Nº7 Corpo chão coração
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Coração Zapatista. Foto: Diana Taylor. Cortesia Diana Taylor.

Sp’ijilal O’tan: Conhecimento ou epistemologias do coração

Juan López Intzín

Contexto breve

Quero começar contextualizando a “in-surgência”¹ do sp’ijilal O’tan, um termo maia tseltal cuja maior aproximação com a língua portuguesa seria “conhecimento ou epistemologias do coração”. Para mim, é de suma importância situar o surgimento e a insurgência do termo em um contexto complexo de luta sociocultural, política e epistêmica em nosso presente. A cultura e a língua maia tseltal estão concentradas no sul do México, nas terras altas e na selva de Chiapas. Eu venho dessa civilização maia tseltal que teve suas conquistas e cuja língua — parte da família linguística maia — é atualmente o veículo de comunicação diário de mais de quatrocentas mil pessoas na região.

A insurgência do sp’ijilal O’tan

A reflexão e a “in-surgência” do sp’ijilal O’tan — conhecimento ou epistemologias do coração — e sua apresentação no cenário acadêmico ocorreram quando começamos a pensar e repensar nosso lugar no cosmos. Nesse processo, percebemos que havíamos esquecido um cosmos e que nosso coração estava deslocado, fora do lugar, por isso precisávamos “trazer de volta nosso coração” a esse cosmos esquecido.

A primeira etapa do “trazer de volta o coração” começou no início da década de 1990, quando decidi abandonar o caminho que me levava ao que eu chamava de “colonização espiritual”. Naquela mesma década, especificamente em 1994, o movimento zapatista irrompeu na política mexicana com o lema “Nunca Mais um México Sem Nós” e o compromisso político-epistêmico de construir “um mundo onde caibam muitos mundos… onde caibam todos os povos e suas línguas”.

Esses eventos históricos permearam meu ser, me levando a “in-pensar”o mundo da vida maia tseltal e a reconhecer os padrões de nossos pensamentos. Ao começar a me envolver nesse tipo de reflexão, descobri algo maior, algo que nós, como povos, internalizamos ao longo de vários séculos. Refiro-me à nossa condição de sujeitos e povos colonizados desde a Conquista; nosso conhecimento é negado e, ao mesmo tempo, instrumentalizado. Chamei essa condição histórica imposta de “processo de domesticação”; assim, a “desdomesticação” é a antinomia permanente entre os povos.

Pensar e repensar nosso lugar no mundo e no cosmos desde a década de 1990 nos levou a situar nossos corações. Começamos a “in-pensar”, isto é, a pensar e refletir de dentro, usando nossos próprios termos na língua maia tseltal. Naturalmente, a “in-surgência”dos termos tseltal para reflexão não foi tão fácil. A razão foi, e continua sendo, o processo histórico e epistemológico de colonização que sofremos como povos.

Sobre os mecanismos de esquecimento e deslocamento do coração

Do esquecimento aos atos de trazer de volta o coração.Percebi que tínhamos esquecido o cosmos em 1992, depois que alguém abalou meu ser e minha consciência com uma frase: pinche indio (em português, “maldito índio”). Àquela altura, eu já sabia que o termo “índio” tinha uma conotação negativa e depreciativa. Como se sabe, a palavra “índio”, desde a conquista e o colonialismo, tornou-se uma categoria política para desqualificar e exterminar o “outro”. O “outro” era, e é, os povos que já existiam antes do período colonial. Muitos dos povos do passado são os povos de hoje.

Em 12 de outubro de 1992 — ao mesmo tempo que um mestiço me chamava de malidito indio — centenas de camponeses e camponesas maias marchavam na cidade de San Cristóbal de Las Casas, protestando contra o 500º aniversário da invasão espanhola de nossas terras ancestrais². Enquanto os manifestantes passavam por um local onde se erguia uma estátua do capitão espanhol Diego de Mazariegos, conquistador e fundador de San Cristóbal de Las Casas, um grupo derrubou a estátua do colonizador. A estátua ficava em frente à monumental Igreja de Santo Domingo, uma igreja católica administrada desde o período colonial por frades dominicanos. Tanto a estátua de Diego de Mazariegos quanto a igreja católica representam uma afronta à nossa história como povos. O que exatamente estava acontecendo nas profundezas de seus corações? Algo emergia tanto no coração pessoal quanto no coletivo.

Nossa condição histórica imposta.Desde a conquista dessas terras, o modo de vida de nossos povos foi dividido, criando uma fenda religiosa, política, jurídica, econômica, linguística e epistêmica em nossa visão de mundo. Por meio de encomiendas, um tipo de escravidão que explorava a mão de obra indígena, os colonizadores evangelizaram e transmitiram costumes e práticas europeias.

Na esfera religiosa, impôs-se a religião judaico-cristã trazida da Europa. As práticas espirituais dos povos conquistados foram proibidas, embora vários elementos tenham sobrevivido clandestinamente. Nas esferas política e jurídica, um novo sistema de governo e uma nova ordem social foram estabelecidos com a imposição do direito imperial. Na esfera econômica, os sistemas de troca foram transformados. Na esfera linguística, o espanhol foi estabelecido como língua oficial. Somente em 2003 as línguas nativas do México, aquelas que sobreviveram ao longo processo de “linguicídio”, adquiriram “status constitucional”, mas apenas com validade local e regional³. Na esfera epistêmica, escritos sobre a história de nossos povos e conhecimentos sistematizados foram queimados. Os códices que conhecemos hoje sobreviveram apenas porque foram roubados pelos colonizadores, que caracterizaram nossos conhecimentos como superstições. Os colonizadores chegaram a questionar se os nativos eram dotados de razão e alma. Em todas as Américas, os povos indígenas sofreram o mesmo destino, provavelmente com exceção daqueles que eram aliados dos invasores.

Ao destruir e subjugar, os colonizadores estabeleceram a supremacia sobre e entre os povos pré-hispânicos. Frei Bartolomé de Las Casas relata essa destruição em sua obra Breve Relato da Destruição das Índias. Essa obra emblemática retrata o extermínio sistemático realizado pelos colonizadores.

O contexto sócio-histórico acima mencionado, bem como nossas experiências pessoais e coletivas, foram nossos pontos de partida. Eles nos levaram aos avatares do escrutínio do nosso ser coletivo. Foi devastador perceber que o espírito indígena foi “dobrado e subjugado” unicamente pelo poder das armas dos colonizadores, já que o “encontro dos dois mundos” (como nos ensinaram no sistema educacional mexicano e comemorado em 12 de outubro, Dia de la Raza [agora Día de la Nación Pluricultural]) foi um choque brutal entre dois ou muitos mundos com imaginários e conhecimentos completamente distintos, em uma assimetria total entre civilizações. Entendemos que muito do que somos hoje como sujeitos coletivos foi uma imposição sócio-histórica do poder hegemônico colonial. Os governantes e seus soldados domesticaram nossos corpos e espíritos com a força do chicote e na ponta da espada, enquanto os líderes religiosos usaram a persuasão para colonizar “pacificamente” nossos corações e mentes. Se somos um povo domesticado, a “desdomesticação” é possível? Como seria e com o quê? Era hora de mergulhar no “México profundo” — como Guillermo Bonfil Batalla chamou o México de nosotros, nosso, dos povos indígenas — com nossa própria civilização, nossos próprios “outros” imaginários e nossos próprios sistemas de pensamento. Esses sempre estiveram — nós sempre estivemos — lá, embora o “outro”, nesse caso, o Estado mexicano, nos tenha considerado um problema a ser enfrentado em todas as frentes: cultural, linguística, política, econômica, jurídica e epistêmico-educacional.

Do desânimo à insurgência do ch’ulel

Pinche indio (“maldito índio”) abalou meu ser. Foi um abuso verbal que despertou ou mexeu com minha consciência. Essa expressão faz parte da gíria linguística dos falantes de espanhol nas Américas, então posso afirmar que os povos indígenas em geral foram rotulados de pinche indios. Embora o abuso e o desprezo esmaguem o espírito, essas situações muitas vezes despertam nossa consciência e “trazem nossos corações de volta” ao cosmos esquecido. Chamamos esse retorno em maia tseltal de xjul xch’ulel.

A invasão colonial estabeleceu uma nova realidade e novos imaginários entre os povos indígenas do México — bem como entre os demais povos pré-hispânicos das Américas — e seus mundos sofreram uma ruptura em seu cotidiano e em seu ser. Ao acompanhar diferentes comunidades maias em Chiapas em diversos rituais, reafirmei uma lição aprendida com meus avós, e hoje posso afirmar que os povos mapuche, aymaras e indígenas do Hemisfério Norte compartilham uma visão comum. Refiro-me à existência de ch’ulel em cada ser existente. Portanto, devemos conceder-lhes ich’el ta muk’ (reconhecimento e respeito pela grandeza e dignidade de uma vasta existência) por um lekil kuxlejal (uma vida de plenitude, dignidade e justiça). A seguir, explico alguns significados de ch’ulel para melhor compreendê-lo.

Ch’ulel e seus significados

O primeiro significado:Ch’ulel tem a ver com a essência primária da existência; poderíamos chamá-la de poder vital ou energia. Tanto humanosquanto não humanos participam do ch’ulel; isto é, todos os seres existentes têm ch’ulel. Essa noção de vida vai além da classificação ocidental ou científica baseada na existência de seres animados e inanimados. Na noção maia tseltal de vida, humanos, plantas, animais, minerais, água, oxigênio e outros elementos existentes têm ch’ulel. Por meio do ch’ulel, todos nós interagimos no grande campo da natureza ou vasta existência. Do micro ao macro, interagimos e afetamos uns aos outros. Ch’ulel é o que nos faz existir no cosmos, junto a outros seres.

Segundo significado: Também chamamos o processo de aquisição da linguagem em bebês, quando eles começam a nomear o ambiente ao seu redor, de Xjul Xch’ulel. Se observarmos, há uma ligeira variação em ch’ulel neste significado. O “X” antes de ch’ulel indica que se trata de uma terceira pessoa. Mesmo em pessoas que não adquirem ou desenvolvem a linguagem falada, ch’ulel é reconhecido.

Terceiro significado: Refere-se a um tipo de consciência ou noção de realidade. Quando uma pessoa está em um estado alterado de consciência devido à influência de uma substância, dizemos ch’ayem xch’ulel, significando que “seu ch’ulel foi perdido”, ele não está mais de posse dos cinco sentidos tradicionalmente conhecidos. Também pode ser dito ch’ayem yo’tan, significando que seu coração está perdido. Mas pode ser apenas uma distração indicando que uma pessoa não está em seu perfeito juízo. Quando a pessoa retorna ao normal, dizemos Julix Xch’ulel ou kuxix Yo’tan, significandoseu ch’ulel retornou a ele” ou “seu coração reviveu”.

Quarto significado: Nesse sentido, ch’ulel é entendido como tendo um caráter social ou coletivo, ou seja, um ch’ulel sociocomunitário. Diz respeito a áreas como família, comunidade e outros espaços de interação social. Certas práticas de vida existem em espaços familiares e comunitários. Portanto, esse tipo de ch’ulel é uma construção histórica; faz parte de nossa memória coletiva; é o conjunto de conhecimentos e sabedorias transmitidos e recriados de geração em geração. Sendo memória histórica, também representa a dor resultante das injustiças do passado e do presente. Quando sujeitos coletivos querem transformar as condições sócio-históricas que os colocaram nessa condição, surge um ch’ulel insurgente, como visto em 1994 durante o levante zapatista. Todas essas experiências são depositadas e cultivadas no O’tan (coração), que se torna sp’ijilal O’tan. Elas se tornam modos de pensar, agir e existir no mundo. Às vezes são próprias, outras vezes são adotadas e impostas, mas todas são modificáveis.

Spijilal O’tan: Conhecimento ou epistemologias do coração

Um dos ensinamentos comunitários dos anciãos maias de tseltal é que tudo o que existe deve receber ich’el ta muk’, pois tudo tem ch’ulel — como mencionamos no primeiro significado de ch’ulel. Se não forem tratados com ich’el ta muk’, “ya x-ok’ yo’tan sok ya x-ok’ xch’ulel”, como dizemos em tseltal. Ou seja, seu coração e seu ch’ulel choram.

Ch’ulel não é mais o único elemento aludido; outro elemento foi incorporado: o o’tan. Isso aparece quando se diz que tudo o que existe deve ser dado ich’el ta muk’, como explicado no terceiro significado de ch’ulel. Como já mencionado, a tradução literal de o’tan é coração. A princípio, poderíamos pensar que quando o o’tan (coração)é mencionado, estamos falando de um órgão, a parte física e material do corpo, e que o ch’ulel é um espírito, uma entidade metafísica, imaterial. Porém quando falamos do o’tan (coração), não estamos nos referindo ao órgão. É uma metáfora, uma imagem ou um espaço, um ser ou uma entidade que sente e pensa. Pode ser o próprio sujeito, como pode ser visto neste diálogo cotidiano entre o povo tseltal que citei em um ensaio de 2011:

Bixi aw o’tan – O que seu coração diz? – Lekbal ay aw o’tan – Seu coração está bem? – Mame xa mel aw o’tan – Não deixe seu coração ficar triste – Ma xch’ayat ta k o’tan – Não te perco em meu coração ou não te esqueço – Kuxix k o’tan – Meu coração descansou ou ressuscitou – Tse’el k o’tan yu’un ya kilbet asit – Meu coração ri porque vejo seus olhos – K’uxat ta k o’tan – Você machuca meu coração ou eu te amo – Yutsil k o’tan tik – A bondade do nosso coração – Ya jnop ta k o’tan tik – Nós pensamos ou meditamos com e no coração – A’yantaya ta aw o’tan – Converse sobre isso em seu coração – Nopa sok ajol aw o’tan – Pense sobre isso com sua cabeça e coração (López Intzín, 2011).

Da citação anterior, gostaria de enfatizar que o’tan aparece em diferentes marcas de possessão: awo’tan (seu coração), ko’tan (meu coração) e ko’tantik (nosso coração). Da mesma forma, podemos encontrar outras expressões com marcas de possessão para a terceira pessoa, singular e plural. O elemento o’tan não varia. Do ponto de vista linguístico, o’tan aparece como um substantivo. Esse nem sempre é o caso em certas expressões que implicam ou indicam ação (fazer algo), como: ya ko’tanin snopel jun, te antse ya yo’tantay sna yawil, ou ya yo’tanin slumalik te jme’tik jtatike. Essas expressões idiomáticas tseltal aludem ao fato de que se deve fazer as coisas com o coração e se entregar de coração; em outras palavras, é preciso se dedicar, se concentrar e se entregar completamente ao realizar um ato ou ação no tempo e no espaço. Devemos praticar o ato de yo’taninel spasel-smeltsanel (“coraçonizar” [em espanhol, corazonar] ao processo de fazer-construir), como cito na mesma obra de 2011:

…Tudo se corazona. Os atos de pensar – yo’taninel snopel – e fazer são corazonados – yo’taninel spasel-smeltsanel. Assim como se corazona o pensar e o saber, também se diz que o saber e o conhecer são sentidos pelo que se pensa-sente ou sente-pensa com o coração… Se corazonar o sentir-pensar e sentir-saber, isso nos torna culturalmente “diferentes” dos “Outros”, pertencemos a outra ts’umbalil [cultura], e talvez muito diferentes na construção, nomeação e relacionamento com o mundo-cosmos… que empregamos tanto o coração quanto a mente, amor e razão que nos levam à sabedoria-p’ijilal… Assim, a conjugação de coração e mente — amor, paixão e razão —, mais do que uma dicotomia disputada, é uma complementaridade que molda a racionalidade maia tseltal: sentimos para pensar e pensamos para sentir. Assim, qualquer ato criativo passa pela razão e qualquer racionalidade passa pelo coração e pelos sentimentos (López Intzín, 2011)

Nesse sentido, o o’tan torna-se um espaço e centro para a incorporação das experiências cotidianas das pessoas. Ao mesmo tempo, torna-se fonte e matriz de conhecimento e compreensão culturalmente situados.

Os campos do conhecimento e do conhecimento cultural

Spijilal O’tan não é apenas uma forma de nomear o que é conhecido e compreendido através da experiência acumulada ao longo da história. São modos específicos de vida comunitária, modos de estar com o cosmos. Implica relacionalidade a partir do ich’el ta muk’, reconhecendo a grandeza e a dignidade de tudo o que existe. É a arte de conhecer e reconhecer a si mesmo dentro da alteridade e a arte da sobrevivência, criando diferentes sistemas ou campos para o cuidado da vida. Abaixo, listamos os sistemas que consideramos incluídos em sp’ijilal o’tan.

  1. Sistemas de cuidado e cura que incluem: obstetrícia, fitoterapia, cura por orações, cânticos rituais, canções de cura, a criação de diversos instrumentos sonoros e seu uso para diversos fins. Diagnósticos de diversas doenças e seu tratamento;
  2. Sonhos;
  3. O cuidado e a preservação de sementes e diferentes culturas para alimentação;
  4. Ciclos rituais para o cuidado da água, do plantio, da floresta etc;
  5. Sistemas de numeração e contagem de tempo;
  6. Produção de tecidos e cerâmicas com designs pré-hispânicos e contemporâneos representando o cosmos;
  7. Reconhecimento dos ciclos lunares para realizar diferentes atividades como plantar e derrubar árvores;
  8. A arte da resistência e da “rebelião alegre”.

Estes são alguns dos campos ou sistemas abrangidos pelo sp’ijilal o’tan. No entanto, existem mais, e um deles — o “Bem-Estar” — é de natureza ética, relacionando-se ao comportamento e à boa conduta diante de circunstâncias externas. Referimo-nos a ich’el ta muk’ (reconhecimento e respeito pela grandeza e dignidade da vasta existência) e lekil kuxlejal (uma vida de plenitude, dignidade e justiça).

Abaixo, descrevo a arte da resistência e da “rebelião alegre”, ou o que chamei de “Epistemologia Política do Coração e dos Caracóis Zapatistas”.

Como sabemos, em 1994, os povos maias, unidos no movimento indígena conhecido como Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), romperam o véu de esquecimento, injustiça, negação e desprezo que prevalecia por mais de cinco séculos. Os zapatistas estabeleceram centros de operações políticas que chamaram de Aguascalientes. Em agosto de 2003, após um período de reflexão, decidiram mudar seu nome e os chamaram de Caracoles Zapatistas. Ao anunciar a transformação de Aguascalientes em Caracoles, o EZLN anunciou o seguinte:

[…] Dizem que costumavam dizer que o caracol representava a entrada no coração, era isso que os primeiros povos chamavam de conhecimento. E dizem que costumavam dizer que o caracol também representava a saída do coração para explorar o mundo, era isso que os primeiros povos chamavam de vida. E não só isso, dizem que diziam que o caracol servia para chamar o coletivo, para que as palavras pudessem ser passadas de uns para os outros e o acordo pudesse nascer. E também dizem que diziam que o caracol servia para ajudar o ouvido a ouvir até a palavra mais distante. É isso que eles dizem que disseram… (Subcomandante Marcos 2003, p. 2).

Como se pode observar na citação, a mudança de nome dos centros políticos resgata um legado, voltando o olhar coletivo para o que é verdadeiramente indígena e maia, com a figura e o símbolo do caracol e a relação entre ele, a história, o coração e o conhecimento. Portanto, os Caracoles representam uma mudança político-epistêmica no mundo; agora são lares ou espaços de encontro e diálogo, pontes que conectam mundos para observar e dialogar com base no reconhecimento e no respeito.

[…] Assim, os Caracoles serão como portas para entrar nas comunidades e para as comunidades saírem; como janelas para nos vermos dentro e para nos vermos fora; como trombetas para levarmos as nossas palavras para longe e para ouvirmos os que estão longe. Mas, acima de tudo, eles nos lembrarão que devemos estar vigilantes e atentos à integridade dos mundos que povoam o mundo (Ibid., p. 12).

Com esse anúncio, eles nos contam sobre as funções dos Caracoles Zapatistas, suas origens e seu modo de vida zapatista: rebeldes, desobedientes e que:

[…] Quando se espera que falem, permanecem em silêncio. Quando se espera que fiquem em silêncio, eles falam. Quando se espera que liderem, ficam em segundo plano. Quando se espera que sigam atrás, eles se afastam. Quando se espera que falem apenas sobre si mesmos, começam a falar sobre outras coisas. Quando se espera que se adaptem à sua geografia, eles caminham pelo mundo e suas lutas (Ibid., p. 1).

Então, eles não mantêm ninguém feliz. E não parecem se importar muito. O que eles realmente se importam é em manter seus próprios corações felizes, então seguem os caminhos que eles lhes mostram… (Ibid., p. 2).

Os caminhos que os zapatistas O’tan trilharam foram muito “outros”. São novos saberes ou epistemologias do coração com um ch’ulel insurgente. Assim, podemos reconhecer como, nos últimos tempos, dialogaram e “epistemologizaram” com aqueles que praticam as ciências exatas, convocando-os e lançando um desafio: a celebração das duas consciências. As comunidades zapatistas fizeram muito; desde o seu surgimento, convocaram diferentes grupos e setores, tanto na sociedade mexicana quanto em outras partes do mundo, para construir outros paradigmas contra o que chamaram de “hidra capitalista”. Às vezes, são professores, mas, outras vezes, são alunos obedecendo ao que seu o’tan lhes diz. A partir da obediência a o’tan como matriz e fonte do conhecimento, construíram outros horizontes de vida, de luta política, por meio da rebelião alegre e da arte da resistência.

Para concluir

Para compreender a presença e o significado de o’tan em nosso pensamento e visão de mundo, é necessário mergulhar profundamente na história e compreender nossas origens como povos maias. É por isso que, atualmente, a reflexão sobre o sp’ijilal o’tan nos levou ao ato de “voltar nossos corações” para o nosso passado distante, para o nosso cosmos esquecido, a fim de compreender um pouco do nosso pensamento. Como é que, conhecendo bem e acumulando experiências de vidas passadas e presentes, chegamos a chamá-lo de sp’ijilal o’tan? Além de prestar atenção à fala cotidiana e às práticas de vida específicas, foi necessário ler e reler o livro do Popol Wuj em suas diferentes versões. Embora o texto capture apenas a visão de mundo, o pensamento, a filosofia, os mitos e as histórias do povo K’iche’ da Guatemala, posso afirmar que a cultura maia é uma tela onde podemos encontrar fragmentos das histórias encontradas no Popol Wuj. Esse livro, sem dúvida, captura o pensamento fundador de toda uma civilização.

Aparentemente, o que estava lá desde o início era o o’tan — coração. Podemos ver isso no primeiro capítulo, depois que Gukumats se surpreende com a criação e agradece, dizendo: “Boa foi a tua vinda, Coração do Céu; tu, Furacão, e tu, Chipi-Caculhá, Raxá-Caculhá!”

Então o texto continua:

Assim foi criada a Terra, quando foi formada pelo Coração do Céu, o Coração da Terra, que é como são chamados aqueles que primeiro a fecundaram, quando o céu estava suspenso e a Terra submersa na água. (Popol Wuj, 2011, p. 60-61)

Se levarmos em conta o livro do Popol Wuj como texto fundador do nosso pensamento como civilização maia, percebemos que desde o princípio o o’tan —energia que cria e procria em “comun-unidade” entre céu e terra, dialogando e “coraçonando” — está presente.

Sp’ijilal O’tan, conhecimento ou epistemologias do coração, nos convida a reconhecer e respeitar a vasta existência que está cada vez mais ameaçada por uma racionalidade arrogante e indolente. O que une e identifica todos nós que fazemos parte dessa vasta existência é o ch’ulel, o o’tan, e a troca mútua de ich’el ta muk’. Dito assim, é uma forma de estruturar e organizar o mundo. É uma forma de conhecer e compreender o cosmos. Provavelmente uma forma de objetivar a vida subjetiva desde os tempos primordiais, quando o Coração da Terra e o Coração do Céu começaram a dançar para procriar sujeitos com alegre rebelião.

Será que a humanidade, o mundo, todos os seres existentes e vivos podem continuar a viver sob a epistemologia hegemônica instrumentalizada ou em sintonia com o capitalismo predatório — o que os zapatistas chamam de “a hidra capitalista” — que nos subjuga? Evidentemente não. Reconhecer e valorizar outros paradigmas de estar no mundo é urgente.

Um dos princípios que sustentam o sp’ijilal o’tan, o conhecimento ou epistemologias do coração, baseia-se na apreensão do mundo e na compreensão do cosmos. Em outras palavras, trata-se de uma apreensão e compreensão da vida como um todo, o que é chamado de sna’el k’inal em tseltal maia (ya sna’ k’inal, ma sna’ k’inal). Não pretendo afirmar que tal compreensão seja mais ampla do que outras, ou que seja igual à do mundo ocidental; é simplesmente diferente. Sempre esteve lá, mas negada e explorada pelo conhecimento ocidental hegemônico. Assim, o que apresentei aqui é um tipo de ação arqueológica: descobrir o que sempre esteve lá. Basta se deixar surpreender e reencantar o que o conhecimento hegemônico e a hidra capitalista desencantaram, transformando a vasta existência em coisa e mercadoria.

Este ensaio foi originalmente publicado em espanhol com versão em inglês em “Resistant Strategies”, organizado por Diana Taylor e Marcos Steuernagel pelo Hemispheres Institute. Disponível em: https://resistantstrategies.hemi.press/spijilal-otan-knowledge-or-epistemologies-of-the-heart-es/?lang=es. Acesso em: ago. 2025.

Agradecemos a Juan López Intzín, Hemispheres Institute e Diana Taylor pela permissão de republicá-lo na edição “Corpo chão coração” da Revista Mesa.

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Juan López Intzín é de origem maia de Tseltal, nascido em Tenejapa, Chiapas, México. Mestre em Antropologia Social pela Universidade Iberoamericana na Cidade do México e professor convidado da Universidade Camponesa Indígena. Suas pesquisas e projetos tem como foco os conceitos éticos e filosóficos maias tseltal. As publicações e documentários incluem: sentipensar el gênero desde los pueblos originarios: Ch’ulel pluriverso (UNAM, 2015) e j-Amtel (exibido no Primeiro Festival Internacional de Cinema de San Cristóbal, 2015). Atualmente é membro do Centro de Direitos Humanos Fray Bartolomé de las Casas.

Referências:

LÓPEZ INTZÍN, Juan. 2011. Ich’el ta muk’: A Trama na Construção de Lekil Kuxlejal. Em Direção à Visibilidade de Outros Saberes a Partir da Matriz do Pensar-Sentir-Saber Tseltal. Mimeo, 2011.

SUBCOMANDANTE Marcos. Chiapas: A Décima Terceira Estela. Comunicados sobre a morte dos “Aguascalientes” e o nascimento dos “Caracoles” zapatistas, EZLN. México, 2003.

Popol Wuj. Tradução e notas para o espanhol de Sam Colop. Guatemala: FyG Editores/Biblioteca Guatemala, 2011.


¹ Com este termo, refiro-me ao processo de reflexão que emergiu dentro de um campo sociocultural e linguístico. Esses termos surgem como resultado de uma reflexão interna, ou da minha própria perspectiva, da minha própria língua maia tseltal. Não têm nada a ver com aspectos políticos ou militares.

² A marcha também aconteceu em outras partes do México e em vários países das Américas.

³ Veja a “Lei Geral dos Direitos Linguísticos dos Povos Indígenas”. Diário Oficial da Federação Mexicana. 13 de março de 2003.