a sabedoria de forma muito rápida, uma coisa ansiosa de ter sabedoria, e que eles acreditam que mesmo se você não tivesse acesso àqueles livros, esta sabedoria chegaria até você, que iria chegar de alguma forma, e a palavra “não sei” ou o termo “não entendi” não existia na cultura deles, porque acreditam que a sabedoria sempre iria chegar de alguma forma.

Guilherme: Interessante que você traz esta relação do tempo, esse tempo do aprender é um tempo espesso, uma sabedoria outra…

Sandra: Sim. Acho que posso falar um pouquinho da minha experiência no Museu das Culturas Indígenas. Vai fazer dois, três meses que eu estou lá, morava aqui no Rio, recebi convite e fui… e estamos começando a trazer algumas atividades… Uma dessas atividades, nós fizemos mês passado, com a Michele Guarani Kaiowá, uma jovem cineasta que trouxe o trabalho que ela fez durante a pandemia com mulheres. Essas mulheres estão ensinando os filhos a não esquecer das plantas medicinais. No vídeo falam que essa pandemia é a doença do tempo e contam que, se não lutamos pela vida da terra, não vamos existir mais. Porque as plantas são o que nos cura, por isso que os mais jovens precisam pisar no brejo para olhar as plantas. Então elas começaram a levar os filhos para pisar no brejo e mostrar como retirar as plantas. Inclusive, para a questão da menstruação, porque existe uma planta que é anticoncepcional para a gente, mas não é qualquer lugar que existe essa planta, existe no brejo.

Por isso, quando a gente pensa nessa ideia do corpo-território, o nosso próprio corpo é o próprio chão que a gente pisa. E eu falei um pouco sobre isso na minha dissertação. Porque para nós, indígenas, principalmente para nós, guaranis, as mães sempre ensinam as meninas a pisar leve no chão. Quer dizer, a coisa é mais sensível, e essa sensibilidade eu acho que também é um choro…

Voltando um pouco à memória, lembro que fiz um trabalho com outras pesquisadoras para o SESC, acho que em 2018, fizemos uma oficina lá em João Pessoa, sobre a memória. E um parente falou que, quando nós escutamos pessoas mais velhas falando sobre a importância da prática de determinado ritual, a gente está acordando a memória. E quando você acorda a memória, você começa a enxergar o que é importante e o que não é importante. E, a partir daí, a gente vai construindo outros caminhos… Juruá diria entrar em acordo com a sua memória. Se você não entra em acordo com a sua memória, você começa a ser frágil, você fica deprimido, triste. Então nós fizemos essa oficina, com vários professores e artistas que participaram com a gente, criamos coisas. E, no final, houve muito choro… muitas pessoas choraram lembrando das coisas tristes. E a maioria se culpou por ter chorado. Eu achei muito estranho isso. Por que como é que as próprias instituições, a universidade, o museu, você enquanto humano reprime os seus sentimentos, como se você não pudesse chorar? Você não é humano? Eu passei muito por isso quando me tornei professora… Eu não podia mais falar da minha menstruação porque eu estou trabalhando como professora. Mas eu não deixei de ser guarani! O sistema te violenta de um jeito para você praticar aquilo que não é teu forçadamente. Então eu deixei de ser mulher guarani, para obrigatoriamente entrar nesse sistema.

Recentemente, Clarissa Diniz, uma pessoa com quem sempre trabalhei, foi minha parceira, falou pra mim que ela nunca tinha pensado que ela já reprimiu tanto sentimento, como se a gente tivesse que enfrentar de um jeito que você não pode ser sensível, não pode chorar. Então eu acho que isso é uma outra violência que é contra nossa humanidade mesmo, e não há diálogo sobre isso. E eu falei para as pessoas na oficina: “Não tem problema”. É a partir do nosso choro que a gente vai sentir de fato, escutar de fato com o corpo. E parece que foi um alívio para todo mundo. Eu acho que essa ideia de reprimir sentimentos é o sistema que impõe. E aí, muitas vezes, sua sensibilidade se torna fúria. E isso é uma outra doença.

Então tudo que eu falo, eu trago a partir da minha própria experiência de entendimento. Às vezes eu falei uma coisa, aí eu repenso… Todos nós temos direito de rever as falas que foram equivocadas no passado. Isso não tem problema nenhum para a gente. Mas é importante ter criatividade de repensar sempre! É importante a gente querer voltar para trás e fazer outros caminhos. Outro episódio também que eu gostaria de trazer é a forma da gente trabalhar o que é que é organizado, o que não é organizado. Isso depende do ponto de vista. Por isso que o teko é um modo de estar no mundo, de viver, de enxergar as coisas, o modo de sua caminhada… O teko é um indivíduo, mas também é a relação com o entorno. A violência que uma pessoa viveu não é da pessoa, é da relação com o entorno.

Voltando à essa relação na ideia de arte… no meu entendimento, a arte é um saber que cada comunidade, cada povo, cada indivíduo vai juntando. Porque nós somos relações e também indivíduos. Mas o indivíduo não é um indivíduo totalmente sozinho no mundo, existem várias outras relações que a gente vai juntando para criarmos e sentirmos menos dor, para a gente fazer a alegria.

Assim, tekoa significa onde se produz esta teko coletivamente, por isso é muito importante a escuta, o diálogo, se reunir para se escutar, para cada um expressar seu modo de pensar. Tem este incômodo de não poder conciliar todos os tekos, por isso é muito importante a escuta, de modo que a gente vai caminhar junto respeitando as diferenças. O bem-estar de todos — escutar, dialogar, entender — este teko porã rã é o modo de estar bem no futuro.

A comida é um exemplo disso: uma das coisas que eu acho muito incrível, que nos atravessa enquanto diversidade, é a comida. Tem gente que gosta de polenta, eu gosto disso, daquilo, eu gosto de feijoada… Mas a gente não sabe como é que surgiu essa feijoada, de quais mãos e porque surgiu essa feijoada… o torresmo, por exemplo, eu adoro e, hoje em dia, como torresmo como se fosse um privilégio, mas às vezes não foi privilégio, alguém trouxe isso como uma criatividade.

E isso é uma coisa que a gente vai deixando morrer. Na verdade, morrer não morre, mas vai sendo adormecido: a gente não conversa, não dialoga, não admira, não sabe quem criou esse torresmo. Como foi criado isso? E isso é uma forma da gente interagir com outro: interagir através da arte! Da gente admirar o outro através dessa interação e também de ser admirado. É como se fosse uma dança de esquiva mesmo.

A partir da arte, no meu entendimento, você pode atravessar o outro com a sua beleza. E não só beleza, mas também com a sua provocação. Provocação porque não é brigando que a gente vai se encontrar. Então quando tem uma dança, um ritual, é muito bonito, mas também tem uma questão política. Uma política que é muito importante a gente entender, porque tem regra ali pra você entrar. Não é de qualquer maneira que você vai entrar. E aí você admira!

E eu acho que o hendu, no meu entendimento, é a própria arte. A arte que faz a gente ser escutado! As dores também. Porque, como eu falei, eu não conhecia ninguém lá na Alerj, mas vi pessoas levando bombas de spray de pimenta na cara. E isso me afetou muito: eu fiquei pensando nas mulheres, porque para nós, guaranis, as mulheres mais velhas, que já trabalharam muito, são muito importantes! Porque elas têm uma experiência de uma memória viva que pode nos ensinar qual caminho a gente precisa construir. E, na época, eu vi uma senhora sendo arrastada por esses jovens que estavam ali na luta também… Ela estava sendo arrastada para não morrer ali por causa da bomba. E isso é de uma repressão terrível que me afetou muito, independentemente de quem eram essas mulheres, de quem eram esses jovens. Então a partir da minha sensibilidade, da minha criatividade, eu consegui entender isso. Não sei se eu falei algumas coisas de acordo com o que foi perguntado, mas enfim. Alguém quer falar?

Guilherme: Sandra, está sendo ótimo te ouvir. Vamos continuar caminhando e pensando redondo. Alguma pergunta ou comentário?

Roda de conversa com Sandra Benites mediação Luiz Guilherme Vergara, Companhia de Mystérios e Novidades, 26 de outubro de 2022. Fotografia: Jessica Gogan

Noite Luz: Deixem-me organizar meus pensamentos um pouquinho. Toda esta questão de como arte… Eu sempre desenhei desde muito criança, e, nesse semestre, eu tive uma realização que a minha fuga, minha procura pela arte — desenhar, dançar, performar, criar em si — era uma forma justamente de lidar com depressões, com traumas, as coisas que eu reprimia mesmo.

Então eu consegui ver o quanto a arte me salvou, não completamente porque eu ainda tenho sequelas e transtornos que vieram dos traumas, mas, sem essa arte, sem tratamentos, sem cuidados médicos de psicólogos, psiquiatras, eu não teria conseguido sobreviver do jeito que consegui. Isso que você está falando tá mexendo muito comigo. Porque a arte é muito importante e arte pode salvar muito quando a gente não consegue se achar. Quando tive esta realização, parei para rever todos os meus cadernos e revi tudo com outros olhos, onde vi que cada personagem que eu desenhava, cada poema estava questionando quem eu era e o que estava acontecendo. Era eu tentando parar de reprimir tudo que eu sentia a vida inteira.

E eu acho cada vez mais importante que a gente instigue mais a arte, principalmente com as crianças, para que elas possam se expressar e procurar ouvir o que elas estão sentindo, porque muitas vezes elas não são instigadas a isso. A gente ouve na vida inteira coisas como “engole choro, você está exagerando”, “isso daí não é nada, você está inventando coisas na sua cabeça”, e não é bem assim. Isso tudo que a senhora está falando é extremamente importante.

Thelma Vilas Boas: Boa tarde, prazer em vê-la pessoalmente. Essa conversa “redonda” me fez lembrar de um adinkra, o Sankofa, que é quando um pássaro olha para o rabo e vira o bico para trás, o que quer dizer que não existe tabu em olhar para trás e recolher aquilo que se perdeu. Ouvir você, o meu esforço de vir aqui hoje para lhe encontrar e ouvir, na roda da vida, também é na esperança que sua sabedoria nos faça recolher aquilo que se perdeu, e que, sem tabu, sem aquela prepotência daquilo que nos constitui enquanto sociedade hegemônica não só de Brasil, mas de mundo, buscar o que perdemos. E é curioso, porque olhar para trás, ao mesmo tempo, é olhar para frente e buscar lá atrás a “casa” que a gente perdeu, mas que encontraremos lá na frente. E aí, a conversa fica redonda de novo, porque o tempo é circular mesmo, né… então… é sempre assim… curioso como a gente fica com vergonha de falar… Que haja idade para a gente viver caminhos pra percorrer! E, enquanto te ouço, a cabeça voa ao encontro de significados e significantes para tantas coisas que a gente está tentando encontrar.

Mas acho muito importante reconhecer a responsabilidade pelo momento que nos encontramos… então de novo um rodopio, que nos faz perder para onde olhar… reconhecer que esta conversa, redonda e em volta, é também porque a gente perdeu algum fio por aí.

Zíngara: Eu acho que é muito potente o que está acontecendo aqui, porque é tão maior, a gente não está falando da arte, é tão mais profundo. Hoje nossa sociedade precisa se encontrar, um lugar para se reconectar com as coisas que importam… que tá, como você falou, na comida, e tá nisso que a gente está fazendo, se propor falar e tal. Então mexe, sabe, porque a gente perdeu mesmo muitas coisas assim, e estou muito emocionada porque eu estou grávida e é muito difícil, sabe? Falando das coisas que a gente ouve quando criança, acho que temos que lembrar que nossas mães e nossos pais estão lidando com muitas coisas, muitas demandas mesmo. Quando você está falando de mulher, agora estou neste lugar de ser mulher gestante, são muitas demandas mesmo. São esforços muito grandes, às vezes muito mais mentais, que cobram a gente do que de fato a gente está fazendo.

O peso que sinto hoje no corpo de ele trabalhando para criar um ser humano ainda é menor… enquanto minha cabeça: “como vou ser mãe?”. E, sinceramente, por mais que amo o cara que vai ser pai, eu sei que ele não está passando por um processo tão intenso quanto eu, sabe. E porque como você falou… que a gente perdeu esse lugar de a mãe ensinar para o filho homem uma sensibilidade de pisar leve no chão.

Trabalhar uma escuta é muito complexo. Muitas coisas são separadas… como entender que se interconectam? É muito trabalhoso. Acho que os lugares assim que podemos fazer o que estamos fazendo é maior do que a gente pode conceber. Te escutar hoje, não sei dimensionar a potência, porque é realmente muito necessário, é o que você falou da gente encontrar um lugar comum também pelas dores, sabe? Da coisa maravilhosa que estou vivendo, mas que é muito desafiador… é muito doido você acordar um dia e saber que você está gerando um ser humano e todas as outras coisas que a gente tem que gerenciar… Porque, é isso que você falou, a gente materializa o que a gente precisa falar. A minha arte passa a ser sobre tudo, sobre como estou gerenciando uma grana, como pensar nesse filho, como pensar nessa criação… A arte na verdade é só o fragmento que esta sociedade encontrou para se conectar com algo que é tão básico. O que estamos falando aqui — escuta, troca, ouvir os mais velhos, comida —, tudo isso é tão básico, mas está tão perdido sem fazer esses elos. Para mim hoje é um presente… tão básico, mas tão complexo, cheio de coisas a se desdobrar. Muito obrigada.

Martha Niklaus: Super legal você falando isso! Esse desejo de coletividade, de estar junto, de poder participar conjuntamente de um acontecimento seu, como isso é acolhedor, como isso traz pertencimento e te fortalece, é muito legal. Mas, Sandra, eu queria trazer uma questão que eu fiquei curiosa, porque você está montando um museu, não é? Você está há dois meses num museu indígena em São Paulo, não é isso?

Sandra: Então, o Museu de Culturas Indígenas é uma instituição da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado de São Paulo gerida pela ACAM Portinari (Associação Cultural de Apoio ao Museu Casa de Portinari) em parceria com o Instituto Maracá, que tem como finalidade a proteção, difusão e valorização do patrimônio cultural indígena, que é uma instituição que foi construída pelos próprios indígenas de São Paulo. Aí eu fui chamada para fazer parte da curadoria, mas, essa curadoria, ela não é só minha, ela é coletiva, e o tempo todo a gente discute, dialoga com os parentes, entre a instituição, construindo um museu, mas de que não seja museu parado como outros museus.

Martha: Porque o museu que a gente está acostumado é um museu que quer guardar as coisas para aquilo se perpetuar, e se perpetuar em forma de coleções, objetos que você quer que fiquem guardados. E como é que fica para você, para a sua cultura, essa relação com a memória que a gente faz dessa maneira e que eu acredito que vocês não têm museu, guarani. Como seria o museu do guarani? Onde é que ele se localiza, entendeu? Então você, hoje, como uma indígena dentro de uma estrutura institucional com todas as suas características de museu, de acervo, de coleção, quando você fala: “o objeto ele tem que ficar ativo”, então como é que é isso dentro de um acervo, como é que você transporta a sua cultura para um espaço institucionalizado, sabe? Isso me traz muita curiosidade.

Isabela Santilli: Sandra, que bom te ouvir! Também compartilho dessa sensação de potência… E, por vir da área da saúde e ser formada em psicologia, fico aqui te ouvindo sobre outros caminhos para o cuidado, importantes que eu escute, que nós escutemos, para que a gente possa repensar e viver de outros modos os nossos cuidados em saúde mental. Porque, vindo dessa área de saúde, sinto muitas aproximações com que você trouxe sobre a escola: de como o modo de construção da escola ocidental não percebe, não concebe a educação que se dá na aldeia e o quanto os saberes da psicologia, da saúde e da medicina, por exemplo, ainda não incorporaram e/ou negam os modos de produção de cuidado indígenas que incluam a coletividade, ou o território, por exemplo… Esse pisar leve no chão, o voltar para o brejo para olhar para as plantas, a necessidade de um deslocamento da culpa, os modos de resolução de questões em coletivo, a arte como um recurso para não ter depressão… Fui anotando aqui algumas pistas. Então queria te agradecer porque você trouxe muitos elementos que nos ensinam a pensar outros caminhos de saúde. Como tembi, para podermos nos cuidar e sobreviver a esse mundo que está nos adoecendo de modo distintos o tempo todo. Obrigada.

Anita Sobar: Como conversa circular, eu achei que seria interessante estar no centro da roda [se posicionando no centro]. Acho que assim a gente vai comungar todas as energias, fazendo esta conjunção. Primeiramente quero agradecer imensamente a sua fala, ela só reforça também a maneira que eu penso arte. É muito importante hoje em dia, especialmente a gente sabendo da condição que estamos vivendo na conjuntura política de uma forma macro; aqui estamos falando das micropolíticas e a gente não pode deixar de tratar também desses afetos que nos movem. E aí você trouxe muito. Eu tinha feito uma anotação de um texto recentemente do livro O mundo em mim, que é o livro do pesquisador indígena João Lima Barreto, onde ele narra, quando era pequeno: “Meu pai falava sobre a importância de uma unidade social, assim como eu, dentro da unidade que pertenço, ou seja, essa unidade social também pensar eu dentro dessa unidade em que pertenço”. E é um pouco o que você traz, não só essa teoria, mas com essa prática que caminha junto, e isso é uma coisa que não consegue estar sem a outra. Você falou sobre o sistema que reprime, da gente que vai juntando coisas a partir das relações dentro da nossa concha, peneira e bainha dessa disciplina tão interessante que eu tenho tido oportunidade de fazer com um grande esforço também para sair da depressão. A gente também tem que assumir esse lugar, porque a arte não é sempre vislumbrar coisas maravilhosas, ela é também processo; um processo que implica em estar conectado, estar em relação e se permitir também ser atravessado, e este ser atravessado, muitas vezes, não é um lugar confortável, precisa assumir os riscos de ser artista, ser artista é assumir riscos. É também pensar nas tramas, essas coletividades do vivido… pensar nessas tramas, no fabular, no tratar junto, nesse construir para respirar. Ultimamente eu tenho feito uma série que se chama Fôlego, porque está difícil respirar.

Li recentemente um artigo que fala de refazer corpos e esculpir afetos, isso também trata de estilhaços. Você falou dos fragmentos, e eu queria também, como a minha colega — qual o seu nome, Zingara? O meu é Anita, não sei se eu me apresentei —, queria trazer também a maternidade para o centro dessa roda, sabe? Porque você fala da escola, você fala da criança, dessa importância e de não deixar sucumbir, e a maternidade, muitas vezes nós, mulheres, nos colocamos em um lugar muito difícil, que além de sermos mulheres somos mães. Então a gente é triplamente cobrada e tem que fazer um esforço sempre maior para parecer que está tudo bem, que eu sou um homem dentro dessa sociedade heteronormativa. Mas não é verdade, precisamos compartilhar disso e compartilhar é compartilhar também o amor, precisamos compartilhar o amor entre um e o outro, para que não haja mais portas abertas para o fascismo. É isso que eu queria dizer em agradecimento a sua fala.

Sandra: Eu queria compartilhar com vocês as falas de vocês, começando dessa roda assim, que eu acho que a arte exatamente é a nossa resistência à depressão. Como falar… eu tinha reprimido as coisas e eu acho que quando a gente se olha e sente a nossa dor, acabamos sendo criativos. Então não que a gente não sofra, a gente sofre, então eu acho que é por isso que a gente vai ser muito criativo. Eu vejo muita criatividade existindo, resistindo e, embora tenham outras camadas muito difíceis, a gente esteja vendo vários pais desempregados, várias pessoas passando dificuldade, muita fome, que entristece, mas precisamos resistir e continuar.

E, voltando um pouco, eu acho que você falou isso que a questão da resistência, você falou “eu resisti”, eu acho que esse é o caminho, é exatamente a arte que traz para a gente este “resistir”, para a gente fortalecer. Não que vamos resolver todas as nossas emoções, mas sim começar a resistir e somar coisa. Então, acho que eu mesma faço por isso, e essa ideia do que você falou também da memória, da memória, do olhar para o rabo, para trás, eu lembro que teve um professor pataxó, eu lembro que ele usava essa metáfora do arco e flecha, dizendo: “Quanto mais para trás a gente puxa, a gente vai mais longe”.

Então a memória, acordar a memória, você voltar a olhar para trás significa isso, é para você ir mais longe, porque senão, se você apagar a sua memória, você não consegue achar qual caminho você vai seguir. Então, eu acho que a ideia de a gente se submeter à colonização, todo esse aparato de impedir, de nos deixar de mãos atadas, é exatamente por isso que a gente chega nesse momento, a gente tem que lutar contra outras pessoas que deveriam estar com a gente. Mas isso é um processo mesmo, eu acho que por isso nós somos humanos, então muita gente me perguntou se eu estou com raiva, se eu disser que eu não estou com raiva, eu estou com raiva, mas eu tenho que resistir e criar outros caminhos para não adoecer, porque a raiva pode deixar a gente adoecido.

Têm várias narrativas que são muito interessantes no nosso costume guarani. Por exemplo, quando surgiu o mundo, Nhanderu, [nosso ser criador e primeiro pai] nasceu uma mulher, uma mãe, Nhandesy. Depois ela foi devorada pelas onças e seus filhos ficaram órfãos, duas crianças ficaram órfãs, e aí, no final da história, essas duas crianças que ficaram órfãs, na verdade, eles tentaram se vingar do inimigo que devorou a mãe, mas não conseguiram. Então, no nosso costume guarani, para a gente devorar nossos inimigos, você tem que saber dançar, se esquivar, senão você não sabe enfrentar mesmo de cara, é que você não vai saber o código. Aí você tem que usar muito isso, que causa dor também, conflito. A gente tem que saber segurar nossos conflitos, para ir mais longe e começar a isolar o que precisava banir no nosso meio, como o Cacique Babau falou. A gente tem que se aliar inclusive com os pais do que cometeu delito, para que eles também entrassem em consenso para banir de fato aquela pessoa, que é uma forma de se resolver. É o nosso jeito. É fácil? Não é. É muito doloroso, é muito triste, mas a gente abraça isso como coletivo e não só como um indivíduo, aí causa maior impacto. Então eu acho que é um pouco isso quando a gente fala da memória.

Aí vem aquela história da desorganização de um professor que falou que uma vez ele estava dando aula para a educação infantil. Era professor do Rio Grande do Sul. Falou que porque no nosso costume do guarani quando chove a gente deixa as crianças brincarem do jeito que elas querem brincar, e por isso a gente tem também uma outra escola. O prédio não consegue acolher da forma que a gente é, nem as crianças não conseguem acolher. Aí eles fizeram uma outra casinha do lado para quando chover as crianças ficarem ali. E aí diz que elas começaram a brincar, cada uma ficava deitada, uma fazia a outra deitar em cima da mesa, e começou a desenhar. E aí o professor estava provocando a criatividade das crianças, cada uma fazia o que queria… tem que fazer, não reprimir o sentimento das crianças, que isso é uma coisa muito triste para a gente. Mas claro que existe um adulto para controlar assim, não se machucar — não para controlar, controlar é feio, para orientar, orientar para não cair. Mas ele estava só olhando as crianças, aí disse que a coordenadora chegou e depois chamou a atenção dele dizendo que a sala dele estava desorganizada.

Eu acho que quando a gente seguir, caminhar, começar a caminhar juntos, de forma coletiva, nós seremos desorganizados no ponto de vista desse que está nos reprimindo, que deixaram a gente de mãos atadas, de mãos amarradas. Então isso, não do ponto de vista desse ali, a gente será desorganizado, porque somos diversos, com pensamentos diferentes, trajetórias diferentes, cada um tem a sua criatividade, eu sei fazer colagem, mas eu não sei fazer cestinha. Então essas questões vão ser desorganizadas do ponto de vista do que já tem, do que já vem dominando a gente. Eu acho que a questão do acervo, que eu achei muito interessante que vá ter acervo no nosso museu que está nascendo. Engraçado, falando de nascimento, porque o museu começou a se envolver loucamente para poder nascer, aí começou, em nove meses pariu o museu. Então, quer dizer, os parentes começaram a parir o museu e agora que a gente está começando a trabalhar isso, e existem vários desencontros, encontros desorganizados e várias outras coisas. Mas a gente vai aprendendo muito com isso. Vai ter acervo, nosso grupo curatorial já está lá, o quadro das pessoas pesquisadores já está preenchendo, então está começando a chegar. Uma das coisas que a gente já começou a fazer é atividades, porque o Estado obriga, fala assim toda hora “faz isso, faz aquilo”, porque a gente tem que cumprir essas normas…

E aí eu achei interessante que a maioria indígena… primeiro os que estão lá acompanhando a exposição se chamam mestres dos saberes. Eles não são educadores, eles são mestres dos saberes, e eles estão lá acompanhando a exposição e como mediadores educativos. Os mediadores educativos que são mestres dos saberes. E eles vão se revezar aos poucos, de seis em seis meses eles vão revezar esses mestres. Então existem jovens, pesquisadores mais velhos, também indígenas estão ali, estão se revezando e é uma troca. Eu achei muito interessante porque ali parece que está se moldando para que esse espaço no museu tenha encontros de parentes com parentes, e parentes com não indígenas. Porque esse formato já está começando a acontecer, parente com parente, de que eu estou falando assim, parente que é da cidade e da aldeia. Eu achei muito interessante isso que a própria exposição começou assim. O Xadalu é artista indígena, mas ele se identifica como mestiço, ele mesmo fala, ele fala que o DNA dele é marginário. Outras pessoas indígenas participando neste momento inaugural inclui Denilson Baniwa, que a grande maioria de vocês conhecem como artista, é Baniwa do Rio Negro. Então já começa essa exposição mais ou menos assim. E aí quando vem a programação, que o próprio Estado demanda, a gente começa a adaptar para trazer pessoas da aldeia prepararem o Dia do Idoso, por exemplo. Eu achei muito interessante que nós trouxemos parentes idosos e não idosos, também pesquisador que fala sobre a importância do idoso, aí eles vieram fazer palestras para pessoas juruá explicar o porquê da importância do idoso, dos próprios parentes. Então a gente está adaptando, na verdade, no fazer.

Guilherme: A exposição está no site para que as pessoas possam ter acesso?

Sandra: Ela está no site do Museu das Culturas Indígenas.

Conversa com Sandra Benites mediação Luiz Guilherme Vergara. Fotografia: Vitor Szpiz

Esse lugar [o museu] muitos parentes chamam que é a casa de reza, como se fosse casa de reza. É muito tranquilo você entrar lá, você pode sentar e tem vários banquinhos de bichinho, que você pode sentar e refletir, é muito gostoso ficar lá. E aí eles transformaram isso. Em Outubro Rosa, por exemplo, a partir da demanda também do próprio Estado, a gente trouxe pessoas que trabalham com saúde indígena, e também pessoas que são da aldeia e são mulheres… mulheres da aldeia, mulheres de parentes também, não aldeadas, para discutir qual acesso elas têm em relação à questão da saúde. Eu achei muito interessante isso. Em uma exposição tem uma equipe de médicos explicando e também falando da dificuldade que as mulheres têm, e aí assim falam sobre o território. E eu achei tudo isso muito interessante, ter esta equipe da saúde explicando a causa do câncer de mama, por exemplo, ou do útero, essas coisas… E aí eles falaram que fizeram várias pesquisas dizendo que hoje parece que o câncer que afeta mais as mulheres indígenas é o câncer de útero e não de mama. Eu achei muito interessante isso porque as mulheres começaram a falar, elas falaram sobre como elas se alimentam na cidade, que comida morta que elas estão comendo. Elas falaram que tudo é comida artificial, quanta comida química que a gente come. E aí voltamos à importância de demarcar terras para os indígenas, para os quilombolas, para as comunidades tradicionais e vários outros. Eu lembro que um parente veio para falar em uma exposição. Ele falou que essas comunidades que vivem e tem relação diretamente com a terra servem como escudo de violência para proteger as coisas e o juruá, que mora na cidade, precisa entender que a gente está como um escudo, não só como indígena. Enquanto quilombola, enquanto comunidades tradicionais, pescadores, marisqueiras e vários outros, que a gente sempre viveu como escudo. Eu achei bem interessante que ele falasse sobre isso. A gente fica fazendo coisas ali, teve mestre do saber, as mestras guaranis foram lá também, fizeram reza e levaram isso como fortalecimento e falaram que aquele ali, o museu, foi batizado, então não fomos nós que falamos, falaram assim que tem que ser batizado por nós. E aí eles começaram a questionar algumas coisas, inclusive alguns desenhos, aí eu acho que a escuta é muito importante. No prédio do museu tem uma antena enorme no sétimo andar, e do lado tem uma onça e, do outro, ainda não tem desenho. E aí eles estão discutindo o que é que a gente vai fazer ali, e aí eles falaram que é coberto de onça. Para os guaranis, a onça tem um significado muito forte, espiritualidade, e para outros não, mas falaram que a onça é um protetor muito forte e não é em qualquer lugar que também a gente coloca a imagem da onça. Eu achei bem interessante essa discussão, e vamos discutir sobre isso e, assim, essas coisas vão se ampliando e vamos chamar várias pessoas. Mas isso também requer um tempo. Por exemplo, a gente começou a trabalhar com a exposição do guarani em Jaraguá apenas, porque não temos pernas para discutir ainda todas as questões. Mas a ideia é sempre ter exposições, e que elas vão continuar, mas vai ser muito nesta lógica da escuta, da soma, de ampliar… e isso é infinito assim, não vai ter definições.

Mas voltando à questão da gravidez, que foi falada pela gestante, e eu estava falando isso quando a gente estava almoçando, eu falei que na nossa língua não existe equilíbrio, na nossa língua existe desequilíbrio. E por que é que o desequilíbrio aconteceu? Porque, a partir da gravidez, segundo a nossa narrativa guarani, Nhandesy e Nhanderu são lugares diferentes: Nhandesy é o próprio chão, a própria terra, e Nhanderu é ywateguá que a gente chama de cima. E quando disse que começou a se encontrar para gestar a mãe terra, para gestar a terra, diz que a gestação começou sem o consentimento da Nhandesy, ela foi assim, tipo através da sedução. Por isso que tudo que é para a gente na nossa língua, por exemplo, existe o que é que é wai, que é excesso. Então o que é excesso? Waipá também é bom, mas também é ruim. A mesma palavra serve para duas coisas, então isso vai depender do excesso, da prática do excesso. Segundo as mulheres, isso, as mulheres que contam, os homens contam diferente, por isso que existem versões diferentes, eu falo sobre isso. Então elas falam que quando Nhanderu veio para terra, a Nhandesy não sabia que ele não podia ficar na terra e teria que voltar e, quando voltou, depois que a Nhandesy engravidou, ele voltou para o amba [morada celeste], que é o lugar que a gente chama de ywateguá, isso é um espírito, não é um corpo. E nós mulheres dizemos que somos corpos, carne, por isso que a terra é nosso corpo. E aí como Nhandesy não podia se mover para ir morar com Nhanderu, ou nem Nhanderu não podia morar aqui, é que tiveram esses equívocos, houveram esses atritos entre Nhanderu e Nhandesy. Então por isso, para nós, não existem coisas equilibradas, existe desequilíbrio. Então, quando a gente vai começar a pensar uma coisa, a gente tem que pensar do desequilíbrio para equilibrar a coisa. Isso é um processo, essa é uma luta, é uma forma, cada um tem que entender, então, a partir do nosso desequilíbrio que a gente chama de tekoa hasy, quer dizer seres imperfeitos. Nós somos seres imperfeitos. Então a gente vai construindo coisas, a gente está tentando buscar equilibrar coisas e o mundo, estar em equilíbrio. E parece que no mundo da visão juruá as coisas já estão prontas, já estão equilibradas, não tem mais nada para discutir, e aí a gente vai seguir em frente. Eu acho que essas coisas deixam a gente iludida de entender que parece que a gente não tem como, incapacitado de entender nós mesmos. Então toda a instância, digamos das instituições, onde a gente recorre, eu não estou dizendo que é tudo ruim, eu estou dizendo que é importante para a gente entender também. No meu caso, eu gostei de ter estudado no Museu Nacional, de ter feito antropologia, eu gosto e continuo fazendo, só que eu não entro no jogo. Eu sei onde, e qual hora que eu vou entrar e qual hora que vou sair. Acho que é totalmente um jogo.

Aí, voltando a esta ideia de desequilíbrio, eu acho que é um pouco o que todos vocês comentaram. Queria citar uma coisa, o caso do meu filho, que entrou na faculdade na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) para estudar engenheira ambiental. Mas, seis meses depois, ele me ligou dizendo que não queria mais estudar, que não estava conseguindo acompanhar os colegas, principalmente nas disciplinas de física e química. Ele alegou que se ele estudasse em uma escola particular ele poderia acompanhar os outros colegas que estavam lá. Olha a distorção da coisa!

Eu falei: “Então vamos lá, filho, vamos sentar e conversar”. Expliquei tudinho, porque ele não podia praticar certas coisas que a gente praticava, porque a gente morava no Aracruz, só tinha eucalipto, não tinha mais nada. Então, como é que eu vou continuar dando ensinamento para o meu filho se só tem eucalipto, não tem mais rio, não tem mais pássaro, não tem mais nada. Então a ideia era só ir na escola todo dia e fazer outras coisas que cabem a mim, e aquilo que não cabe a mim eu não conseguiria fazer. Então aí eu expliquei para ele: “Olha filho, é o seguinte”, eu falei, “quem não está sabendo te acolher, te receber, é a Universidade, coloca isso na tua cabeça”. Eu falei: “Primeiro, física e química a gente pratica todo dia, o método de entender, compreender e praticar física e química a gente vive o todo tempo isso, a gente carrega isso nas costas, só que ninguém perguntou se você sabe, como que você entende química e física no costume juruá na Universidade. Então isso está equivocado”.

Aí eu comecei a explicar para ele isso. O nosso método de física e química é o que a gente faz o tempo todo de ritual. Quando a gente vai matar uma anta, vai caçar uma anta, a gente faz ritual para pedir ao espírito das antas. Para o espírito das matas, como é que a gente vai entrar para pedir permissão para tirar uma folha? A gente olha qual é o lado que a gente vai tirar a casca, e depois, no outro mês, se a gente precisar de novo, a gente pensa qual casca que a gente vai buscar, onde que a gente vai retirar, em que lua que a gente vai tirar. Tudo isso tem a ver com os nossos saberes e, se não tiver mais mata, não tiver mais rio, não tiver mais brejo, só tem eucalipto, infelizmente, na época que ele estava estudando na escola só tinha isso, eucalipto, lá em Aracruz. Então eu tive que fazer todas as explicações para ele entender que, para ele se fortalecer de novo, de entender para ele não jogar a culpa nele mesmo, de achar que ele é incompetente, de não continuar estudando, ou seja, de não poder continuar estudando.

Então eu acho que quando a gente trata do que o juruá chama de cultura e arte, eu chamaria isso de saberes… não é cultura, é um saber, um saber de um povo, ou de grupo, ou de indivíduo, então é um saber. E por isso que é muito importante a gente guardar esse saber em segredo e também em que momento a gente vai falar sobre esse nosso saber, inclusive. Nessa universidade a gente precisa falar sobre isso porque não está respeitando e não está sabendo nem da existência do nosso saber. Como é que a gente inclui a diversidade nesse lugar que a gente não conhece o outro? Então eu acho que a partir dessas questões eu começo a trazer isso, olhar muito desse saber. Eu não sei se eu chamaria de arte, eu não sei se eu chamaria de cultura, mas eu chamaria mais, pelo menos para mim, assim ficou mais leve, de chamar saberes… de saber, de conhecimento. Eu não sei como é que a gente chamaria, tem outros que não concordam de a gente chamar ciência. Na minha língua, eu falo isso porque tem outra forma, uma outra lógica de falar, que é o arandu [conhecimento]. Também é o fazer. É um processo, não é uma coisa pronta. Arandu também é conquistado, não é uma coisa que é dada, mas conquistada. Então, por exemplo, arandu é quem sabe fazer rituais para ir passar. Quem conhece uma casca que é boa para diminuir o fluxo de sangue é um arandu. É uma conquista que tem que buscar. Do mesmo jeito, o tembia é como se fosse uma caça.

Então acho que tem muitas coisas que a gente não discute. Não dá para trazer, por exemplo, os saberes das parteiras, não dá para a gente trazer no museu. E aí eu fui entender que esses saberes são patrimônios que a gente precisa continuar mantendo, esses são patrimônios que não cabem no museu, mas é importante falarmos sobre eles. Então nós chamamos alguns pesquisadores para falar sobre a importância da continuação. Então eu acho que são esses caminhos que a gente percorre, que são caminhos o tempo todo conflituosos, e dolorosos também, e às vezes você não cabe em um determinado lugar. Quando você é visto como militante por exemplo, quando você é militante pela causa muitas das vezes você não é vista nem como artista, mas, às vezes, te veem como pessoas problemáticas.

Então eu já passei por isso também. E eu acho que para concluir a minha fala, que eu acho que eu gostaria muito de ficar, eu sei que vocês têm tempo, precisam ir embora e tal. Mas assim, o que eu queria dizer, que eu acho que de tudo que a gente conversou, todos vocês precisam carregar um pouquinho de tudo, não só como artista, não só como professora, não só como intelectual, mas sim é uma resistência. Por exemplo, eu sou guarani, quando eu morava na aldeia, eu tinha uma outra forma de pensar e de ver as coisas, e depois que eu vim para a cidade eu comecei a ampliar o meu jeito de olhar, por conta dessas várias outras experiências, e muitas vezes quando eu chego na aldeia também eu sou estranhada, não sou mais aquela Sandra. E aí eu me vejo, eu acho que todos nós, a gente vai se vendo nesse lugar, é que a gente não tem lugar às vezes, a gente está aqui entre coisas, sabe? Parece que são duas paredes, você está desse lado, às vezes você está aqui, mas isso eu acho que é o nosso processo de caminhada… porque às vezes você não cabe em lugar nenhum, ou às vezes você cabe em dois, isso é uma tarefa muito difícil também, é conflituoso isso, mas é importante a gente saber de fato se abraçar. Independentemente da forma, como a gente pode se chamar de “um dos nossos”, a gente chama alguém que fica, ou vive da mesma forma, ou que sofre a mesma coisa que a gente passa, “um dos nossos”.

Por exemplo, o movimento negro é um dos nossos. Não são parte da família, mas que eles vivem também como um dos nossos, tipo, estão na mesma que a gente. Eu estou falando da forma de luta mesmo, da forma de resistência, da forma de violência, de ataques que a gente sofre. E eu acho que isso para mim me traz muita força, eu não estou dizendo que também eu sou sempre forte. Quando eu saí do MASP, porque tive que cancelar uma exposição de vários artistas, isso me deprimiu um pouco, mexeu comigo, eu fiquei de fato abalada. Porque quando a gente pensa no coletivo, você, às vezes, fica num lugar muito difícil, você tem a sua particularidade que é você, sua individualidade e também tem outros que estão ali que você precisa decidir por eles. Assim, tomei a decisão, quando MASP decidiu de não colocar fotografia do MST, eu falei: “Com isso eu não brinco”. Porque o MST é um dos nossos também, então eu não podia, por mais que eu soubesse que eu não ia ter dinheiro para pagar aluguel e outras coisas, eu acho que eu tive que tomar essa decisão, e isso foi muito duro para mim, foi difícil. Não por mim, da minha saída do MASP, e sim pelos artistas que confiaram na gente, e ainda bem que eles voltaram atrás, resolvemos e a exposição aconteceu, ficou da forma que a gente queria, mas foi muito estressante, foi uma coisa que teve que mexer com a gente.

Então eu acho que ser artista, curadora, professora, militante, intelectual também… nem sempre as coisas são maravilhosas, acho que isso também é um pouco armadilha, lembrando um pouco do que ocorreu com Jaider [Esbell], por exemplo, isso mexeu muito também comigo, porque é um artista que eu conhecia. Ele foi muita referência para mim também, para o pensamento, de pensar as coisas no mundo da arte… e eu lembro do que antes dele fazer esta passagem ele me mandou um áudio e falou que queria conversar comigo humanamente. Isso vai ficar marcado para sempre, ele falando isso.

Eu acho que nossa humanidade é importante. Às vezes deixamos de acionar a nossa humanidade, aceitar a nossa humanidade, independentemente de quem é. Eu acho que eu vim aprendendo muito isso, que a minha avó falava isso comigo, ela falava: “Não espere que ninguém te abrace, quer dizer, não espere que o mundo te abrace porque o mundo é diverso, você tem que aprender a abraçar o mundo”. Então, quando a gente aprende a abraçar o mundo, mesmo com nossos conflitos, a gente consegue caminhar por vários caminhos, fazer voltas, tropeços e passar em cima de várias outras coisas para você não se machucar. Então a gente vai levando isso. Eu acho que isso me fez também ser uma pessoa que eu sou, que não carrega nenhuma culpa comigo. Eu tenho, às vezes eu tenho culpa de algumas outras coisas em relação aos meus filhos, essas coisas, mas não é uma culpa que a gente não pode carregar que adoece a gente, que não cabe à gente discutir. Então eu acho que não existe culpa, existe equívoco, mas isso não é sua parte, é de várias outras coisas, porque têm coisas que cabem a você, têm coisas que, por exemplo, eu queria que meu filho aprendesse… a praticar ritual, não tinha mais planta, não tinha mais nada, não tinha rio, a gente bebia água da torneira… então como é que eu vou me culpar por isso? Mas eu posso lutar por elas, posso falar dessas minhas inquietações.

Então eu acho que é isso, pelo menos para mim, eu fico muito feliz de ter conversado com vocês, e é isso, eu trouxe também os colares que eu ia expor ali, mas acabei esquecendo. Mas, se vocês quiserem ver, está comigo, e é isso. Muito, muito, obrigada, eu estou muito feliz. É muito libertador a gente conversar assim. E vamos continuar fazendo isso com vocês, sem mim, e comigo, e outras pessoas que podem contribuir. Uma opção também seria trazer uma pessoa com a habilidade de tocar um som, o qual tem uma história, uma essência, um corpo e uma origem. A gente precisa sonhar também com isso. E eu lembro que o Instituto Maracá, que a Cristine Takuá, da Secretaria de Educação de São Paulo, é fundadora e conselheira, e também liderança guarani de lá, eles sonharam muito com o museu. Mas existem diversos museus e tem outros museus que a gente chama de extensão do museu, e aí tem muitos parentes que eles querem falar assim: “A gente quer fazer o nosso museu do nosso jeito”. Eles falaram que eles iam fazer o museu, eles não iam colocar acervo nenhum, mas que isso poderia chamar várias outras, como se fosse uma escola de ensinamento de outras pessoas que não tem conhecimento sobre guarani ou sobre outros povos Kaingangs [grupo linguista de povos indígenas].

Também eles falaram que ensinar, na verdade, não é jeito de juruá chegar e impor as coisas; ensinar é você partilhar as suas dores, os seus cantos, as suas comidas. Então eu achei bem interessante isso, que é uma forma de coletivo, de a gente se abraçar. Mas cada um oferece o que tem para o outro. Eu acho que esse é o processo de ensinar, é se ensinar e ensinar, não é uma coisa só, mas sim vários movimentos. Então vamos ver que eles estão falando que vão fazer museu, eles já estão fazendo casa, eles mesmos estão construindo, por exemplo, Jaraguá, já está construindo uma trilha, é a forma deles construírem museu, eles estão construindo trilha, eles estão criando abelha sem ferrão e várias outras coisas. Então isso é o museu que eles estão querendo. É isso, muito obrigada.

Jessica: Nós agradecemos você, Sandra, muito obrigada pela fala e escuta tão instigante e generosa. Também agradecemos à Companhia de Mystérios e Novidades, e todes aqui por terem vindo.

Sandra: Eu queria fazer um convite a vocês, se um dia me chamarem aqui de novo, para falar sobre o que vocês estão criando.

Guilherme: Sim, com certeza. Queria ressaltar minha gratidão e também observar como foi impressionante no conversar redondo, que é um conversar espiral, nós abordamos a todas as questões que estavam dentro dessa cartografia inicial. Muito obrigada a todes!

Sandra: Posso expor ali os colares?

Guilherme: Claro!

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Sandra Benites é Diretora de Artes Visuais da FUNARTE (2023). Educadora, pesquisadora e curadora. Descendente do povo Guarani Nhandewa. Mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ) e doutoranda no mesmo programa. Sua pesquisa e atuação vem focando nas particularidades das artes e vidas das comunidades indígenas, apontando para mudanças contracoloniais nas institucionalidades, museus e exposições, com os cuidados e particularidades de diferentes povos, etnias e culturas. Foi curadora da exposição “Dja guata Porã | Rio De Janeiro Indígena”, no Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR, 2017). Compôs a equipe curatorial do Museu das Culturas Indígenas (recém-inaugurado em SP, 2022).

Luiz Guilherme Vergara é professor associado do departamento de arte e membro do Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes da Universidade Federal Fluminense (UFF). Foi coordenador do curso de graduação em artes (2019- 2024) e diretor do Museu de Arte Contemporânea (MAC) de Niterói entre 2005–2008 e 2013–2016. Coordena o grupo de pesquisa Ynterfluxos. 


1 Em 2023, Sandra Benites foi convidada para assumir a direção das Artes Visuais da FUNARTE.