Nº6 VIDAS ESCONDIDAS
  • Vukašin Nedeljković, Asylum Archive. Centro de Provisão Direta de Lissywollen.

Sobre Asylum Archive

Vukašin Nedeljković (imagens) e Anne Mulhall (texto)

A pandemia de Covid-19 e as respostas institucionais e governamentais colocaram em foco absoluto  as realidades do sistema global de apartheid do regime de fronteira racializado. Enquanto aqueles que viviam com conforto dentro do mundo encantado de fartura e segurança material e ontológica puderam cumprir as medidas de saúde pública – distanciamento social, lavagem frequente das mãos, trabalhar e estudar em casa – sem grandes dificuldades ou sofrimento, não foi assim para a maioria de pessoas. Não foi e não é esse o caso, especialmente, das pessoas que vivem em condições já precárias e sujeitas à violência e ao abandono do Estado. A situação precária dos migrantes, sobretudo os que buscam refúgio, que já viviam à margem, piorou muito durante a pandemia. Embora vários governos tenham aprovado leis para o isolamento e distanciamento, para os trabalhadores migrantes e para as pessoas em busca de asilo, a resposta dos interesses políticos e empresariais foi, pelo contrário, a imposição de confinamento em massa, que o escritor Arundhati Roy descreveu como “compressão física em uma escala impensável”.1 Roy descreveu o horror do tratamento dado pelo Estado indiano aos trabalhadores migrantes durante o confinamento no país: “À medida que lojas, restaurantes, fábricas e a indústria da construção fechavam, os ricos e as classes médias se fechavam em colônias muradas, e nossas cidades e megacidades começaram a expulsar os cidadãos da classe trabalhadora – trabalhadores migrantes – como um acúmulo indesejado”, momento em que esses desalojados, “sem transporte público à vista, iniciaram uma longa caminhada de volta para suas aldeias”. Como relata Roy, algumas pessoas morreram, outras foram alvo de violência e humilhação policial, como pular feito sapos ou, em um incidente que viralizou em todo o mundo, foram agrupadas para serem borrifadas com spray químico. Até mesmo essa rota de fuga foi interrompida quando o governo fechou as fronteiras estaduais e obrigou as pessoas a voltarem para os acampamentos nas cidades das quais estavam tentando sair. Por toda a Europa, trabalhadores migrantes e requerentes de asilo também foram agrupados e enjaulados durante o confinamento. Na Grécia, as condições nos campos densamente povoados onde a Europa aprisionou pessoas em busca de refúgio dentro de suas fronteiras pioraram ainda mais. A UE aproveitou a oportunidade da crise pandêmica para intensificar a guerra contra os migrantes. A Covid-19 passou a ser o motivo – como se os Estados da UE precisassem de um – para fechar portos para busca e salvamento de barcos, como foi o caso na Itália. Na Grécia, o governo suspendeu totalmente os pedidos de asilo durante os primeiros estágios do confinamento e usou a pandemia como desculpa para mais enclausuramento, abandono e violência. Conforme relatado pelo The New York Times em agosto, desde então “1.072 requerentes de asilo foram jogados no mar por funcionários gregos em pelo menos 31 expulsões diferentes”, ao passo que o incêndio no mês de setembro destruiu o maior campo da Europa, Moria, em Lesbos, deixando pelo menos 13.000 pessoas sem abrigo e impedidas de entrar em Mitilene, uma cidade portuária próxima.2 Essa é a UE que o artista Vukašin Nedeljković começou a documentar em seu novo projeto Fortress Europe, começando com fotos tiradas em Atenas e no acampamento de Diavata, na Grécia, na iminência do confinamento, e em Paris e Calais, na França, registrando as arquiteturas violentas de morte e violência que as pessoas em busca de refúgio e as pessoas indocumentadas têm que enfrentar.

O projeto principal de Nedeljković, Asylum Archive, centrou sua documentação crítica no regime de asilo e deportação na República da Irlanda. Novamente, a pandemia intensificou a lógica necropolítica de tal regime. Em 1999, o estado irlandês instituiu o sistema de Provisão Direta e Dispersão. No âmbito desse sistema, as pessoas são espalhadas em centros de acomodação, geralmente em locais remotos que, na verdade, aprisionam as pessoas em abrigos. Elas dividem o quarto com vários estranhos, ao passo que as famílias ficam em geral confinadas em um quarto, normalmente durante vários anos enquanto aguardam o desfecho de seus casos. Na maioria dos centros, as pessoas não têm acesso a instalações de cozinha e só podem fazer as refeições – que costumam ser de má qualidade – em horários específicos. É atribuído um subsídio semanal de 29,80 euros para crianças e 38,80 euros para adultos, com o qual as pessoas têm que pagar todas as despesas que não sejam os custos básicos de alojamento e alimentação. A proibição total de acesso ao trabalho para aqueles que buscam asilo terminou em 2017, quando um ex-requerente de asilo obteve uma decisão da Suprema Corte no sentido de que, nos termos da Diretiva de Acolhimento e Condições da UE, o governo deve fornecer alguma forma de acesso ao mercado de trabalho. Contudo, a forma escolhida pelo governo é restrita, sendo concedido acesso apenas se a pessoa estiver no sistema há 9 meses sem nenhuma decisão inicial sobre o seu caso. Muitos ficam excluídos, especialmente aqueles cujo processo estava em fase de recurso quando a legislação foi promulgada, ao passo que as pessoas elegíveis são com frequência excluídas na prática de um trabalho decente pelo período de 6 meses do visto e por obstáculos para obter uma conta bancária ou carteira de motorista. O acesso ao ensino médio é também altamente restrito e desigual. Os efeitos desses direitos e condições restritas são amplificados por um processo jurídico de asilo defeituoso e profundamente disfuncional. Uma longa espera para ser chamado até mesmo para uma primeira entrevista, a falta de aconselhamento jurídico e representação ao fazer a solicitação inicial e comparecer à entrevista, a falta de regulamentação do trabalho crucial dos intérpretes, o alto índice de recusa na primeira decisão, o processo de recurso longo e corrosivo e, subjacente a tudo isso, a cultura profundamente racista introjetada no Departamento de Justiça que supervisiona o sistema; tudo contribui para sofrimentos e desumanizações a que as pessoas estão sujeitas na aplicação pela Irlanda do regime de fronteira da UE. O sistema irlandês de Provisão Direta se alinha com a genealogia do encarceramento específica do Estado-nação irlandês, com populações “problemáticas” (mulheres “moralmente deficientes”, filhos dos pobres, pessoas com deficiência, crianças mestiças, crianças “viajantes”[Travellers]) institucionalizadas em escolas industriais, lares para mães e bebês, asilos de Madalena [Magdalene Laundries], hospitais psiquiátricos e outras instituições carcerárias dentro da rede de contenção do Estado irlandês.3 Ao mesmo tempo em que as pessoas recebem meios de sobrevivência, o sistema funciona para despojá-las de si mesmas e de seu futuro. Por meio da força de vontade à qual alguns conseguem se agarrar, o sistema pode não ter sucesso, mas é assim que a máquina funciona de forma corrosiva e implacável.

Embora a gestão governamental da crise da Covid-19 na Irlanda tenha posto em relevo a estrutura da Provisão Direta, a organização das pessoas em Provisão Direta também ganhou destaque por meio do trabalho perseverante e inspirador do MASI (Movimento dos Requerentes de Asilo na Irlanda), em especial ao longo de muitos anos e através de pessoas que se manifestaram de forma corajosa e se recusaram coletivamente a sofrer em silêncio as violações e humilhações a que foram sujeitas. O primeiro surto de Covid-19 em um centro da Provisão Direta ocorreu no Skellig Star Hotel, na pequena cidade de Cahirsiveen, no Condado de Kerry, para onde mais de 100 pessoas haviam sido transferidas de centros de Provisão Direta em Dublin em março de 2020. Em pouco tempo, mais de 20 pessoas no centro contraíram o vírus. A resposta do governo, dos departamentos de Estado e da administração do centro foi tentar confinar as pessoas ao centro, sem fornecer nenhum meio de auto-isolamento em uma situação em que as pessoas tinham que compartilhar as instalações com mais de 100 outras pessoas e dividir quartos com estranhos ou com membros da família, garantindo que ninguém estivesse a salvo de contrair Covid-19. O Skellig Star Hotel acabou sendo fechado em setembro, mas somente depois que os residentes se manifestaram na mídia, organizaram protestos fora do centro e, finalmente, no fim de julho, entraram em greve de fome. Houve surtos posteriores e contínuos de Covid-19 em muitos centros da Provisão Direta. A certeza de que ocorreriam surtos na Provisão Direta e as medidas necessárias para garantir que isso não acontecesse foram destacadas pelo MASI junto com outros ativistas em março, mas o Governo e o Departamento de Justiça nada fizeram. As condições institucionais, similares a prisões, da Provisão Direta alinhadas com as condições de trabalho abusivas que muitas pessoas na situação de residência precária têm que enfrentar se manifestaram em grandes surtos em frigoríficos e grandes fazendas agrícolas que empregam muitas pessoas que estão em Provisão Direta – surtos que, por sua vez, estavam relacionados às aglomerações nos centros de Provisão Direta.

Enquanto a resposta do governo e das grandes empresas à pandemia exacerbou a marginalização das pessoas em busca de asilo e destacou a máquina do regime de apartheid racializado e de classe da fronteira, a resistência na Irlanda contra essa máquina por parte das pessoas em busca de asilo e seus apoiadores tem sido inspiradora. Ao mesmo tempo, o surgimento do movimento Black Lives Matter teve grande importância na Irlanda para o que parece ser a formação de um movimento verdadeiramente de massa para acabar com a Provisão Direta na Irlanda e uma resistência real à violência da máquina de gestão de migração da UE conforme opera na República, e o apoio ao MASI, em especial, cresceu extraordinariamente nos últimos meses. É importante destacar a resistência dos integrantes do sistema e a complexidade humana e a especificidade de cada pessoa. Como Behrouz Boochani afirma, autor de No Friend But The Mountains e sobrevivente da perseguição do governo iraniano e depois do complexo de detenção de asilo australiano:

[…] infelizmente, o olhar ocidental enxerga todas as pessoas como iguais. Mas nós somos tipos diferentes de pessoas; na verdade, às vezes muitas pessoas na Ilha Manus me surpreendem. Eu me pergunto como é possível que as pessoas sejam tão fortes assim. Às vezes, eu me sinto poderoso quando vejo muitos homens fortes ao meu redor, quando os vejo vivendo a vida, quando os vejo resistindo, aguentando esse sistema…4

Nenhuma representação visual que eu já tenha visto capturou a natureza da Provisão Direta, a verdade da descrição de prisão aberta, a continuidade do sistema da Provisão Direta dentro da história de encarceramento e institucionalização pelo Estado de populações-alvo como o Asylum Archive conseguiu de forma tão efetiva e direta. Como muitos críticos e comentaristas observaram, a ausência de qualquer figura humana no relato fotográfico de Asylum Archive do sistema de Provisão Direta e Dispersão rejeita o que Charlotte McIvor descreve como “a demanda por desempenho burocrático do refugiado “que se estende desde o labirinto jurídico do processo de solicitação até de defesa da ONG e prática artística e representação.5 A recusa de Nedeljković em usar imagens ou narrativas pessoais de requerentes de asilo em Asylum Archive se baseia em sua crítica à conversão de seres humanos em boas histórias para divulgação por ONGs, pela mídia e mesmo em práticas artísticas criativas, sendo uma rejeição implícita e por vezes explícita ao uso simbólico que é feito, em certas ocasiões, dos requerentes de asilo no terceiro setor. Em vez disso, como apontam os estudiosos McIvor e Ronit Lentin, Asylum Archive redireciona nosso olhar para a arquitetura sistemática de segregação racializada, abandono e deportabilidade chamada Provisão Direta. O desenvolvimento de uma política de representação, de uma estética e de uma narrativa (a boa história) radicalmente críticas é central para o projeto de Nedeljković e para o trabalho político e representacional de Asylum Archive.

A importância (centralidade) de uma boa história para o processo jurídico de solicitação de asilo e de defesa torna a política da narrativa e representação especialmente assustadora. No que se denomina hoje Processo de Proteção Internacional, há uma enorme pressão à história do requerente, até que ponto sua história se adequa à história que é necessária para que o requerente seja qualificado como digno de proteção. O enfoque do processo jurídico está na credibilidade do requerente e na plausibilidade de sua história. Quando o Procedimento de Solicitação Única – explicado e criticado pela advogada Wendy Lyon, especialista em direito de migração e asilo, e pelo cofundador do MASI Lucky Khambule em suas entrevistas de áudio no Asylum Archive6 – foi implantado inicialmente em janeiro de 2017 como parte da implementação da Lei de Proteção Internacional de 2015, as pessoas que já estavam no sistema eram obrigadas a preencher um formulário denominado IPO2. As pessoas foram levadas a acreditar que esse novo formulário de solicitação de 62 páginas deveria ser devolvido dentro de 20 dias, o que causou um pânico generalizado e desespero nos centros de Provisão Direta em todo o país. Com medo de serem consideradas em desconformidade, as pessoas mandaram os formulários sobre elas mesmas e seus filhos sem terem tido nenhum aconselhamento jurídico ou conseguido acessar sua solicitação anterior para verificar se os dois formulários estavam consistentes. Qualquer discrepância ou inconsistência entre a solicitação anterior e a nova, por menor que fosse ou por mais irrelevante que pudesse parecer, podia ser motivo para recusar a proteção. A obsessão com consistência e plausibilidade decorre das exigências de um sistema profundamente racista, cuja prioridade é rejeitar o maior número de pessoas possível, seja na fronteira ou no labirinto jurídico do processo de “proteção”. Assim, o sistema não foi projetado para auxiliar ao máximo possível aqueles que buscam proteção, mas para apanhar o maior número possível de pessoas.7 Parte da hostilidade que está inscrita no sistema de asilo é sua temporalidade radicalmente incerta. A pessoa a quem o processo diz respeito não tem acesso a um cronograma de quando a entrevista ocorrerá ou quando uma decisão será tomada sobre seu caso. Essa incerteza corrosiva e generalizada pode resultar até mesmo no que pode ser visto como um desdobramento positivo. Por exemplo, em 2015, o Departamento de Justiça passou a dar documentos a um grande número de pessoas um pouco antes e na sequência da publicação do Relatório McMahon. Isso foi feito não por meio de uma anistia claramente anunciada, mas devido a uma arbitrariedade incerta que mantém as pessoas em um estado de paralisia entre a esperança e o medo, sem saber se obteriam residência, esperançosas de que conseguiriam, mas temendo não conseguir. A arbitrariedade não é um subproduto acidental da incompetência sistêmica, mas um mecanismo crucial de controle no cerne do regime de asilo e deportação. Ela dirige aquele estado suspenso que as pessoas descrevem como uma espécie de morte em vida.

No centro dessas formas de representação variadas, mas interrelacionadas, está a questão do trauma – a expressão do trauma e a adoção do trauma como medida de credibilidade. Os estudiosos Didier Fassin e Richard Rechtman argumentaram que o trauma se tornou uma forma de governamentalidade dentro da máquina de asilo e deportação. Conforme o testemunho dos próprios requerentes de asilo recebe cada vez menos peso jurídico e as marcas físicas do sofrimento se tornam menos evidentes – seja por meio de novas técnicas de tortura, seja pela passagem do tempo no limbo do asilo –, o trauma ganha uma nova importância. Se não houver marcas no corpo para dar um testemunho vivo, as marcas na psique terão de ser atestadas para que a história do requerente da proteção atinja o limiar de credibilidade.8 Mesmo que as palavras das pessoas que buscam asilo sejam colocadas de imediato sob suspeita, elas ainda são obrigadas a expressar seu trauma extensamente no pedido de proteção e de novo na entrevista, sem inconsistências. Para algumas pessoas, é impossível expressar o que elas passaram porque lembrar e reviver é algo simplesmente além do limite do que alguém consegue aguentar.

Spirasi, Centro de Cuidado aos Sobreviventes da Tortura, Dublin, 2016
Spirasi, Centro de Cuidado aos Sobreviventes da Tortura, Dublin, 2016.

Uma boa história requer uma versão simplificada e ensaiada para a mídia desse trauma. Uma boa história é aquela que desperta a simpatia e a pena do espectador. A recusa de Asylum Archive em divulgar histórias pessoais ou usar imagens pessoais de requerentes de asilo é uma recusa à dinâmica neocolonial que embasa as relações assimétricas entre a pessoa que busca asilo como objeto passivo de caridade e a pessoa no cargo e função para ajudá-la ou “resgatá-la” como o sujeito de seus atos de caridade. Nedeljković falou sobre as pessoas que buscam asilo se tornarem uma espécie de mascote para várias organizações e grupos, contando suas histórias e recontando suas experiências repetidamente na mídia ou tendo sua imagem usada para representar as conexões autênticas de ONGs e outros com as comunidades que deveriam representar e defender. Falou também de sua determinação em não repetir essa apropriação de imagem e história na compilação do Asylum Archive. Em uma entrevista recente, Nedeljković manifesta sua escolha de forma e método em termos do perigo que contar uma história pode representar para o narrador:

Quando você é um requerente de asilo, um dia você pode acordar e pensar, ah, que dia lindo, o sol está brilhando na porra de Ballyhaunis, então vou contar a verdade. No dia seguinte, você pensa, o que foi que eu disse, isso vai prejudicar o meu caso. Mas uma vez que é divulgado na mídia, é reproduzido repetidamente, e sua narrativa, sua imagem está por aí e não há nada que você possa fazer. Então, eu queria fazer algo diferente.

Além do medo dessa exposição pública como uma reprodução fora do seu controle e que tem risco de ser fatal, Nedeljković observa que o uso de tais detalhes íntimos da vida ou morte de uma pessoa pode, em última análise, fazer pouca diferença real:

[…] a questão de retratar seres humanos nessas situações é que – sabe aquela foto de Alan Kurdi, que foi morto – ficou na cabeça dos europeus ou europeus ocidentais por algumas semanas, mas quantos Alan Kurdis morreram depois de Alan Kurdi? E não há menção a eles. Não tinha sentido colocar uma foto ali. Então, eu pensei que mostrar os rastros, os fantasmas ou os vestígios de pessoas, algo deixado para trás depois que elas foram deportadas, por exemplo, ou transferidas, contaria uma história melhor da condição de ser um requerente de asilo na Irlanda.9

Asylum Archive é um registro histórico do presente e do passado recente da Provisão Direta e da máquina de deportação, além de ser especificamente um projeto artístico. Nos últimos anos, assistimos à proliferação de práticas artísticas socialmente engajadas, arte política e arte-ativismo. Podemos situar Asylum Archive dentro dessa “virada educacional”, uma ênfase simultânea no papel político e social da prática artística. Panos Kompatsiaris resume essa virada:

Discussões, simpósios, palestras, publicações extensas e programas educacionais se tornaram o “evento principal” na prática de exposições na última década (O’Neill & Wilson, 2010, p.12). A tendência recente de exposição de obras de arte de caráter documental, jornalístico ou arquivístico (Cramerotti, 2009) significa um esforço para gerar sentidos discursivos que se expandam para a realidade social.10

A descrição de Nedeljković das diferentes “iterações” do Asylum Archive demonstra sua posição dentro desse desenvolvimento do discurso contemporâneo das artes visuais:

Em cada reiteração, o Asylum Archive assume uma característica um pouco diferente. Na exposição em Galway, as fotografias puderam aparecer ao lado de vídeos e objetos encontrados. Além disso, a galeria recebeu um painel de discussão. O mesmo aconteceu na Galeria da NCAD [Faculdade Nacional de Arte e Design] e, em ambos os casos, o cubo branco enfatizou as características artísticas do acervo. Em contraste, meu relato em TransActions enfatiza as características de resistência do projeto, sustentando que os requerentes de asilo resistem aos centros de Provisão Direta, que foram concebidos como locais de detenção e exclusão, reivindicando-os como locais de coletividade e solidariedade. Da mesma forma, Asylum Archive resiste à convenção artística de “humanizar” os requerentes de asilo por meio da narrativa, recusando-se a incluir qualquer ser humano nas imagens. Por último, a versão de Border Criminologies inclui de longe a maioria das imagens, quase como se a arte tivesse que se tornar uma prova em um contexto jurídico. Tomadas em conjunto, essas reiterações do Asylum Archive documentam, analisam e teorizam experiências de poder, autoridade, detenção e supervisão. O Asylum Archive serve como um repositório de experiências e artefatos de asilo e tem uma perspectiva visual e educacional essencial, acessível por meio de sua presença online a quaisquer futuros pesquisadores.11

No entanto, a análise de Nedeljković da relação entre o discurso das artes visuais, o efeito político e as realidades vividas critica implícita e explicitamente a forma como os requerentes de asilo têm sido representados na prática artística contemporânea. A migração tem sido um tema central nas obras de arte e nas práticas de curadoria e de exposição nos últimos anos na Europa e tem sido uma alavanca importante para afirmar o papel diretamente político da arte contemporânea. Kompatsiaris considera o evento Documenta 11 de 2002 como um divisor de águas em termos da imaginação da prática artística e do evento de arte em grande escala como um espaço de prática potencialmente radical, política e emancipatória. De grande escala e ambição, eventos recentes marcantes e polêmicos – como a edição de 2012 da Manifesta e também, em 2017, a Documenta 14 e a Bienal de Veneza – foram motivados por essa ambição. É uma questão séria indagar se as ambições de tais eventos são realizáveis ou mesmo apropriadas tendo em vista o contexto contemporâneo dos horrores que são perpetrados nas fronteiras da UE e nos campos de detenção contra pessoas que buscam asilo. Tendas de refugiados feitas de mármore com vista para a Acrópole, enormes obeliscos dedicados a refugiados e migrantes avaliados em meio milhão de euros pelo artista, filmes artísticos usando técnicas de documentário que manipulam as pessoas em seus pontos de maior vulnerabilidade – cabe questionar o efeito emancipatório de tais obras.12 Há um conflito fundamental entre a ambição estética e conceitual do artista na prática contemporânea das artes visuais e a dura realidade de dezenas de milhares de pessoas assassinadas pela política de “gestão da migração” da UE e as muitas dezenas de milhares detidas e que enfrentam múltiplas formas de abandono em todo o continente, bem como na Turquia e no Norte da África a mando da UE.

A primeira vez que tive contato com o Asylum Archive e com o próprio Vukašin foi em um simpósio acadêmico em junho de 2013. Vukašin estava fazendo uma apresentação em um painel sobre “Migração, Deslocamento e Prática Criativa” como parte de um “Exploratório de Humanidades Digitais” que pesquisava “Caminhos para a Interdisciplinaridade, Práxis Criativa e Pesquisa em Humanidades Digitais”, e eu era a coordenadora do painel. O simpósio foi descrito no tipo de linguagem familiar a qualquer pessoa acostumada com a universidade neoliberal e seus registros preferidos, em que todos os empreendimentos devem ser expressos de forma a maximizar seu valor de uso para projetos financiados, resultados institucionais e pedidos de promoção. No entanto, seja qual for o meu ceticismo agora a respeito do propósito e dos beneficiários finais de tais simpósios, meu contato com o Asylum Archive e com Vukašin foi sem dúvida transformador para minha compreensão do que a Provisão Direta e o regime de deportação realmente significam para as pessoas sujeitas à máquina de “proteção”. Asylum Archive me fez perceber a culpabilidade absoluta do estado irlandês e de mim mesma como cidadã-sujeita branca, estabelecida e privilegiada de tal Estado nesse regime de morte lenta.

Talking Ball. Objeto encontrado no terreno do Railway Hostel, exposto em uma caixa de vidro. 37cm (c) x 37cm (l) x 37cm (a), 2011.
Talking Ball. Objeto encontrado no terreno do Railway Hostel, exposto em uma caixa de vidro. 37cm (c) x 37cm (l) x 37cm (a), 2011.

Eu sou acadêmica de profissão, mas nos últimos anos tenho estado cada vez mais absorta não tanto na análise acadêmica da “gestão da migração” ou na elaboração de quadros teóricos para desvendar o regime de asilo e deportação, mas em fazer algum tipo de contribuição para o movimento liderado pelos requerentes de asilo para desmantelar esses sistemas opressivos e marcados pela morte. O Asylum Archive e o Vukašin têm sido fundamentais para esse processo ao longo dos anos. A expansão do Asylum Archive para incluir o testemunho e a análise de organizadores radicais e líderes do movimento como Joe Moore do ADI (Irlanda Antideportação) e Lucky Khambule do MASI é um testemunho da interconectividade entre o Asylum Archive e o trabalho de organização vital que tais grupos radicais de base têm feito. Como diria Lucky Khambule, estamos todos cantando a uma só voz.

Southern Hills, Galway, 2016.

Embora tenham sido feitas muitas exposições do Asylum Archive nos últimos anos, lembro-me em particular de uma exposição em Unit 4 no Basic Space, durante a Semana dos Refugiados de 2018. Eu me sentei em uma cadeira ao lado do projetor e observei os slides passando, o catálogo sombrio de abuso institucional contemporâneo e lixo humano. Vukašin chamou a atenção para o slide de um antigo abrigo em Salthill, em Galway, Southern Hills, pois eu e minha parceira Sarah estávamos com ele quando ele o fotografou em 2016. Uma pesquisa no Google revelou que o edifício foi vendido em 2017 por 581.000 euros. É listado como uma antiga pousada e restaurante; nenhuma menção, é claro, a ter sido usado como abrigo da Provisão Direta. Há algo perturbador e implacável no som dos slides estalando no projetor antigo e, enquanto a apresentação de slides continua, ouço a gravação de Lucky falando sobre os protestos de residentes de 2014 no Centro de Acomodação Kinsale Road e outros centros e a reunião do MASI. É impossível sobrestimar a importância do significado e do legado dos protestos de 2014. Pessoas encarceradas em situações aniquiladoras de dependência forçada e isolamento, vivendo com medo de que qualquer infração a qualquer regra imposta pela administração – por mais insignificante e infantilizadora que seja – pudesse resultar em transferência ou deportação, superaram o medo, confrontaram o poder e forçaram a população majoritária a vê-las e ouvi-las. Na gravação, Lucky descreve a greve do KRAC e os protestos contra a Provisão Direta e como essas conquistas foram significativas. Ele fala sobre o grupo de trabalho e as tentativas de sufocar a resistência. Ele se lembra de como o MASI surgiu. Sinaliza os obstáculos e hostilidades que um movimento liderado por um requerente de asilo verdadeiramente independente enfrentou devido a vários interesses constituídos. Há outro acervo de asilo subjacente ao relato de Lucky que também deve ser documentado a tempo.

Residentes protestando no Centro de Provisão Direta Montague Hotel. Outono de 2014.

Os protestos da Provisão Direta de 2014 e os protestos contra o grupo de trabalho estão registrados na seção “Contribua” do Asylum Archive, que inclui fotos enviadas por manifestantes no Hotel Montague, em Portlaoise, e em Lisseywollen, em Athlone (incluídas na subseção “Resistência”), e uma subseção adicional sobre “Asilo KRAC Hoje”, com fotos da greve e do protesto (junto com a ARN – Rede Antirracismo da Irlanda – e a ADI) do lado de fora de onde ocorria a reunião final do Grupo de Trabalho no Departamento de Justiça em 2015. Lembro-me da participação de Vukašin em outra conferência na UCD [University College Dublin] em 2014, apenas um ou dois meses antes dos protestos contra a Provisão Direta, ocasião em que falou sobre a Provisão Direta como um local de resistência, bem como “encarceramento, exclusão social ou pobreza extrema”.13 Os centros também, como Nedeljković escreveu, “constituem formações de oposição de coletividade e resistência contra a política de Estado em que diferentes nacionalidades e grupos étnicos existem e persistem, apesar das próprias condições de confinamento criadas pelo Estado”.14 A compreensão dos centros de Provisão Direta como locais de resistência e abjeção se alinha com a análise de Imogen Tyler dos protestos de mães imigrantes nuas em 2008 em Yarl’s Wood, um centro de detenção e remoção de mulheres na Inglaterra. Contra a estrutura da “vida nua” elaborada por Giorgio Agamben em sua teoria biopolítica do homo sacer e a figura do refugiado (uma estrutura que é significativa para o Asylum Archive), Tyler afirma que “o refugiado” não é uma figura passiva e abjeta sem representação, embora essa representação do refugiado “predomine nos discursos jurídicos, beneficentes e acadêmicos” e, especialmente, no terceiro setor no qual “há enormes pressões (…) para produzir testemunhos que vão ‘chocar’ o sistema e levar a mudanças políticas”.15 Isso ressalta as tensões que podem existir entre movimentos de base autônomos e organizações do terceiro setor financiadas. O poder das próprias pessoas no sistema de asilo agindo e falando em seu próprio nome, de forma independente e sem mediação, desafia e abala o estereótipo do “requerente de proteção” como a figura passiva da caridade que deve ter alguém para falar por ele e em cujo nome os especialistas devem intervir. O Asylum Archive nos obriga a ver e enfrentar essas contradições e tensões. Dessa forma, o trabalho de Vukašin construiu um acervo politicamente eficaz no presente e para o futuro da tortura “suave” e rotineira de pessoas que buscam asilo nos campos contemporâneos do Estado, ao mesmo tempo em que demonstra que a recusa de cumplicidade em termos éticos, políticos ou estéticos é um projeto em andamento que deve ser continuamente renovado.

Este ensaio é uma versão revisada de um ensaio publicado originalmente em: NEDELJKOVIĆ, Vukašin. Asylum Archive. Dublin: Create/The Arts Council of Ireland, 2018.

Para obter mais informações, acesse: http://www.asylumarchive.com

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Anne Mulhall
Professora titular da Faculdade de Inglês, Drama e Filme da University College Dublin e co-diretora do Centro de Gênero, Feminismos e Sexualidades da UCD.

Vukašin Nedeljković
Artista visual e ativista radicado na Irlanda. Ele iniciou a plataforma multidisciplinar Asylum Archive como um recurso online, destacando criticamente relatos de exílio, deslocamento, trauma e memória, complementado pela plataforma de resistência paralela recente. Fortress Europe https://www.fortresseu.com/


1 ROY, Arundhati. “The Pandemic is a Portal”. The Financial Times. 3 abr. 2020 https://www.ft.com/content/10d8f5e8-74eb-11ea-95fe-fcd274e920ca

2 KINGSLEY, Patricke; SHOUMALI, Karam. “Taking Hard Line, Greece Turns Back Migrants by Abandoning Them at Sea”. The New York Times. 14 ago. 2020. https://www.nytimes.com/2020/08/14/world/europe/greece-migrants-abandoning-sea.html

3 “Viajante” se refere a comunidades que compartilham cultura e tradições marcadas predominantemente por um modo de vida nômade. Na Irlanda, a comunidade “Viajante” sofreu uma longa história de discriminação múltipla e interseccional, incluindo pobreza, desemprego, falta de oportunidade educacional, expectativa de vida reduzida, preconceito cultural e estereótipos sociais. Embora sejam anteriores à fundação do Estado Livre da Irlanda em 1922, daquele momento em diante os Asilos de Madalena eram instituições de encarceramento, bem como empresas com fins lucrativos dirigidas por ordens religiosas católicas. As mulheres e meninas confinadas nessas instituições incluíam “aquelas que eram vistas como ‘promíscuas’, mães solteiras, filhas de mães solteiras, aquelas que eram consideradas um fardo para suas famílias ou para o Estado, aquelas que haviam sido abusadas sexualmente ou que cresceram sob os cuidados da Igreja e do Estado”. Consulte o site Justice For Magdalenes Research para mais informações. http://jfmresearch.com/home/preserving-magdalene-history/about-the-magdalene-laundries/ [Acesso em out. 2020]

4 BOOCHANI, Behrouz; TOFIGHIAN, Omid. “Manus Prison Theory: Borders, incarceration and collective agency”. In: Griffith Review 65. Ago. 2019. https://www.griffithreview.com/articles/manus-prison-theory/

5 MCIVOR, Charlotte. “The Power of the Everyday: Looking Away from Bodies and Towards Ephemera”. In: NEDELJKOVIĆ, Vukašin. Asylum Archive. Dublin: Create/The Arts Council of Ireland, 2018. p.1

6 Ver “Wendy Lyon” e “Lucky Khambule”. Asylum Archive. http://www.asylumarchive.com/audio.html

7 Existem tantos exemplos disso que é difícil escolher apenas um, mas este exemplo pode servir para ilustrar em parte. Existem problemas contínuos com tradução e intérpretes no processo de solicitação; o padrão dos intérpretes disponíveis para as pessoas em suas entrevistas cruciais tem sido criticado de forma severa e consistente, e não há dúvida de que tradutores abaixo do padrão fazem com que as pessoas tenham a proteção negada. No entanto, em vez de trabalhar para melhorar isso, o IPO introduziu um novo sistema de teste de análise de linguagem em 2016 que “envolve a análise da fala de um indivíduo para avaliar (…) se o indivíduo poderia ser alocado na área geográfica da comunidade de fala de onde afirma vir. Quando o relatório de análise de linguagem indica que o requerente não é da área geográfica ou comunidade de fala à qual afirma pertencer, isso se torna um problema de credibilidade para verificação em uma entrevista relevante.” Summary Report of Key Developments in 2016. Dublin: Office of the Refugee Applications Commissioner, 2016. p.8.

8 Ver FASSIN, Didier; RECHTMAN, Richard. The Empire of Trauma: An Inquiry into the Condition of Victimhood. Princeton e Oxford: Princeton University Press, 2009. pp.250-274.

9 “Tenancy: Asylum Archive – a conversation between Vukašin Nedeljković and Lily Ní Dhomhnaill”. MAP Project. Jun. 2020. https://mapmagazine.co.uk/tenancy-asylum-archive

10 KOMPATSIARIS, Panos. “Curating Resistances: Ambivalences and Potentials of Contemporary Art Biennials.” In: Communication, Culture & Critique 7. 2014. p. 79.

11 NEDELJKOVIĆ, Vukašin. “Reiterating Asylum Archive: documenting direct provision in Ireland.” In: Research in Drama Education: The Journal of Applied Theatre and Performance. 23: 2 (2018): pp. 290-292.

12 BELMORE, Rebecca., Biinjiya’iing Onji (2017); OGUIBE, Olu. Obelisk (2017); ŻMIJEWSKI, Artur. Glimpse (2017).

13 NEDELJKOVIĆ, Vukašin. “Direct Provision Centres as Manifestations of Resistance.” TransActions: dialogues in trans-disciplinary practice 1. 2015. http://issue1.transactionspublication.com/2015/06/09/direct-provision-centers-as-manifestations-of-resistance/

14 NEDELJKOVIĆ, Vukašin. “Asylum Archive: An Archive of Asylum and Direct Provision in Ireland.” In: Border Criminologies. 4 mai. 2016. https://www.law.ox.ac.uk/research-subject-groups/centre-criminology/centreborder-criminologies/blog/2016/05/asylum-archive

15 TYLER, Imogen. Revolting Subjects: Social Abjection and Resistance in Neoliberal Britain. Londres e Nova York: Zed Books, 2013. p.114.