Nº7 Corpo chão coração
  • Série tudo se vê no caminho, 2023. Argila e pigmentos naturais sobre tela, 80 x 80 cm

Terra enquanto memória, moradia e nutrição: O Sertão Negro

Carla Santana
(texto e obras)
(fotografia Sertão Negro: Jhony Aguiar)

Em maio de 2023, inaugurei o programa de residência artística nacional do Sertão Negro. Fundado por Dalton Paula e Ceiça Ferreira, o Sertão Negro fica localizado em Goiânia-GO. Mais do que uma residência artística, o Sertão é uma escola de arte multidisciplinar, onde o sentido de fazer arte é fertilizado. Você entra com a cabeça do tamanho de uma muda e sai com os pensamentos do tamanho de um pé de jatobá.

Após dois anos, escrevo sobre essa experiência com anseio de retorno. Ainda preservo muitos dos ensinamentos e práticas assimilados no dia a dia daquela escola. A reflexão sobre outros modos de operar a vida, na contramão das lógicas predatórias, faz manar o senso de integração e comunidade.

Ao rememorar a minha estadia no Centro-Oeste do país, ressalto a importância do deslocamento dentro da minha prática. Conceber que habitamos um país continental implica um exercício de contextualizar-se dentro do seu próprio território, já que cada canto constrói e armazena uma identidade muito específica de si. O território dentro do território. Para chegar ao conceito de território, passo primeiro a lidar com a matéria, essa é a chave-mestra. Enraizando o pensamento, percebo que o desenvolvimento da minha prática vem sendo construído através do desejo de buscar uma aliança física e simbólica com o elemento terra. A terra, que por si só evoca infinitas metáforas e metamorfoses, revela-se para mim enquanto verbo ao qual debruço-me para conjugar. A palavra conjugar se faz muito cabível, pois a ideia de se flexionar sobre os tempos, os modos e as pessoas aproxima-se dos métodos com os quais venho produzindo.

O ponto de partida da pesquisa destinada à residência previa a observação das variedades de casas de animais feitas com a terra. Cupinzeiros, casas de abelhas e marimbondos, formigueiros, buracos de tatu. O meu interesse era elaborar um repertório visual guiado pelas paisagens de horizontes planos e tempo seco, onde a matéria em seu fundamento se transforma em moradia.

  • Série das mãos dos meus avós se plantava tudo que se come, 2023. Argila e pigmentos naturais sobre tela, 120 x 100 cm

A experiência da residência se iniciou com uma viagem para o maior território quilombola do país, a Comunidade Quilombola Kalunga do Engenho II, localizada na Chapada dos Veadeiros. Um fato importante a ser mencionado é que a comunidade Kalunga se manteve isolada desde os tempos coloniais do século XVIII até meados de 1950, concebendo uma sociedade autônoma, conectada com seu território, seus valores e saberes. Atravessando todo esse tempo, é incrível ver e sentir o encantamento deixado pelos ancestrais e perpetuado por cada quilombola que ali vive. Como dito anteriormente, o olhar sobre a casa dos animais no cerrado introduziu na minha pesquisa a reflexão sobre como a matéria se transforma, e como nós, humanos, observando a natureza, desenvolvemos tecnologia de subsistência. No quilombo pude ver a terra enquanto memória, morada e nutrição. Desde as casas de bambu a pique, às roças de arroz, feijão e muitos outros alimentos. De fato, o que chamamos de ecologia se confirma enquanto prática na comunhão e preservação de uma aliança com a natureza. Através dessas conexões com pessoas, lugares, comidas e conhecimentos, pela primeira vez passo a coletar pequenas porções de terra como matéria-prima para os trabalhos que desenvolveria depois. Essa relação com a coleta dos materiais aprofundou um vínculo de estudo e experimentação e me abriu portas para muitas encruzilhadas.

  • Série casulo, 2023. Cerâmica, 55 x 31 x 10 cm

Quando retornei ao Sertão Negro com sacos de diferentes qualidades de solos, primeiro aprendi a senti-los. Suas características distintas me mostravam a melhor maneira de conduzi-los. Argilas, areias, minérios e torrões eram processados manualmente na feitura de novos pigmentos. A residência me induziu a solidificar uma ponte entre prática e teoria.

Os métodos de acompanhamento realizados pelo Dalton se fundamentam em uma escuta afetiva, na emancipação de uma investigação científica experimental, no pertencimento coletivo e em referências bibliográficas. A preciosa biblioteca do Sertão Negro alicerçou diversos temas que hoje conceituam e guiam a minha prática, como a introdução à geologia, à paleontologia, à arqueologia, entre outros… tudo isso combinado a um programa composto por aulas coletivas de cerâmica, gravura e capoeira. Elegendo essas palavras para descrever a experiência no Sertão Negro, percebo que elas não imprimem a carga precursora e catalisadora desse projeto. A construção do Sertão Negro é a construção de um sonho. Isso transparece nas escolhas éticas e ecológicas do espaço, desde o reservatório de água da chuva, às paredes de taipa de pilão, à bacia de evapotranspiração, às refeições coletivas, às árvores e plantas medicinais… Na verdade, este é um relato-convite a não só conhecer o Sertão Negro, mas também a refletir sobre a prática artística de maneira ampliada e responsável. Conceber que os processos formativos de um artista ultrapassam as fronteiras de um conhecimento formal e que é na multidisciplinaridade e na convivência com o mundo que a pesquisa se fortalece. Agradeço imensamente por essa experiência que marcou o meu modo de ver o mundo e alimentou de forma vigorosa o meu trabalho.

  • Fotos da residência de Carla Santana no Sertão Negro, 2023. Fotografia: Jhony Aguiar. Cortesia: Sertão Negro

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O trabalho de Carla Santana atravessa seu próprio corpo também como corpo social, pondo em vista as camadas históricas, materiais e culturais que a constituem. Ao entender a terra em suas diferentes camadas materiais e sensíveis, a artista organiza composições permeadas pelas noções de casa, abrigo e espaço comunal. Entre suas exposições individuais recentes estão: “morada, alimento e autoteoria” (Quadra, São Paulo, 2023) e “Poros e acúmulos (Carpintaria, Rio de Janeiro, 2022. Dentre as coletivas, destacam-se exposições em instituições como MAC Niterói (2025), Inclusartiz (2024), Auroras (SP 2022) e Tanya Bonakdar (Nova York, 2021). Graduada em Artes pela UFF, adentrou o universo artístico a partir do teatro. É artista multilinguagem e também cofundadora e articuladora do movimento nacional Trovoa.