Nº7 Corpo chão coração
  • Zé Bezerra no Vale do Catimbau, Pernambuco. 2024.

Outras poéticas: mergulhos num Brasil de arte

Lucas Van de Beuque (texto e fotografia)

Pesquisar artistas das camadas populares tem sido a minha grande paixão. Se hoje é possível acessar artistas de todo o país sem sair de casa, essa não era a realidade há um pouco mais de vinte anos, quando comecei a viajar pelo Brasil. E, sem dúvida, mesmo hoje, com todas as facilidades de comunicação, conhecer o artista em sua casa/ateliê é uma experiência totalmente diferente.

Entre esses mergulhos, José Bezerra foi um dos maiores presentes dos últimos anos. Foram muitas idas. A cada uma fui entendendo um pouco mais do seu universo e, ao mesmo tempo, compreendendo o quanto sua dimensão era ainda maior do que eu imaginava. Escultor, poeta, músico, construtor de instrumentos musicais, contador de histórias, José Bezerra faz tudo de uma forma apaixonada, como se aquela fosse sua última obra, show ou performance. Mora no Vale do Catimbau, o segundo maior parque de pinturas rupestres do Brasil. Lugar mágico pouquíssimo conhecido que fica numa região de fronteira entre o Agreste e o Sertão pernambucano, com uma natureza espetacular. Seu trabalho ultrapassou fronteiras e ganhou o mundo, do MASP à Fondation Cartier, na França.

Sempre de carro, uma de minhas primeiras pesquisas foi no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Era uma viagem de um pouco mais de dez horas, saindo do Rio de Janeiro. Foi quase uma dezena de viagens em parceria com Angela Mascelani (que já pesquisava por lá fazia tempo). Campo Alegre, Campo Redondo, Minas Novas, Araçuaí, Itinga, Santana do Araçuaí. E entre tantos lugares e artistas, conhecer Noemisa sintetizou para mim a contradição dessa região que, apesar de ser uma das mais pobres economicamente, é uma das mais ricas culturalmente. Ela morava na região rural de Caraí, num sítio onde chegava-se caminhando. Ao longe, sua casa surgia como uma obra de arte. Em meio a uma natureza árida, Noemisa plantou flores no seu entorno e desenhou essas flores subindo pela fachada, com pássaros livres contrastando com gaiolas vazias. Seu corpo era frágil, quase não falava. Vivia isolada com sua irmã e sobrinhos em condições econômicas difíceis. Sua obra, porém, era forte, viva e decidida. Pela arte falava de amor, casamentos, festas… Ia longe e muito bem acompanhada.

À Ilha do Ferro e arredores também fui diversas vezes. Esse povoado, que na verdade não é uma ilha, mas uma zona rural da cidade de Pão de Açúcar, fica à beira do rio São Francisco. Banhada pelas águas, é um lugar que respira arte. Terra, principalmente, de escultores como Petrônio, Aberaldo, Leno, Antonio Sandes, Zé Crente, Vavan, Salvinho, Cícero, Dedé, Vieria, Eraldo e por aí vai. Fernando Rodrigues dos Santos, já falecido, foi o pioneiro. Também nesses arredores conheci Roxinha, uma pintora que mora na cidade de Pão de Açúcar. Nascida Maria José Lisboa da Cruz, trabalhou na lavoura, “quebrou brita” em uma pedreira local e foi gari por quase duas décadas. Começou a pintar aos 59 anos, como uma “brincadeira” entre ela e o marido. Teve primeiro a casa como tela, depois passou a pintar em quadros de madeira, retratando com um humor original o cotidiano da mulher sertaneja contemporânea. No bar, no rio, fazendo fotos para as redes sociais, ela quebra com os estereótipos do papel da mulher nos ambientes rurais. Suas telas trazem comentários curtos e bem-humorados da artista sobre a contemporaneidade, como “Ela só vive se amostrando no celular”. E fala, também, sobre assuntos pesados, como o feminicídio.

Em uma de minhas últimas viagens de pesquisa, em 2024, tive o enorme privilégio de conhecer Mestre Vital, responsável pelo Cordão Última Hora, um dos mais antigos do Carnaval das Águas de Cametá. Há cinco horas de Belém, nesse carnaval a rua é o rio. Os grupos desfilam em seus barcos pelas águas do rio Tocantins. São mais de 30 grupos carnavalescos distribuídos pelas ilhas fluviais e suas margens. Mestre Vital e Dona Ruth, sua esposa, moram numa dessas ilhas, à beira do rio Tentem, um pequeno afluente do grande Tocantins. Ele faz as máscaras de seu grupo, de cores e formas únicas, pura arte. Já tinha tido a oportunidade de ir, em outras viagens, a Alter do Chão e arredores, Ilha do Marajó, Belém e Ilha do Combú, mas só acompanhando um pouco do dia a dia no rio Tentem que pude entender a vida ribeirinha amazônica. Tudo acontece no e pelo rio. Até o carnaval.

Trouxe aqui, nesse pequeno ensaio, quatro artistas que me inspiram a continuar mergulhando no universo poético da arte que está espalhada e enraizada no Brasil, país continental de tantas diversidades.

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Lucas Van de Beuque é diretor executivo do Museu do Pontal. Idealizador, com Angela Mascelani, da nova sede do Museu do Pontal, inaugurada em 2021.  É professor do curso de MBA da Candido Mendes de Gestão de Museus. Fotógrafo, curador e cineasta, tem como tema de pesquisa os artistas e mestres da cultura popular. Codirigiu os filmes Juazeiro do Norte, Ceará: arte, fé e festa (2014), Artistas Cazumbas (2019) e Zé Bezerra, Artista (2024). Participou da curadoria de exposições, como “Festas, Sambas e outros Carnavais” (Sesc Casa Verde, SP, 2023 e CCBA, PA, 2024), que contou com obras de Mestre Vital; “Roxinha uma vida de novela” (Museu do Pontal, 2023); e “José Bezerra e os artistas do vale do Catimbau” (Museu do Pontal, 2024). Assinou as fotografias do livro Caminhos da Arte Popular: o Vale do Jequitinhonha (2009), de Angela Mascelani.