Nº6 VIDAS ESCONDIDAS
Seamus McGuinness. 21g, instalação, 2003. Foto: Marcus Conunahan.

Lived Lives: Conversas e jornadas sobre suicídio de jovens irlandeses. Entrevista com Seamus McGuinness

Estigma: “sinal de inaceitabilidade social: a vergonha ou desonra ligada a algo considerado socialmente inaceitável”

(Oxford English Dictionary)

Embora envolto em segredo, vergonha e excluído do debate público, o suicídio está lamentavelmente presente. Estatísticas crescentes em todo o mundo, especialmente em relação aos jovens, fazem com que esse assunto precise ser discutido com urgência. No entanto, como abordar essas memórias dolorosas e conversas necessárias em meio a estigmas sociais desafiadores? Nesta entrevista, o artista Seamus McGuinness discute sua obra Lived Lives [N.T. Em português, Vidas Vividas], um projeto de arte colaborativa em andamento que vai além das estatísticas para capturar histórias de jovens que perderam a vida por suicídio na Irlanda.

Lived Lives começou como uma plataforma de pesquisa interdisciplinar em 2005 entre o artista e cientista Kevin Malone, professor de psiquiatria do Hospital Universitário de St. Vincent/University College Dublin (UCD), e acabou por conferir a Seamus McGuinness um PhD em 2010 pela Faculdade de Medicina, UCD. Desenvolvida junto com a Pesquisa Suicídios na Irlanda, conduzida por Malone, Lived Lives se conectou a 104 famílias irlandesas de luto devido a suicídio entre os anos de 2003 a 2008, ouvindo ativamente suas histórias, contadas à mesa da cozinha de lares em toda a Irlanda. A exposição resultante, com base em objetos doados e retratos de pessoas que se foram por suicídio, bem como obras de arte feitas por Seamus McGuinness passou por vários locais em todo o país, estimulando conversas, eventos e discussões na sociedade. Usando métodos de pesquisa inovadores fundamentados em processos altamente colaborativos e abertos à sociedade, o projeto usou a arte como um agente e/afetivo para envolver famílias de luto, coletividades alargadas e o público em geral em conversas a respeito de um assunto muito sensível e estigmatizado.

Em entrevista perto de sua casa em Ballyvaughan, Burren, no Condado de Clare, na Irlanda, em 7 de julho de 2017, e recentemente por e-mail/Skype para atualizar novas edições do projeto para os fins desta publicação, Seamus discute sua jornada desde seu trabalho como artista têxtil até à prática artística socialmente engajada e de profunda complexidade de vários anos na qual ele agora está imerso e os paralelos valiosos entre sua atividade anterior com tecido e a atual de tecer conversas.

Coeditores: Helen O’Donoghue, Jessica Gogan e Luiz Guilherme Vergara

Jessica Gogan – Você pode nos contar sobre sua jornada de artista têxtil a seu trabalho de prática social?

Seamus McGuinness – Tecido não é algo novo para mim; fez parte da minha infância. Fui criado na Península Inishowen, North Donegal, na Irlanda, em um vilarejo chamado Fahan. Era uma região operária perto da fronteira com Derry. Uma das principais indústrias em North Donegal naquela época era a têxtil, especialmente a fabricação de camisas. Homens e mulheres trabalhavam no setor têxtil. Os têxteis estavam em todos os lugares. Fui para a faculdade de artes de 1982 a 1986 no GMIT (Instituto de Tecnologia Galway-Mayo), e meu treinamento inicial em artes para obter meu diploma principal foi em design têxtil, que consiste na exploração da fabricação de tecidos e sua aplicação ao mundo. Foi um treinamento muito técnico, com ênfase na produção técnica de tecido. Então, conheci de fato as possibilidades físicas do tecido. Esse treinamento ainda é evidente no meu trabalho. Mas agora penso no tecido tanto como um material físico quanto como uma ferramenta conceitual e tenho muito interesse na capacidade do tecido de se comunicar com as pessoas e a sociedade em geral. O tecido e o corpo humano têm uma materialidade muito similar: corta-se o tecido, corta-se a pele, costura-se o tecido, costura-se a pele, mancha-se o tecido e pode-se também manchar seres humanos. Uma mancha no tecido é bem visível. Porém, se considerarmos o estigma como uma mancha na sociedade, ele é invisível, não se pode ver o estigma. O estigma é mais sentido do que visto.

Ao me formar em 1986, como a maioria de meus contemporâneos na época, passei um ano em Nova York, depois voltei para casa e trabalhei como professor em Dublin. Ao me mudar para Burren, no Condado de Clare, no oeste da Irlanda, em 1991, com minha família recém criada, fundei um estúdio têxtil e uma galeria aqui em Ballyvaughan. Naquela época, minha atividade era muito específica do local, atuando no mercado comercial. Trabalhei em colaboração com arquitetos produzindo peças têxteis de parede em grandes dimensões, concebidas e produzidas especificamente para edifícios públicos e privados. Essas foram peças de criação muito física. Um exemplo é a obra Rivers, 1998, encomendada para a Sede da Avonmore Diaries, em Kilkenny.

Seamus McGuinness. Rivers, 2,5 x 4,1 metros, 1998. Encomendado para a Sede da Avonmore Dairies, em Kilkenny, na Irlanda. Foto: Seamus McGuinness.

Minha nova casa na época, conhecida como Burren – o nome vem do irlandês “boireann”, que significa “grande rocha” – para aqueles que não estão familiarizados com essa paisagem incomum, é uma região de grande interesse ambiental dominada por colinas de calcário da era glacial. (Para obter mais informações, acesse https://www.burrennationalpark.ie/).

A paisagem de Burren, 14 de julho de 2020. Fotos: Seamus McGuinness.

Inspirado por essa paisagem, fiz uma série de obras em grande dimensões feitas com milhares de peças de tecidos frágeis pintados à mão. Para mim, essas obras se referiam à conexão simbiótica entre a paisagem rural e a humanidade. Elas expressavam o contraste entre a vastidão da paisagem de Burren e a própria fragilidade dessa paisagem na vida contemporânea. A série também refletiu as histórias da fabricação de tecidos. Elas foram costuradas umas às outras de forma muito intensa; foram peças de criação muito física. Eu queria explorar a materialidade do tecido e as histórias da fabricação para investigar nossa relação com a paisagem em que vivemos.

Seamus McGuinness. The Big Burren, 2,7 x 4,2 metros, 1993. Foto: Seamus McGuinness.

No final da década de 1990, a morte de meus pais com intervalo de seis meses entre uma e outra abriu meus olhos para a minha própria mortalidade. Foi minha primeira experiência com a morte de um parente próximo, e perdê-los me afetou profundamente. Nesse período, houve uma mudança marcante nas minhas práticas artísticas. Essa experiência alterou minha forma de pensar, deixando de lado preocupações físicas e priorizando as mais efêmeras. Isso me levou a questionar minha prática e a me interessar por toda a questão de gênero na confecção de tecidos. Historicamente, o uso de tecidos na criação de arte foi uma atividade muito feminina. A partir da década de 1960, algumas das grandes artistas feministas usaram poderosamente roupas femininas para descrever questões femininas muito complexas de sua época. Então, eu passei a procurar intencionalmente algo em que eu pudesse usar e subverter essa história e fui em busca de um assunto que preocupasse os jovens do sexo masculino da sociedade irlandesa contemporânea. Relembrando as camisas brancas da minha infância, comecei a desconstruir a camisa masculina branca e, em especial, o colarinho da camisa, que é um símbolo da conformidade masculina. Foi nessa época em que me deparei pela primeira vez com as estatísticas de suicídio de homens jovens. Em 2003, por exemplo, de acordo com as estatísticas do governo, 92 jovens entre 18 e 25 anos morreram por suicídio na Irlanda. Fiz então mais de 92 colarinhos de camisa, cada um pesando 21g, o chamado peso mítico da alma. (Ver Figs. 1 e 4) Instalei mais de 92 porque na época eu suspeitava – e agora eu sei – que, devido ao estigma em torno do suicídio, outras mortes não teriam sido registradas como suicídio, mas como morte acidental.

JessicaO peso mítico da alma? De onde vem isso?

Seamus – Em 1901, um americano, Dr. Donald MacDougall, de Massachusetts, queria provar que havia uma diferença de peso entre um corpo pesado vivo pouco antes de morrer e um corpo pesado logo após a morte. Ele fez um estudo pesando corpos em uma máquina acoplada à cama do paciente logo antes e depois da morte. Aparentemente, havia uma diferença entre os dois pesos de “três quartos de onça” ou “entre 19 e 21 gramas”, que foi considerada como o peso da alma; suas descobertas foram publicadas em 1907. No entanto, apesar do entusiasmo dele em provar que essa massa corporal inexplicável era o peso da alma, os resultados são duvidosos. Nunca foi feita uma repetição do experimento, mas a ideia romântica de que a alma poderia ter peso permanece.1 É uma história um tanto mítica, mas como artista, fazer unidades repetidas para uma instalação artística me deu uma espécie de estrutura arquitetônica para fazer os fragmentos. Então, esse trabalho virou a instalação 21g, 2003. Com medida de cerca de 3 metros x 5 metros, os colarinhos foram instalados em alturas diferentes para indicar os diversos corpos ausentes. A instalação dos colarinhos de camisas é reformulada e remodelada de acordo com cada local em que é exibida. A realização de 21g em 2003 coincidiu com o encerramento da última fábrica de produção de camisas em Donegal. Como disse, essas fábricas eram grandes empregadoras, eram verdadeiras comunidades, onde trabalharam gerações, muitas vezes famílias inteiras. Quando fecharam, comunidades inteiras perderam mais do que um emprego, pois era muitas vezes sua identidade coletiva, seu modo de vida.

Seamus McGuinness. 21g – Making Stigma Visible, Centro Cultural Regional, Letterkenny, 2018. Foto: Robert Ellis.

Esse contexto de perdas e a experiência de fazer 21g motivaram a busca por outras referências. Mas, na verdade, não consegui encontrar muita coisa. O suicídio era na época – e ainda é – muito estigmatizado. Os irlandeses não gostam de falar sobre isso. Adoramos não dar nomes às coisas. Câncer sempre foi o Grande C, como se não pudéssemos falar a palavra. Ainda não dizemos a palavra “suicídio” por medo. Antes de tudo, o ato de se matar era um pecado na sociedade irlandesa. Em Ulysses, [James] Joyce escreve sobre o suicídio. As pessoas eram enterradas fora da igreja, as “pobres almas”, como diriam, e nos velhos tempos, costumava-se cravar estacas nos corações das vítimas. Enfim, ao pesquisar, eu descobri uma conferência em Dublin chamada “Novas Dimensões: Abordagens sobre o suicídio”. Então, decidi que iria lá como parte de minha pesquisa, e foi onde conheci Kevin Malone, que é professor de psiquiatria em University College Dublin e no Hospital Universitário de St. Vincent, em Dublin, e é especializado em estudos sobre suicídio. Mostrei a ele algumas imagens de 21g, e começamos a conversar. Em seguida, fizemos algumas palestras públicas juntos para sondar o terreno e também para falar. O Kevin havia iniciado a Pesquisa Suicídios na Irlanda, que deveria adotar uma abordagem psicobiográfica e tinha como objetivo entrevistar pessoas que haviam perdido parentes por suicídio, e eu me juntei a ele nessa pesquisa. A plataforma de pesquisa inicial que Kevin e eu estabelecemos atuava em torno de interesses comuns de pesquisa e foi situada inicialmente fora de qualquer estrutura institucional. Posteriormente, no entanto, foi incluída dentro de um contexto institucional quando, em 2006, fui indicado como Acadêmico Ad Astra em Estudos de Suicídio no Departamento de Psiquiatria e Pesquisa em Saúde Mental (UCD/SVUH), [situando] exclusivamente o que se tornaria o projeto Lived Lives como um PhD de prática artística dentro de uma Faculdade de Medicina. Assim, a prática artística que surgiria seria aquela em que o tecido, tanto na sua forma material quanto conceitual, responderia e operaria pragmaticamente dentro desse contexto médico. Logicamente, é incomum para uma faculdade de medicina fundamentada em abordagens e análises de imparcialidade objetiva, considerada universal e empírica, receber um PhD conduzido por prática artística movida em geral por interesse pessoal e hermenêutica experiencial. No caso, Lived Lives possibilitou pontos saudáveis de tensão entre as abordagens artísticas e científicas que, por sua vez, produziram novos espaços de conhecimento e compreensão.

Entrevistamos 104 famílias em toda a Irlanda ao longo de dois anos e, o que é muito importante, à mesa da cozinha de suas próprias casas. A ideia predominante na época era levá-los para o hospital, mas eu tinha plena consciência de que as instituições haviam frustrado muitas dessas pessoas e que elas ficariam mais confortáveis em suas casas. Então, colocamos pequenos anúncios nos jornais locais gratuitos de todo o país, simplesmente informando a natureza do estudo e pedindo àqueles que haviam perdido alguém recentemente por suicídio entre os anos de 2003 a 2008 para ligar para o escritório de pesquisa se quisessem compartilhar sua perda e nós iríamos ouvir sua história. Achamos que conseguiríamos a participação de 20 famílias, mas conseguimos 104. Foram anos muito cansativos. Dirigimos muito. Foi uma pesquisa em toda a Irlanda e, por isso, viajamos por toda a ilha. Decidimos fazer uma entrevista por dia. Algumas duravam uma hora; outras, quatro ou cinco horas. Se alguém chegou a pegar o telefone para nos ligar, sentíamos que precisávamos estar disponível para ajudar essa pessoa e acompanhá-la. Portanto, tomávamos muito cuidado com o início da entrevista, mas sempre terminava quando as próprias famílias a terminavam. Em seguida, após a concordância e a assinatura dos formulários oficiais de “Consentimento Informado”, que cientificavam os participantes sobre a natureza e os parâmetros da pesquisa, eu dizia para as famílias participantes doarem algo pertencente ao ente falecido. Muitas famílias doaram objetos do quarto de seus filhos, mas a maior parte me deu o nome e uma fotografia, revelando a identidade. Isso gerou um problema na Faculdade de Medicina porque o anonimato e a confidencialidade são os pilares da pesquisa médica, e todo projeto que se origine de um hospital ou universidade precisa da aprovação do Comitê de Ética.

Criados na década de 1960, os Comitês de Ética e Médicos tinham o objetivo de proteger o bem-estar das pessoas que participavam de pesquisas médicas. Tivemos que submeter o projeto três vezes até conseguirmos a autorização. Como todos os projetos de pesquisa dentro da faculdade de medicina, Lived Lives estava no âmbito de competência desse órgão governamental. A autorização para incluir a identidade na pesquisa foi recusada duas vezes, principalmente devido a preocupações com a angústia da família extensa ou distante causada pela exposição da identidade do ente querido falecido em uma exposição pública. Em resposta, o processo de Lived Lives foi ajustado de forma a contemplar exposições privadas e envolvimento da família extensa ou distante no desenvolvimento do trabalho antes de qualquer exibição pública. Foi estabelecido nos protocolos de trabalho que as famílias participantes poderiam retirar qualquer coisa ou tudo em qualquer estágio do processo sem julgamento ou censura. Uma voz importante nesse “oficialismo” veio de uma integrante de uma das famílias participantes que se dirigiu ao Comitê em nossa quarta tentativa de receber aprovação. Ela alegou seu direito de autorizar o uso das imagens e objetos de sua propriedade em nossa pesquisa e, basicamente, como os próprios sujeitos da pesquisa não se dirigem a esses comitês, foi dado a ela um caminho para se dirigir pessoalmente ao Comitê de Ética e Pesquisa Médica. Foi então autorizada a inclusão de imagens e outros objetos que revelassem a identidade, se as famílias assim desejassem. Uma série de instalações de arte em andamento foi feita a partir dessas doações, que foram inicialmente apresentadas às famílias para envolvimento privado, reflexão e feedback. É importante ressaltar que, como as famílias estavam presentes e ativas nas obras de arte que surgiam, o ato de ouvir se tornou algo intrínseco ao projeto e a conversa que fluiu durante o processo criativo foi valorizada tanto quanto a realização e a apresentação de obras físicas. As instalações de arte em desenvolvimento foram apresentadas pela primeira vez às famílias em 2009. Demoramos quase duas semanas para garantir que cada família pudesse ver em privado os trabalhos a serem apresentados, de acordo com o que ficou conhecido como os protocolos de Lived Lives.

  • Famílias de Lived Lives Participação Privada, Galway, 2009. Foto: Robert Ellis.

Os trabalhos em curso foram instalados no Centro de Mídia e Artes Criativas, GMIT, Galway. O prédio havia sido um antigo seminário para o treinamento de padres católicos, então haviam quartos suficientes, todos exatamente do mesmo tamanho. Eles são usados atualmente como estúdios para estudantes, mas eram antigas celas dos padres. O fato de os quartos serem do mesmo tamanho era importante para mim porque eu não queria privilegiar uma família em detrimento de outra. Cada família, cada obra tinha que ter o mesmo espaço físico; tudo era enfocado no participante. Quando fiz 21g em 2003, fiz como um objeto de arte, para o público interpretar da forma que reagisse ou não. Às vezes sinto que, como artistas, não levamos em conta o público. Frequentemente, criamos as obras para outros artistas, ou instituições culturais, distantes da vida cotidiana. Passei a questionar por que fazia isso. Voltando à sua pergunta original sobre minha jornada de artista têxtil ao engajamento social, com Lived Lives foi o impacto do processo de pesquisa que transformou minha prática de uma que se centrava no objeto físico de arte para uma que está profundamente enraizada na experiência humana e agora opera no âmbito da prática artística socialmente engajada.

  • Lived Lost Lives RCC, Letterkenny, Condado de Donegal, 2013. Fotos: Robert Ellis.
  • Lived Lives: A Pavee Perspective, Dublin, 2015. Fotos: Robert Ellis.

O layout da exposição e recepção muda de acordo com cada público e espaço físico. Essa mudança na minha prática artística não foi uma decisão consciente minha. Foi só como as coisas se desenrolaram. Eu segui o processo. Desde a primeira exibição de Lived Lives, continuamos a levar o projeto a diferentes contextos em todo o país.

Helen O’Donoghue – Seamus, dada a forma como o processo tem “se desenrolado”, como você diz, e o amplo alcance em todo o país, esse trabalho deixará um legado poderoso. Você se tornou e é o guardião das histórias e objetos que as famílias doaram e está construindo aos poucos um grande acervo. Como você veria seu trabalho como um acervo? Diante do ímpeto atual da sociedade em digitalizar acervos, você chegou a considerar isso? O que você pensa sobre o local onde o acervo deveria estar situado?

Seamus – Como resultado do desenrolar do processo de Lived Lives, surgiu um acervo – tecidos, objetos, sons e histórias. Repito, isso não estava previsto. Foi feita uma sugestão às famílias participantes, após o consentimento informado, para que doassem ao projeto imagens, nomes e outros objetos de seu familiar falecido por suicídio. Essas doações também incluíam narrativas do ente falecido. Elas se tornaram um acervo de trabalho, sendo constantemente ampliado, de forma semelhante ao que o estudioso Matthew Winzen chama de “acervos vivos”, que significa “obras abertas, inacabadas e inacabáveis”.2 Questões como a guarda e manutenção do acervo precisam ser reexaminadas agora. O acervo Lived Lives é realmente um “acervo vivo”, que cresce conforme o trabalho e as conversas sobre o processo avançam. Não foi feito para ser um acervo meticuloso. É vivo, respira, vai sempre mudando de acordo com o contexto e se tornando, de várias formas, uma nova maneira de trabalhar para mim. Por meio do processo de seleção, instalação, toque e contemplação, os objetos são refeitos e representados em diferentes instalações e contextos a cada evento/exibição de Lived Lives.

Sala de Acervo, Centro Cultural Regional, Letterkenny, 2018. Foto: Robert Ellis.
Sala de Acervo, Centro Cultural Regional, Letterkenny, 2018. Foto: Robert Ellis.

Sugere-se aos visitantes e convidados desses eventos que peguem e toquem nos objetos, e esse ato de tocar abre ao espectador um caminho para dentro. O ato de tocar é importante. Tem por base a qualidade inata do tecido de ser comunicativo e de ser um veículo para encontros estéticos transformadores. Esses encontros, por sua vez, também se tornam parte do acervo por meio do processo de documentação.

Acervo Toque, Centro Cultural Regional, Letterkenny, Condado de Donegal. Foto: Robert Ellis.
Acervo Toque, Centro Cultural Regional, Letterkenny, Condado de Donegal. Foto: Robert Ellis.
Acervo Toque, Centro Cultural Regional, Letterkenny, Condado de Donegal. Foto: Robert Ellis.

Atualmente eu guardo todas as doações de acervo físico e obras no meu estúdio particular, próximo à minha casa, mantendo-os sob custódia. No entanto, não quero que esse acervo e obras futuras sejam consumidos por uma instituição: devem continuar sempre sendo de propriedade das pessoas cujas experiências de perda eles tentam articular e tornar acessível aos outros. Uma alternativa seria digitalizar todo o acervo, devolver as doações às famílias e manter sua existência online. Porém, nesse caso, ficaria faltando o ato do toque físico. Assim, questões e dilemas em relação ao acervo são preocupações constantes nesse projeto.

Jessica – É fascinante pensar sobre como o “acervo vivo” reflete uma Irlanda contemporânea viva. Talvez você possa falar sobre os diferentes públicos com os quais você trabalha a esse respeito.

Seamus – Nosso objetivo é atingir públicos variados: jovens, é claro, e comunidades marginalizadas, muitas vezes desproporcionalmente afetadas pelo suicídio, bem como públicos diversos, trabalhando em estreita colaboração com parceiros locais. Uma das iterações de Lived Lives ocorreu em Fort Dunree, Inishowen, uma área rural do Condado de Donegal, em 2017. O público com o qual trabalhamos ali tinha majoritariamente 16 anos. Nesse tipo de pesquisa, os pesquisadores não costumam interagir com menores de 18 anos sobre suicídio porque eles não são adultos e, então, não seria algo aceitável socialmente. Mas, na verdade, jovens entre 16 e 18 anos fazem parte da população de alto risco. Na verdade, a pessoa mais jovem em nosso acervo Lived Lives é Rebecca, ela tinha 14 anos quando morreu. Em uma de nossas conversas mediadas em Fort Dunree, uma garota questionou por que, se jovens de 14 anos estão se matando, a voz deles não poderia fazer parte dessa conversa. Pensei comigo mesmo que aquilo fazia sentido e, então, passamos a incluí-los também, garantindo que a voz deles, que em geral não é ouvida, fosse verbalizada em alto e bom som. Esse tipo de envolvimento precisa de uma estreita colaboração com as escolas. Visitamos as escolas com antecedência para garantir que todos estivessem cientes da natureza do trabalho antes da visita dos alunos. Incluir diretamente esses jovens dessa forma parece ser um bom modelo de envolvimento. Eles conseguem se expressar em uma linguagem que jovens entre 14 e 16 anos entendem. Em relação ao suicídio, tendemos a falar muito como adultos sobre isso, mas é fundamental criar plataformas estéticas e éticas para que essas vozes jovens possam surgir.

Dunree Fort-21g. Reflexão dos Alunos, Inishowen, Condado de Donegal, Irlanda, 2017.

Além dos jovens, na Irlanda, outro grupo de risco desproporcionalmente alto são os “viajantes” [Travellers]. [“Viajantes” se refere a comunidades que compartilham cultura e tradições marcadas predominantemente por um modo de vida nômade].3 Então, em 2015, uma versão de Lived Lives foi apresentada no Centro de Recursos de Viajantes, Pavee Point, Dublin. A exposição teve como objetivo conscientizar a respeito do desafio apresentado pelas taxas de suicídio elevadas na comunidade viajante. De forma similar ao que descrevi quanto a trabalhar com o público jovem, o processo de exposição também envolveu uma série de visitas mediadas e discussões. (Ver Pavee Perspective em https://www.livedlivesproject.com/)

Tivemos a sorte de receber financiamento do Wellcome Trust para financiar a Pavee Perspective e logo em seguida receber uma segunda doação em 2017 com o objetivo de, durante um período de doze meses, alcançar novas comunidades rurais e marginalizadas em cinco locais diferentes. É importante ressaltar que não se tratava apenas de trabalhar com comunidades nas diferentes periferias da sociedade irlandesa, mas, de forma crítica, nos esforçamos para reunir esses grupos e criar diálogos entre esses grupos com representantes de diversas instituições. Aqui, perspectivas que podem ser vistas como geográfica e psicologicamente opostas são reunidas por suas experiências comuns de suicídio, estigma e marginalização por exemplo: um socorrista ou Garda Siochana [o nome irlandês para a polícia] ao ser chamado e chegar na cena de um suicídio, jovens LGBTI e membros da comunidade, também afetados de forma desproporcional pelo suicídio, famílias de luto, mídia local e profissionais de saúde mental. O diálogo aberto que não lamenta, cultua ou mostra os participantes como vítimas ou estatísticas pode fazer com que as pessoas assumam uma posição empática. O objetivo é criar as circunstâncias para ouvir diferentes histórias e compreender, refletir e questionar a perda sem julgamento. Nesse sentido, ao abrir espaço para conversa, reflexão e contemplação sobre interesses diferentes, o projeto Lived Lives foi especialmente comovente em sua iteração no hospital universitário psiquiátrico St. Patrick, em Dublin. Essa iteração ficou conhecida como From Tory Island to Swift’s Asylum. Foram instaladas obras de arte em todo o hospital e organizamos tours mediados para o público. É importante ressaltar que fizemos uma apresentação na Conferência do Dia dos Fundadores, na qual conseguimos reunir usuários de serviços de saúde mental e prestadores e formuladores de políticas – um evento raro, talvez até inédito. Também promovemos conversas na Sala da Diretoria do Hospital e incentivamos reflexões sobre Lived Lives por parte da equipe clínica e avaliadores. É muito comovente ver como essas exposições/eventos mediados têm o poder de envolver e ser relevante para diversos grupos. (Ver From Tory Island to Swift’s Asylum em https://www.livedlivesproject.com/)

Mas acho que, para explicar nosso processo, é útil voltar imediatamente aos envolvimentos e exibições privadas para as famílias durante a primeira instalação de Lived Lives, em Galway, 2009. Durante a primeira semana, cada família foi guiada pelas obras em andamento. Foi um processo de conversas e jornadas. Nessa fase, as famílias ainda não se conheciam. A ideia era fazer exibições privadas para cada família separadamente. Fomos extremamente cuidadosos com isso e criamos um cronograma para garantir que cada uma tivesse esse tempo privado. Cada jornada pelas obras durou cerca de duas horas. Gravamos todas as conversas, depois as transcrevemos e demos cópias às famílias, pedindo a elas que excluíssem o que não quisessem tornar público, já que às vezes, durante as conversas, as pessoas podem mencionar nomes e outras coisas e depois pensar que talvez não devessem ter dito isso ou aquilo. Eu queria que elas tivessem o controle de como suas experiências particulares de perda entrariam na esfera pública. Fomos sempre muito cuidadosos. Caminhamos muito lentamente pelo que significava muitas vezes reviver um luto muito tangível. Foi um exercício de construção de confiança. Isso é um método no meu processo e, ao refletir a respeito agora, eu diria que tem sido uma parte fundamental da pesquisa e continua a ser conforme trazemos as obras para o domínio público. Todo o processo, as jornadas pelas instalações artísticas, as conversões reflexivas e as discussões, foi documentado por meio de imagens estáticas e em movimento, o que abre um caminho para as famílias se envolverem em seu luto de forma documentada e, no seu próprio tempo, editar o que é mostrado para o grande público e, ao fazer isso, estender criticamente a conversa para além dos participantes imediatos. Em Lived Lives, tanto para as famílias quanto para o público em geral, a experiência conforme eles avançam pelas obras tocando fisicamente e marcando as obras de arte é fundamental para o processo e foi descrita muitas vezes como transformadora.

Jessica – Ouvindo você descrever esse processo incrivelmente ético e cuidadoso, eu me lembro de um comentário em sua publicação eletrônica recente observando que em muitas práticas socialmente engajadas, embora bem intencionadas e/ou impulsionadas por preocupações sociais e comunitárias, o artista, no entanto, permanece “soberano”4, o que é muito diferente do seu processo.

Seamus Muitas vezes sinto que na arte contemporânea as vozes do público e dos participantes não são ouvidas. Em vez disso, ouvimos as vozes de artistas, educadores, críticos e curadores. Com frequência, na prática socialmente engajada, os artistas que trabalham com as comunidades tentam representar essas comunidades. Mas, na verdade, muitas vezes não incluímos essas mesmas comunidades nos processos de tomada de decisão. Aqui as famílias decidiram tudo, e continua sendo assim. No final daquela semana em Galway em 2009, onde exibimos Lived Lives pela primeira vez, reunimos todas as famílias. O enfoque do meu PhD foi explorar como poderíamos criar as circunstâncias para liberar essas histórias privadas para a esfera pública. Uma grande parte desse trabalho consistiu em perguntar às próprias famílias, não apenas se, mas também, como deveríamos fazer isso. Então, nessa reunião, que foi quando todos se conheceram, as famílias decidiram que realmente queriam que as obras fossem abertas ao público e recomendaram quatro estratégias curatoriais (embora não tivessem dito curatoriais, mas é o que eram) sobre como deveríamos proceder para tornar as obras públicas:

  • 1º – haver sempre mediação nos trabalhos;
  • 2º – não privilegiar uma família em detrimento de outra e, então, cada vez que expomos as obras há pelo menos um objeto de cada família;
  • 3º – garantir que haja apoio disponível ao luto – portanto, sempre que há uma exposição, temos orientadores especialistas em luto, pois nunca se sabe quem comparece à exposição e como essa pessoa pode ser afetada;
  • 4º – não permitir a presença de menores de 16 anos, a menos que estejam acompanhados por um adulto ou responsável.
Devemos ir a público, 2009.

Uma vez que essas estratégias foram colocadas em prática, e tendo continuado a trabalhar com elas o tempo todo, isso realmente moldou nossa forma de trabalho, mas torna qualquer exposição um processo longo e lento. Quando exibimos as obras em público, geralmente faço um tour mediado que leva cerca de noventa minutos.

Lived Lives: A Pavee Perspective, Dublin, 2016.

Após a jornada pelas obras, voltamos ao espaço da exposição e, sentados em meio às obras, conversamos sobre o suicídio na Irlanda. As obras de arte, o material físico, não são tão relevantes para mim, na verdade, mas se mostram relevantes por serem um catalisador e um espaço de conversa. De alguma forma, sentar-se entre tecidos e fios rasgados faz com que a conversa flua com muito mais facilidade e seja muito mais significativa do que se sentar em torno de uma mesa. Eu vejo essa prática como tendo realmente uma natureza dialógica.

Conversa sob 21g, Centro Cultural Regional, Letterkenny, Condado de Donegal, 2018. Foto: Robert Ellis.
Conversa sob 21g, Centro Cultural Regional, Letterkenny, Condado de Donegal, 2018. Foto: Robert Ellis.

Outro aspecto importante do processo é a avaliação. Sempre sugerimos ao público que se envolve com as obras que nos dê feedback por escrito. Temos milhares de formulários preenchidos, que se somam ao acervo, e até agora já exibimos em mais de vinte locais. Uma das perguntas que fazemos é se a pessoa acha que isso romantiza ou glorifica o suicídio, que é uma pergunta que você deve considerar sempre que você tem elementos estéticos envolvidos, mas a resposta que recebemos é não, de forma alguma, é apenas real.

Mas não há apenas feedback por escrito. Agora, sempre que organizamos exposições e eventos, há avaliadores que são parte integrante e estão lá para observar. Buscamos sempre ter alguém do mundo da arte e do mundo médico. Fazemos um esforço constante para ter esse equilíbrio e, ao fazer isso, para haver também esse diálogo interdisciplinar entre arte e ciência. Portanto, temos três lentes de avaliação – a arte, a ciência e as comunidades com as quais trabalhamos. (Ver Parte III: Lived Lives: Avaliações independentes, feedback, entrevistas de rádio e contagens culturais em https://www.livedlivesproject.com/)

Outra coisa que fizemos era solicitar, sempre que estivéssemos trabalhando com alguém dos quadros burocráticos, qualquer pessoa de um contexto institucional, que deixassem sua postura institucional do lado de fora da porta e conhecessem as pessoas como pessoas. Frequentemente, as instituições suprimem a bondade das pessoas e elas tendem a falar de um ponto de vista institucional, em vez de humano. É preciso mudar esse tom profissional para haver uma conversa sobre humanos entre humanos.

Toda vez que fazemos uma exposição, o primeiro dia ou dia de inauguração é sempre reservado, ou seja, aberto apenas para as famílias de Lived Lives e as famílias de luto por suicídio daquela comunidade local. Então, é só para eles. As famílias doadoras costumam se juntar a nós nesse processo. É sempre muito íntimo, muito triste, eles sabem como é, todos eles passaram por isso, é um processo terapêutico, ou melhor, devo dizer que é uma experiência catártica mais do que uma experiência terapêutica.

Guilherme Vergara – Esse processo incrivelmente cuidadoso e meticuloso me lembra o filme japonês A Partida (2008). Um violoncelista fracassado volta à sua pequena cidade natal, e o único emprego que consegue é como um agente funerário do ritual tradicional japonês – uma espécie de embalsamamento. Ele sofre preconceito devido a vários tabus sociais fortes em relação a pessoas que lidam com a morte, mas ele desempenha seu trabalho com tanto cuidado, atenção e amor, tal como ao tocar música, que acaba levando dignidade à morte.

Seamus – Sim, confiança, cuidado, uma coisa que realmente me impressionou é que essas 104 famílias sofreram, possivelmente, a pior coisa que poderia ter acontecido na vida delas até agora, mas estavam dispostas a compartilhar suas histórias com alguém que não havia passado por aquilo, e essa é a essência da humanidade, do meu ponto de vista. Eu sempre tento ter muito cuidado com isso. Acho que quando você está trabalhando com comunidades e indivíduos, não faz sentido apenas expô-los a um processo artístico, você realmente tem que colocá-los dentro do processo, e a confiança é construída a partir daí. Muitos projetos atraem as pessoas, mas não possibilita que elas tomem decisões. Para nós, as famílias têm a última palavra em tudo o que fazemos. O que é interessante é que, ao se abrir e abrir mão do controle, elas sempre acabam acrescentando algo ao processo de maneiras inesperadas.

Jessica – Então, o processo se torna agregador?

Seamus – Sim. As primeiras famílias com que falamos em 2006 ainda estão envolvidas no processo. Muitas famílias se tornaram amigas umas das outras e também de nós. E nem tudo é tristeza. Nossa proximidade e a confiança que existe entre nós resultaram em amizades íntimas e respeito.

Jessica – Estou impressionada com os paralelos entre o seu trabalho com têxteis e a sua prática social. Todo o processo que você descreve me parece um processo de confecção de tecidos – uma trama de cuidados e conversas…

Seamus – O tecido se comunica da forma mais silenciosa possível, estamos envoltos em tecido quando nascemos, quando morremos, para nos mantermos aquecidos, as pessoas entendem inatamente, é um material que vai do berço ao túmulo. O tecido é algo muito íntimo; tecido e pele, tecido como uma segunda pele. A diferença no meu trabalho nos últimos quinze anos é uma mudança de uma prática baseada em objetos para uma prática baseada em conversa por meio do tecido. É um apelo à materialidade compartilhada entre tecidos e seres humanos. Referências como The Whole Cloth [Mildred Constantine e Laurel Reuter] documentam a história do tecido na arte e nos mostram como o tecido funciona no âmbito social, clínico, político e assim por diante. As características intrínsecas e essenciais da materialidade do tecido e sua relação com as pessoas desempenharam um papel central no desenvolvimento da linguagem cotidiana. As palavras texto e têxtil têm da mesma raiz latina textere que significa tecer, fabricar. Termos têxteis e metáforas referentes a tecido estão profundamente enraizados na literatura e nas expressões cotidianas: o tecido social; comunidades descritas como muito entrelaçadas; ou, no outro extremo, desemaranhar; tecemos e bordamos histórias; nós desfiamos o rosário; floreamos e fabricamos a verdade; a vida é frequentemente descrita como uma tapeçaria; ao casar, nós juntamos os trapinhos. Temos até tópicos [chamados threads, em inglês, que significa fio] em sites ou grupos de notícias que podemos seguir ou acompanhar. Ainda me surpreende que esses termos ainda sejam usados na comunicação contemporânea. Nós sempre conhecemos o tecido. Ele sempre nos conheceu.

Jessica – Essas metáforas e práticas de fabricação de tecidos oferecem maneiras verdadeiramente ricas e texturizadas de conectar a arte e a vida. Você descreveu as indústrias têxteis em sua comunidade como uma influência inicial importante, mas também estou curiosa para saber: o que foi que o levou à arte?

Seamus – Tive uma professora de arte muito boa no ensino médio em Buncrana, Condado de Donegal, uma freira, a Irmã Enda. Embora se pudesse esperar que ser freira a tivesse tornado conservadora, ela era uma professora incrível, na verdade. Eu era muito tímido na época. A sala de artes da escola secundária era meu santuário. Como disse antes, depois do ensino médio, quando eu tinha 18 anos, fui para o GMIT estudar têxteis na escola de artes. Então, realmente, arte é tudo que eu sempre quis fazer.

Guilherme – Voltando ao projeto Lived Lives, o que você descobriu nesse processo, ou melhor, na ética do processo? Uma ética de amizade? Novos parâmetros entre ciência e arte? Um modelo de cuidado e confiança?

Seamus – Empatia seria a palavra motriz do processo, eu acho; empatia em oposição a simpatia. Simpatia é quando você sente pena de outra pessoa; já a empatia é quando você realmente se coloca no lugar da outra pessoa, ouve e sente sem julgamento. A confiança é essencial, a confiança entre os pesquisadores, uma grande confiança com as famílias de Lived Lives, muitas das quais me deram objetos preciosos da vida de seus filhos, bem como compartilharam comigo as coisas mais íntimas e detalhes da vida de seus filhos. Esse nível de confiança também se refere a abrir o processo de tomada de decisão, criando as circunstâncias para que as famílias participantes de Lived Lives se tornassem coprodutores e cocuradores na transposição de suas experiências privadas de perda para a esfera pública. Além de ouvi-las e convidá-las a fazer parte do processo de tomada de decisão, elas também fazem parte do processo de edição curatorial. Por exemplo, depois de cada evento, produzimos pequenos vídeos documentários. Em Lived Lives em Galway em 2009, filmamos as famílias envolvidas no desenvolvimento do trabalho e, no processo de edição, mostramos o material a elas, para que pudessem editar o que seria apresentado e ter voz e participação nesse processo também. Essa relação próxima entre mim, como artista, e as famílias, continua construindo a confiança. É um método experimentado e testado.

Salas de Acervo Participação das Famílias, Galway, 2009.

Sempre estive ciente do conteúdo altamente emocional de alguns desses pequenos trabalhos em vídeo. Até agora, as pessoas raramente querem fazer alguma edição. Eu me lembro que uma vez, nos estágios iniciais, em que eu estava mostrando a uma pessoa um momento de luto muito intenso, ela estava muito emocionada e depois chegou a brincar sobre fazer um retoque em seu braço, mas não disse nada sobre o conteúdo emocional.

Há também um grande senso de cuidado. As famílias cuidam umas das outras. Também entre nós, como investigadores, sempre que instalamos a exposição nos diferentes locais, cuidamos da equipe. Todos cuidam uns dos outros. Todos nós compartilhamos acomodação. Fazemos as refeições juntos, conversamos sobre os acontecimentos do dia. Esse espírito é muito importante; embora a equipe mais abrangente já esteja trabalhando nesse projeto há anos, há momentos em que também somos desafiados física e emocionalmente. É muito importante cuidarmos uns dos outros.

Jessica – E você? Imagino que todo esse processo deva ter sido intenso para você. O que você faz para se nutrir, para se cuidar?

Seamus – Inicialmente, quando começamos o processo de entrevistas, a cada seis entrevistas passávamos por acompanhamento psicológico. Minha esposa, Orla, é psicoterapeuta e ela me incentivou muito a falar bastante sobre isso, escrever, entender e processar tudo isso.

Às vezes, era difícil. É claro que você sempre pensa que poderia ser seu filho. No começo, eu voltava para casa depois das entrevistas, muitas vezes tarde da noite, e ia para o quarto dos meus filhos e tinha que ver que estavam respirando. É muito comovente. Você entende que isso pode acontecer com qualquer um, inclusive seus próprios filhos.

Jessica – Imagino como isso deve ter sido comovente.

Seamus – Alguns dos momentos mais pungentes e difíceis nesse processo aconteceram quando eu estava junto com as famílias nos quartos ou anexos das casas onde a morte ocorreu. Em geral, os locais da morte permaneceram inalterados, parados no tempo e congelados pela dor. Por estar presente, suas histórias tomaram conta de mim. Pessoalmente, foi desafiador, difícil e às vezes doloroso ficar sentado por horas enquanto um pai ou irmão descrevia como seu filho(a) ou irmão(ã) se matou e suas lutas pessoais para aprender a viver com essa perda. Foi uma demonstração de humildade eles terem se mostrado preparados, em vários estágios do luto, para compartilhar suas histórias e me dar objetos preciosos pertencentes a seus entes falecidos. Em muitas dessas histórias e envolvimentos familiares, percebi a essência da humanidade. Com isso quero dizer que essas pessoas voluntariamente convidaram dois estranhos para suas casa e reviveram o momento horrível em que seu parente se enforcou, atirou em si mesmo, se afogou ou teve uma overdose, alguns relataram ter entrado no quarto de seu filho e encontrá-lo morto. Essa é a dura realidade em que Lived Lives transita. Em muitas delas, a beleza e a tragédia da vida humana foram reveladas a mim. Esses momentos únicos de envolvimento interpessoal revelaram para mim a complexidade e fragilidade da existência humana e da comunicação. Foi um privilégio estar presente e testemunhar essa essência da humanidade, a capacidade de superar a tragédia pessoal para ajudar outras pessoas. O que me tornou humilde, e isso teve um efeito profundo na forma pela qual vejo o mundo, é como essas pessoas, do fundo de sua perda, conseguiam pensar nos outros. Esse processo me transformou fundamentalmente no sentido de que aprendi a ouvir o outro sem julgar. Como resultado direto dessas experiências, desenvolvi habilidades inesperadas que me permitem me relacionar de forma empática com as pessoas, ouvir entre a realidade e a imaginação. Descobri em mim uma capacidade de estar inteiramente presente para os outros em suas tristezas e de guardar um espaço seguro para que suas histórias surjam. Agora isso é tão importante na minha prática artística quanto a confecção de artefatos têxteis. Desenvolvi dentro de mim a capacidade de encontrar cada um dos participantes – e a mim mesmo – onde estávamos naquele momento da vida.

Mas talvez seja importante perguntar: o que aprendemos com tudo isso e o que podemos fazer? Estamos em um contexto muito perigoso. Na Irlanda, temos uma cultura de conscientização sobre o suicídio, mas não avançamos. Se não avançarmos de uma cultura de conscientização para uma cultura de conhecimento e ação, esse processo é inútil em muitos aspectos. As taxas de suicídio ainda estão aumentando, e a idade de alto risco é entre 14 e 23 anos, sendo que as estatísticas internacionais apontam para 75% de homens e 25% de mulheres. Acho que precisamos ensinar nossos filhos a serem mais resilientes no sentido de que, apesar da sensação do momento, podemos superar e, ainda, de que uma vez morto, não tem volta. Também precisamos tornar isso visível. Como podemos fazer isso usando o contexto do mundo da arte?

Making Stigma Visible, Hospital St. Patricks, Dublin, 2016. Fotos: Robert Ellis.
Making Stigma Visible, Hospital St. Patricks, Dublin, 2016. Fotos: Robert Ellis.

Guilherme – Você acha que essa metodologia poderia ser aplicada a outras questões também? Não apenas ao suicídio?

Seamus – Acho que essa metodologia pode ser aplicada a qualquer situação em que o estigma ou a vergonha atuem e perpetuem o silêncio. Ela cria um processo de compartilhamento e respeito mútuo, sem julgamento, especialmente entre grupos marginalizados que não têm voz. Acho que, se a metodologia não for transferível para outras áreas da vida humana, em que o estigma silencia a ação, eu teria que questioná-la. Na Irlanda, temos um histórico ruim de reconhecimento de pessoas com problemas de saúde mental, elas não têm voz, houve poucas ações significativas para tentar compreender a beleza e o poder dessa fragilidade.

Lived Lives é uma exposição sobre a morte, mas também sobre a vida, como as famílias vivem depois dela. Não gosto muito do termo exposição, pois sugere algo passivo. O que fazemos são eventos; é um processo de doação, não de consumo. Fazemos com que o público toque as obras, deixe sua marca, toque nas obras artísticas, ouça e sinta as histórias, compartilhe essa experiência conosco diante das câmeras, em público.

Como artistas, trabalhamos muito na sociedade. Precisamos reformular nossas questões, como observa o crítico Declan McGonagle, em termos não do que são obras de arte, mas sim do que as obras de arte podem fazer na sociedade. Parte disso também se refere ao desenvolvimento de uma linguagem que as pessoas de fora do mundo da arte possam entender. O mundo precisa de artistas. Mas precisamos abordar o elitismo especialmente com relação à linguagem que usamos, já que uma linguagem muito complicada se desenvolveu em torno da nossa prática.

Jessica – Da ciência também…

Guilherme – Sim, toda profissão tem sua linguagem… o conhecimento é estruturado pela linguagem. Mas talvez através do seu híbrido arte/ciência, você possa negar o domínio de cada um, para criar outro…

Seamus – Acho que é importante para os artistas e mesmo para os cientistas falar para fora de seu próprio setor/área, falar além das fronteiras, serem ouvidos na sociedade em geral, bem como em sua própria cultura. Eu me inclinaria para uma linguagem que seja significativa em outros setores da sociedade, mas que ainda articulasse o valor e o significado da prática artística. Quando Kevin e eu começamos a trabalhar juntos, percebemos rapidamente que tínhamos uma área de pesquisa compartilhada, mas nossas linguagens e abordagens eram completamente diferentes. Ficamos imaginando se, caso saíssemos do conforto e familiaridade de nossas áreas e linguagem, poderíamos criar uma linguagem alternativa para articular a atualidade terrível do suicídio de jovens na Irlanda. Sabíamos que tínhamos um assunto de pesquisa comum, ou seja, o suicídio de jovens do sexo masculino, mas lutamos para entender as linguagens oficiais da arte e da ciência. Isso foi muito importante para nós dois. A curadora Mary Jane Jacob, de Chicago, fala sobre ser uma pessoa alheia – trabalhar fora do convencional, mas trazendo o convencional e o não convencional para um diálogo ativo, com uma escuta empática e sem julgamento, elaborando coletivamente um novo diálogo.5 Eu diria que esse novo diálogo ou forma de comunicação em Lived Lives vem, em primeiro lugar, de uma tradição estética; em segundo lugar, é influenciado por métodos científicos/empíricos; e, em terceiro lugar, está enraizado na “vida” que opera ao lado da teoria. Não está contido na teoria, mas busca trazer à tona conversas abafadas e conhecimento tácito. Em seu ensaio The Real Experiment Continues, Jan Estep afirma: “Existem dois eixos nos quais a arte se move: em direção à arte e em direção à vida”.6 Lived Lives funciona entre esses dois eixos, ora tendendo para a arte, ora pendendo para as situações da vida. Pressionar em uma direção torna a arte um fenômeno rarefeito, separado da vida e com propósitos independentes. Pressionar na outra direção, como observa Jan Estep, faz “a arte confundir cada vez mais as fronteiras entre ela e a vida, desafiando nossa capacidade de distingui-las”.7

Minha prática é dialógica no sentido de que tece a importância das diferentes conversas que fluem por ela, as linhas de tempo, a participação ativa do público e os próprios participantes se tornam agentes de mudança. Eu vejo meu trabalho como uma espécie de performance ritual. Há uma jornada física ao percorrer e tocar a obra de arte – com começo, meio e fim – e há uma jornada emocional – sentir em vez de pensar, ver o mundo de uma nova forma. As obras não estão solidificadas como uma prova de conceito. Nem são cientificamente comprovadas. São momentos fluidos no tempo, um espaço intermediário onde as tensões entre o material tangível e o trabalho artesanal e o significado conceitual e simbólico do tecido surgem. No entanto, o envolvimento pessoal e às vezes visceral das famílias com as obras pode ser descrito como uma espécie de agulha que perfura aquele momento ou o que Barthes chamaria de punctum, uma ação vivida – ou, nas palavras de Levinas, “a agulha toca e perfura a vida”.8 É o ponto em que te fura. Poderia ser qualquer coisa, mas depois de furado, um canal ou duto se abre e você deve processá-lo e agir a seu respeito. A experiência estética de Lived Lives tem a qualidade de um ritual ou relíquia, mas sua qualidade principal é a maneira pela qual é comunicativa. A prática pode levar as pessoas a uma posição empática, criando as circunstâncias para compreender, refletir e questionar a perda dos outros, sem julgamento em um espaço seguro e digno.

Para mais informações sobre o projeto Lived Lives, acesse: www.livedlivesproject.com

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Seamus McGuinness
Artista, pesquisador e educador irlandês. Ele vive e trabalha no Condado de Clare, na costa oeste da Irlanda, e dá palestras sobre Têxteis Contemporâneos no Instituto de Tecnologia Galway-Mayo. Sua prática está profundamente enraizada na vida e no tecido, englobando pesquisa transdisciplinar, intervenção social duradoura, instalações interativas, conversas públicas e atos democráticos coletivos. Em 2010, obteve o título de PhD devido ao projeto Lived Lives, pela Faculdade de Medicina, University College Dublin. Recebeu duas bolsas do Wellcome Trust, em 2015 e 2018, para dar continuidade a essa pesquisa.

Referências Adicionais:

JEFFERIES, Janis. (Org.) Reinventing Textiles: Gender and Identity. V. 2. Winchester: Telos Publications, 2001.

LIVINGSTONE, Joan; PLOOF, John. (Orgs.) The Object of Labour: Art, Cloth, and Cultural Production. Chicago: School of the Art Institute of Chicago Press, 2007.

MCGONAGLE, Declan. Passive to Active Citzenship: A Role for the Arts”. In: Bologna in Context Conference, 2010.  Dublin, Irlanda.

PARKER, Rosaline. The Subversive Stitch: Embroidery and the Making of the Feminine. Londres: Women’s Art Press, 1984


1 SAMPLE, Ian. “Is there Lightness After Death?”. The Guardian. 19 fev. 2004, https://www.theguardian.com/film/2004”/feb/19/science.science [Acesso em 10 jul. 2020]

2 WINZEN, Matthew. “Living Archives”. In: WINZEN, Matthew; SCHAFFNER, Ingrid (Orgs.). Deep Storage. Munique: Prestel, 1999, p.44.

3 Na Irlanda, as comunidades que compartilham esse modo de vida nômade são conhecidas como comunidade cigana, composta por pessoas de vários países europeus e viajantes. Ambas as comunidades sofreram uma longa história de discriminação múltipla e interseccional, incluindo pobreza, desemprego, falta de oportunidade educacional, expectativa de vida reduzida, preconceito cultural e estereótipos sociais. Desde a sua fundação em 1985, o Centro Cigano e Viajante Pavee Point reconheceu a necessidade de solidariedade entre as comunidades ciganas e irlandesas com base nas suas experiências partilhadas de racismo e exclusão social. Para obter mais informações: https://www.drugsandalcohol.ie/31029/1/National_Traveller_and_Roma_Inclusion_Strategy_2017-2021.pdf [Acesso em ago. 2020]

4 Lived Lives: From Tory Island to Swift’s Asylum (2017-2019) Epub, 2020, p. 69 [Acesso ao site Lived www.livedlivesproject.com em outubro 2020]

5 Conversa entre Mary Jane Jacob e Seamus McGuinness. Para uma breve visão geral da prática de Mary Jane, consulte MOLNÁR, Monika; TRAMPE, Tanja. “Public Art: Consequences of a Gesture? An Interview with Mary Jane Jacob”. In: Oncurating: On Artistic and Curatorial Authorship. Edição 19, 2013 https://www.on-curating.org/issue-19-reader/public-art-consequences-of-a-gesture-an-interview-with-mary-jane-jacob.html#.XzrvE5NKiuW [Acesso em ago. 2020]

6 ESTEP, Jan. “The Real Experiment Continues”. In: Breaking Ground: Art in the Life World Research Papers. Dublin: Ballymun, 2008, p. 7.

7 Ibid.

8 BARTHES, Roland. Mythologies. Trad. de A. Lavers. Londres: Vintage, 1993. p.23;
e LEVINAS, Emmanuel. Outside the subject. Trad. de M.B. Smith. Califórnia: Stanford University Press, 1994. p.38.