Nº7 Corpo chão coração
  • Ensaio Visual. Jialu Pombo, 2025 (Fotografia 2017 e Colagens 2025)

Uma criatura sem nome corporificando a experiência encara a terra¹

Jialu Pombo (texto e imagens)

Esse ensaio visual é composto por fotografias e colagens nas quais uma pessoa se relaciona com a terra através do gesto de cavar e se enterrar. Fragmentos do corpo, como os braços e as mãos, aparecem em contato direto com a terra ou manipulando a pá. A pessoa também aparece agachada perto do solo, e enterrada. A vegetação está presente. Nas colagens, fragmentos de imagens de outras paisagens e de outros corpos se misturam por meio de associações entre as formas, cores e temática, expressando a integração entre diferentes seres, e gerando um tom onírico que contrasta e, ao mesmo tempo, complementa o teor realista do registro fotográfico.

As fotografias2 desse ensaio visual são o registro de uma ação que posteriormente mostrou ser o prelúdio de um longo processo de aterramento, que também poderia ser chamado de enraizamento. Se enterrar para aterrar. Pousar no solo, criar raízes, estabelecer um vínculo profundo e essencial. Deixar de ser um balão de hélio a flutuar pelo mundo, para incorporar percepções do corpo e da terra, materializando uma criatura sem nome e uma existência mais consistente e mais consciente. Uma criatura sem nome mais próxima da consciência pulsante da biosfera, mais imersa na integração que conecta todos os seres. Um movimento que possibilita (re)conhecer uma origem ancestral que está tão (mais) longe quanto (mais) perto da origem consanguínea: as agências formadoras de vida — água, fogo, ar, terra.

Se aproximar do chão provoca outras miradas para as próprias entranhas, conectando relações que sempre estiveram presentes, mas que por vezes escapam do saber de si e do mundo: o corpo é água, fogo, ar e terra. Como, então, exercer um cuidado que mantenha essa consciência pulsante? Uma pergunta constante em um processo infinito — sem início e fim definidos —, um processo que é o meio do caminho de uma vida sendo vivida. Processo ao longo do qual agimos, imaginamos, sonhamos, riscamos palavras, questionamos os modos de vida e tentamos materializar e visibilizar uma existência. Depois de tanto tempo desejando não existir, desejando não ser um corpo, uma criatura sem nome corporificando a experiência encara a terra.

merda e terra

existem formas de viver tão distantes da terra que se afastam daquilo que há de terra no seu próprio corpo. ora, uma delas foi inaugurada quando inventaram o vaso sanitário. defecamos numa louça cheia de água o composto terroso que o corpo produz a partir da digestão dos alimentos (que, por sua vez, vêm da terra). em nome de uma suposta limpeza, acontece um distanciamento entre a merda e a terra. mas não há nada de limpo nisso: toda merda vai parar em outras águas e suja outros ambientes. não é que a merda em si seja suja, o que acontece é que ela não pertence a toda aquela água, fica ali boiando (no sentido literal e figurado).

quem inventou o vaso sanitário, querendo se distanciar da merda, achava mesmo que a merda era suja. tirou a sujeira de sua vista, dando tchauzinho para a merda à medida que ela descia água abaixo. mas se a merda é a transformação que o corpo faz do alimento, e esse alimento é limpo o suficiente para ser comido, por que a merda seria suja?

são as matérias, substâncias, compostos químicos do próprio corpo que adicionam sujeira ao alimento quando o transformam em merda?

acredito que quem inventou o vaso sanitário não achava sujo nem o alimento nem o interior do corpo e suas substâncias, mas ainda assim quis se afastar da merda por achá-la suja. esse acontecimento descabido nos acompanha até hoje.

será que para essa gente defensora das louças cheias de água a sujeira é/está na terra?

a merda é essa massa terrosa que o corpo precisa eliminar para não ficar entupido, dando continuidade ao ciclo vital orgânico. é um decomposto orgânico que se ajusta à terra, já que complementa os processos de decomposição que ali estão em curso, processos esses imprescindíveis para que a vida continue. essa, diga-se de passagem, é uma das etapas mais básicas do ciclo vital.

defecar na terra não apenas é básico, é um ato de integração cíclica — tudo o que é tirado da terra a ela retorna.

acontece que o homem não quer nem olhar pra merda, nem olhar pra terra. se você não olha nem pra sua própria merda, como pode saber o básico que precisa para se cuidar?

se você acha suja a porção de terra que seu próprio corpo produz a partir da mistura do que vem da terra que habita, como você encontrará as bases para continuar em pé?

se você não quer lidar com a decomposição que o corpo/terra abriga para manter a vida, como é possível permanecer vivo?

minha mãe sempre me ensinou a olhar minha merda antes de dar descarga: observe a merda e conhecerás a ti mesmo. mal sabia eu que esse era o mínimo ato para a manutenção do equilíbrio do corpo/vida. quantos anos levei para perceber isso! sua maior preocupação sempre foi saber se tínhamos ou não algum desequilíbrio nos processos da merda – diarreia, prisão de ventre. essa segunda opção era a maior assombração, minha mãe fazia de tudo para que não fôssemos pegas por essa falta de exteriorização da merda. ironicamente, o desequilíbrio de que mais sofri ao longo da vida foi a diarreia – essa merda sem consistência e sem substância. coitadoa delea: não consegue nem criar um corpo para si, já que esse corpo que nasceu mais parece um balão de hélio a flutuar. há excesso de ar e falta de terra. se tivesse sido possível defecar de cócoras direto na terra, talvez esse corpo tivesse conhecido a terra mais de perto, e, a partir daí, tivesse conseguido formar uma consistência própria capaz de transmitir consistência pra merda. ela sairia em direção à terra, no seu devido tempo, sem travar, sem explodir. apenas sairia, participando de outra parte do ciclo orgânico.

sonhei que estava num banheiro que não era privado, mas tinha uma privada. me aproximo para defecar e, antes mesmo de me sentar, a merda começa a sair, aos montes, e imediatamente ganha vida. uma parte dela vai se movendo como minhoca para longe de mim, outra parte surge com forma de bicho (gato ou coelho?) e sai correndo, como uma escultura que ganhou vida. eu fico ali na privada que não estava no privado, cagando mais e mais merda…

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Jialu Pombo é artista-pesquisador trans e neurodivergente. Mestre em Artes Visuais (UFRJ) e doutor em Psicologia Clínica (PUC/SP). Pesquisa movimento, subjetividade e corpo, relações de processos de criação com práticas de cuidado, experiências sensoriais, criação de linguagens que potencializam as vivências dissidentes, e acessibilidade nas artes. Trabalha com fotografia, colagem, texto, costura e ações. Desde 2010 participa de exposições, residências e ministra oficinas em instituições como Parque Lage, Terra Una e Sesc. Também realiza projetos com organizações ativistas.


1 Esse texto foi escrito não só em diálogo com o presente ensaio visual, mas também a partir de minha tese de doutorado intitulada no meio do caminho: os processos de criação e cuidado de uma criatura sem nome no território-dos-nomes-que-grudam, realizada no Núcleo de Estudos da Subjetividade no Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP. Na tese, desenvolvo as ideias mencionadas aqui, dentre outras, articulando-as com trechos de escrita criativa e/ou poética — o trecho “merda e terra” é um deles.

2 As fotografias foram feitas em 2017, com a colaboração de Ju Borzino, artista, amiga e parceira de muitas experiências.