Nº7 Corpo chão coração
  • Ensaio visual: Suellen Cloud. Celebração de abertura da nova Casa Resistências, 2024.

Qual é o chão que piso? Trabalho, cuidado e sobrevivências na Casa Resistências de acolhimento para mulheres LBT do Complexo de Favelas da Maré

Beatriz Virgínia Gomes Belmiro e Kimberly Veiga (texto)
Suellen Cloud (fotografia)
Casa Resistências e Imagens do Povo (colaboração)

Sonho com um lugar entre seus seios
pra construir minha casa, como um abrigo
onde cultivo leiras
em seu corpo
uma infinita colheita
onde a rocha mais simples
é pedra da lua e ébano opala
amamentando todas as minhas fomes
e sua noite se derrama sobre mim
como uma chuva nutriz.

Audre Lorde. “Mulher”.
In: The Black Unicorn: Poems.
New York: WW Norton, 1995.
Tradução: Thamires Zabotto

Saber onde pisa é fundamental para nós que cotidianamente temos espaços negados. O espaço da casa nem sempre é um espaço seguro, a família sanguínea muitas vezes nos expele e procuramos abrigo em outros laços, umas nas outras, reconstruindo nossos sentidos de afeto, cuidado e acolhimento. Assim nasce a Casa Resistências, um espaço de cultura que oferece acolhimento residencial para mulheres (cis e trans) lésbicas e bissexuais faveladas, que, em muitos casos, são expulsas de casa por conta de sua sexualidade, violência doméstica, ou estão inseridas em outros casos de vulnerabilidade social.

Inaugurada em abril de 2022 e localizada atualmente no Salsa e Merengue, uma das 16 favelas do complexo da Maré, a Casa oferta, além da moradia temporária, apoio psicossocial, segurança alimentar e ações de empregabilidade, além de se pretender espaço seguro de sociabilidade para mulheres LBT faveladas. As ações de cuidado oferecidas pela Casa fundamentam-se em práticas antimanicomiais, o que faz do projeto pioneiro nesse modelo de atendimento dentro de uma favela brasileira.

Com a Casa indo agora para seu terceiro ano de existência, nós já acolhemos 36 mulheres, em sua maioria mulheres negras, entre as quais algumas passaram um tempo residindo conosco e outras apenas solicitaram o acolhimento psicossocial. Nosso acolhimento acontece por meio de grupos de vivências nos quais, por meio do psicodrama, essas mulheres têm novas oportunidades de se perceber e se colocar no mundo, desenhando novas formas de existências de si.

Atualmente, nosso espaço de gestão é dividido em cinco coordenações, sendo elas: coordenação de empregabilidade, coordenação de acolhimento, coordenação financeira, coordenação artístico-cultural e coordenação de produção e conhecimento, além de uma coordenação geral. Todas as coordenações são ocupadas por mulheres lésbicas e bissexuais, a maioria negras, moradoras do território ou de outros territórios periféricos em seu entorno. Tudo isso reforça o sentido de cuidado para a Casa, já que cuidamos, mas, muitas vezes, também precisamos ser cuidadas por conta dos diversos atravessamentos que vivemos em nossos corpos.

Pensar o chão que pisamos, além de passar por uma reconexão com a natureza e resgate ancestral, passa também por considerar que esse chão, do qual cuidamos e que nos cuida a todo o tempo, também foi fruto de muita força e ação coletiva. Até a década de 80, grande parte das favelas da Maré eram formadas por palafitas, casas construídas sobre estacas de madeira, que acompanhavam a crescente e a minguante das marés. Foram os próprios mareenses que construíram suas casas e o chão delas, de forma colaborativa e coletiva. Pensar o chão que pisamos é também resgatar esse histórico, lembrando que esse chão já foi mar, já foi banhado pelas águas da Baía de Guanabara.

Não nos cabe aqui fazer qualquer juízo de valor sobre as ações do homem sobre a natureza, mas olhar para esse chão que foi construído mesmo com escasso acesso a tecnologias e materiais sofisticados, para ser moradia de tantos mareenses, e que hoje nos recebe para ser e se fazer cuidado. Não nos caberia, desse modo, pensar um outro cuidado que não aterrado, atento aos efeitos que os territórios produzem em cada pessoa e às potências de cada pessoa-território.

Agradecimentos especiais: Bia Adura, Dayana Gusmão, Erika Tambke, Susan Thomson, Casa Resistências e Imagens do Povo

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Beatriz Virgínia Gomes Belmiro é cria do Complexo da Maré, historiadora pela UERJ, mestre e doutoranda em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ. Contato: beatrizvirginia9@gmail.com

Kimberly Veiga é psicóloga sanitarista e psicodramatista. Coordenadora de acolhimento da Casa Resistências e pesquisadora das territorialidades e interseccionalidades. Contato: @kimberlyveiga.psi

Suellen Cloud Atlas é fotógrafa popular, cineclubista e produtora cultural focada em periferias. Formada pela Escola de Fotografia Popular do Imagens do Povo, atua no território da Maré como diretora de mídia do Real Maré Futebol Clube e também na Zona Portuária com o projeto Favela Cineclube. Atualmente se dedica à pesquisa fotográfica, tendo como base a Fotografia do Bem Querer, buscando a humanização imagética e conceitual dos territórios favelados e periféricos pelos quais passa. Contato: @suellencloud

Casa Resistências,inaugurada em 2022, é um espaço de cultura na Maré que oferece acolhimento residencial para mulheres (cis e trans) lésbicas e bissexuais.Instagram: @resistencialesbica E-mail: casaresistenciasmare@gmail.com Telefone da equipe de acolhimento: +55 21 98863-6918

Imagens do Povo registra o cotidiano das favelas através de um olhar crítico que leva em conta o respeito aos direitos humanos e à cultura local. Site: imagensdopovo.org.br Instagram: @imagensdopovooficial