Arthur Bispo do Rosário,s/data. Casinha Prateada, Madeira e papelão. 10cm X34cm X25 cm. Col. Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea.

CASA B: Programa de Residência do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea

Diana Kolker e Raquel Fernandes

Na contemporaneidade, o compartilhamento de práticas artísticas experimentais se sobrepõe às noções de arte centradas no objeto e na individualidade do artista. Desde a década de 1960, novas práticas artísticas, curatoriais e educacionais foram dando forma a outros modos de se relacionar com a arte que se contrapõem ao modelo expositivo moderno e seu objeto no cubo branco. A produção artística passou a evocar interações desde o território em sua materialidade à produção desmaterializada de subjetividades. Nas palavras de Frederico Morais: “Da apropriação de objetos, partiu-se para apropriação de áreas geográficas ou poéticas simplesmente de situações.”1 As residências de artistas instituem, nesse sentido, novos espaços de formação de artistas, produção e difusão da arte, tendo como principais pressupostos a experiência significativa com os territórios e seus habitantes, através de processos que privilegiam a presença, a troca e interação.

Nas últimas décadas, o mapa das artes anunciou o fim da divisão entre os centros, que ditavam os parâmetros de legitimação e inserção da produção artística, e as periferias, das quais se esperava o consumo e reprodução desses modelos. Uma nova geografia da arte se desenhou colocando em xeque a ideia de uma arte universal, quebrando as narrativas hegemônicas e colonialistas que exotizam as culturas ditas periféricas, para dar lugar à criação de múltiplas narrativas descentralizadas. Todavia, conforme Guilherme Vergara: “podemos reconhecer a resistência poética da arte convivendo com a sua institucionalização ou espetacularização, a macro com uma micro geografia de acontecimentos solidários”.2

Nesse contexto, as residências artísticas despontaram no sistema das artes em escala global. A difusão deste tipo de programa coincidiu com o período pós-guerra fria, marcado pelo avanço do modelo capitalista neoliberal no globo. Recentemente, assistimos uma proliferação de programas promovidos e subsidiados por instituições privadas, de pequeno a grande porte e, em menor proporção, por órgãos públicos. Podemos falar de um certo modismo, de uma captura pelo mercado, seus portfólios e networks. Paradoxalmente, as residências de artistas, que remetem a um fixar-se no território, se inserem em um movimento mais amplo de mobilidade, descentramento e deslocamento, na lógica da circulação do capital. Esse paradoxo se reflete ainda na distribuição de privilégios sobre quem pode circular. Ainda se conservam nas estruturas sociais o colonialismo, o elitismo, o racismo, o machismo que nos constituiu historicamente operando uma distinção de mundos vividos e acessados. Isto também se reflete sobre quem consegue preencher o campo “residência artística” em seu portfólio.

Por que realizar um programa de residências no Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea? Como a Casa B se insere nessa geografia das artes? O mBrac é simultaneamente uma instituição de arte contemporânea e um equipamento municipal que faz parte do Instituto de Assistência à Saúde Mental Juliano Moreira. Único museu público da Zona Oeste do Rio de Janeiro, foi criado com o objetivo de salvaguardar e difundir a obra de Arthur Bispo do Rosário, que viveu cerca de cinquenta anos como interno na Colônia Juliano Moreira, no período anterior à reforma psiquiátrica. Em sua gestão mais recente, o Museu ampliou sua missão. Através dos programas desenvolvidos pela Escola Livre de Artes, dentre os quais se inclui o programa de residências Casa B, busca consolidar-se como um museu social comunitário, desenvolvendo plataformas de formação e programas públicos voltados para artistas, educadora(e)s, curadora(e)s, profissionais e usuária(o)s dos serviços de saúde e moradora(e)s da região promovendo novas perspectivas sobre arte, educação e cuidado.


Arthur Bispo do Rosário. Como é que eu devo construir um muro nos fundos da minha casa, s/data. Concreto, madeira e vidro, 11 x 50 cm. Col. Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea.


Daniel Murgel. Como fazer as paredes da minha casa. Residência artística na ocasião da exposição “Play” com a curadoria de Marta Mestre e Fernanda Pequeno, 2013. Foto: Daniel Murgel

A primeira experiência com um artista residente no museu ocorreu no Polo Experimental, centro de convivência, educação e cultura para os usuários da saúde mental, suas famílias e a comunidade da Colônia, gerido pelo mBrac, no contexto da exposição Play, organizada pelas curadoras Marta Mestre e Fernanda Pequeno, em 2013. Daniel Murgel tomou como referência a obra Como é que devo construir o muro da minha casa, de Bispo do Rosário, para realizar a proposta Como fazer as paredes de minha casa, a construção de uma ruína programada. Os tijolos da casa eram feitos da própria terra da Colônia Juliano Moreira. Com a ajuda de usuários da rede de saúde mental e moradores da comunidade, contratados como auxiliares, fizeram os tijolos e ergueram as paredes. No pátio do Polo, a obra (em seu duplo sentido) estava sujeita às ações climáticas que criam um tempo próprio de sua permanência. Passados quatro anos, as paredes continuam firmes, mas seus prolongamentos no tempo se dão através da imaterialidade das relações estabelecidas entre o artista, os frequentadores do espaço e a instituição, que abriu as portas para a construção desse programa cuja potência máxima está nessa possibilidade de ampliar os encontros, criar situações de convivência e trocas de experiências, tornar-se casa.3

Em Janeiro de 2015, a artista argentina Claudia del Rio nos solicitou uma imersão na Colônia. Convidamos outra artista, a carioca Aleta Valente, para desenvolver seu projeto no mesmo período. Com trajetórias de vida e de produção muito distintas, cada uma viveu essa experiência de forma heterogênea e buscou modos singulares de enfrentamento aos ecos do manicômio. Ainda em 2015, recebemos o artista baiano Willyams Martins que ficou uma semana em residência para desenvolver seus trabalhos, uma espécie de “pele” da Colônia revelada através de uma técnica de decalcagem das paredes distribuídas pelo território e que fizeram parte da exposição Um canto dois sertões, Bispo do Rosário e os 90 anos da Colônia Juliano Moreira com curadoria de Marcelo Campos. Ele descobriu com o seu fazer artístico, ao decupar as paredes da antiga colônia, os desenhos e escritos de Bispo, cobertos por muitas camadas de tinta nas paredes da cela onde viveu – para nosso espanto, toda desenhada e escrita.


Fernanda Magalhães com Ana Lúcia. Grassa Crua, Performance por ocasião da sua residência na exposição “Das virgens em cardumes e a cor das auras”, 2016. Foto: Wilton Montenegro.

Em 2016, as propostas de residência foram ganhando corpo. Em parceria com o Museu de Arte do Rio (MAR), no âmbito da exposição Lugares do delírio, com a curadoria de Tania Rivera, foram realizadas três residências. Os artistas Solon Ribeiro, Gustavo Speridião e Lívia Flores produziram trabalhos em colaboração com os frequentadores do Polo Experimental. Neste mesmo ano, novas residências artísticas foram propostas por ocasião da exposição Das Virgens em Cardumes e a cor das Auras, realizada no mBrac com curadoria de Daniela Labra, apresentando Bispo em seu aspecto performático, juntamente com diversos artistas do cenário contemporâneo que trabalham nesta linguagem. Fernanda Magalhães desenvolveu sua ação junto às mulheres internas de longa duração, dentro dos pavilhões que ainda conservam características asilares, resquícios do velho hospício. Através do toque, da dança, da música, do uso de objetos, do brincar com fotografias uma conexão se estabeleceu. Vistas como iguais, sem a estética médica estereotipada, despiram-se, mesmo que por um instante, de mortificações subjetivas e foram capazes de interagir com novos estímulos e assim apontar novas possibilidades de abordagem clínica, que não necessitam estar limitadas ao estatuto da palavra – um legado dos tratamentos psicanalíticos. O resultado dessas ações ao longo de toda temporada da exposição foi surpreendente e impactante, e nos brindou com momentos de magia como na ação azul azul azul e azul de Eleonora Fabião.4


Rafael Barros, Projeto Ocupação Casa B, 2016. Foto Silvia Lage.


Fabiana Vinagre. Projeto Ocupação Casa B, 2016. Foto Silvia Lage.


Intervenção de Annaline Curado. Projeto Ocupação Casa B, 2016. Foto Silvia Lage.

A vivência dessas práticas, seus resultados para os artistas e os impactos de suas ações que recolhemos junto aos participantes nos levaram a pensar na necessidade da estruturação de um programa de residência do Museu e assim iniciamos (com coordenação do curador Ricardo Resende e a gerente de educação Bianca Bernardo) a formulação do programa de Residência Casa B. Dessa iniciativa surgiu, a partir do edital de fomento da FUNARTE de 2016, a primeira convocatória para o projeto de Ocupação Casa B, onde foram selecionados Annaline Curado, Fabiana Vinagre, Rafael Barros, Marcelo Correa e Paulo Meira, um de cada região – Norte, Nordeste, CentroOeste, Sudeste e Sul do país, que ocorreu em outubro de 2016.


Jacqueline Gimenes com Luiz Carlos Marques (Atelier Gaia). Residência BWV988: 30 Possibilidades de Transgressão, Experiência B, 2017 Foto: João Gilberto.


Fábio Carvalho e Rodrigo Mogiz com Patricia Ruth (Atelier Gaia). Residência Almofadinhas, Experiência B, 2018. Foto: Karoline Ruthes.

Em 2017, o programa de Residência Casa B inaugurou uma nova etapa, coordenada por Ricardo Resende e a gerente de educação Diana Kolker, ampliando sua atuação para pesquisas e poéticas relacionadas às práticas artísticas, educativas e curatoriais através da relação com a comunidade, o contato com o acervo de Arthur Bispo do Rosário, a experiência imersiva no território e a participação nos programas desenvolvidos pelo Museu.5 Nesse sentido, destaca-se o papel da residência artística como uma plataforma de formação artística, para além dos espaços acadêmicos e tradicionais. Formação intensiva, mas que não tem começo nem fim. Aprendemos com a experiência de Daniel Murgel que as paredes que constroem a residência devem ser feitas desta terra, deste chão. Desejamos que na transformação deste chão em arte colaboremos para a ruína do passado manicomial e colonial. As contingências e singularidades que constituem o território do qual o Museu é parte carregam a potência de produzir novas institucionalidades, conceitos, políticas curatoriais, práticas pedagógicas e artísticas que se materializam através de um movimento de afetação recíproca: o museu como uma ferramenta de transformação social, mas que também se deixa afetar e transformar pela sociedade e pelo território do qual é parte. Nesse sentido, nos perguntamos como um museu de arte contemporânea, que funciona num antigo manicômio, pode ser um espaço de liberdade, criação, contato, afeto, potência, intimidade e cuidado? Um espaço potente para a criação de práticas de cuidado que se somem (ou ultrapassem) aos tratamentos biomédicos e como esse encontro pode, reciprocamente, afetar os campos e práticas em torno das artes? Como um museu pode tornar-se casa?

 

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Diana Kolker
Gerente de educação do museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea. Mestre no Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes na Universidade Federal Fluminense (UFF). Especialista em pedagogia da arte pela UFRGS, graduada em história pela PUCRS. Integrante e fundadora do Coletivo E, desenvolve projetos transdisciplinares e colaborativos, borrando as fronteiras entre arte, educação, história, filosofia, saúde etc. Concebeu e coordenou diversos cursos e programas voltados para formação de professores, mediadores e artistas, em colaboração com instituições como a Bienal do Mercosul, o MAC Niterói, o Instituto Mesa, a Casa Daros, a Fundação Iberê Camargo, o Museu de Artes do Rio Grande do Sul, etc. Co -coordenou a Ação Educativa Séculos Indígenas no Brasil, premiada pela Comissão dos Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal.

Raquel Fernandes
Diretora do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea. Possui graduação em cinema pela Universidade Estácio de Sá (2007) e Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1991). MBA em Gestão de Museus pela Universidade Cândido Mendes (2016) e especialização em Psicanálise, pela Universidade Santa Úrsula (2000).
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1 MORAIS, Frederico. “Contra a arte afluente: o corpo é o motor da “obra”. In: BASBAUM, Ricardo (Org.) Arte contemporânea brasileira: texturas, dicções, ficções, estratégias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, 69-70.

2 VERGARA, Guilherme. “Dilemas éticos do lugar da arte contemporânea. Acontecimentos solidários de múltiplas vozes.” In: Visualidades, Goiânia v 11, n.1, p.59-81, jan-jun 2013, 67.

3 Em abril, inauguramos as exposições “As paredes de minha casa | Experiência B”, apresentando trabalhos e imagens do processo da residência do artista Daniel Murgel, em relação com obras de Bispo do Rosário, incluindo “Como que devo fazer um muro nos fundos de minha casa”.

4 Esta publicação inclui ensaios e/ou vídeos dos artistas Daniel Murgel, Lívia Flores, Fernanda Magalhães e Eleonora Fabião: http://institutomesa.org/revistamesa/edicoes/5/portfolio/projetos-e-residencias-artisticas/

5 Em 2018, contamos com a residência do pianista e diretor de arte Gustavo Sampaio, a bailarina Jacqueline Gimenes e o artista visual François Ande, que realizam o projeto Residência BWV988: 30 Possibilidades de Transgressão. O bailarino Marcio Cunha realizou uma residência que resultou no espetáculo de dança inspirado em Arthur Bispo do Rosário. O pesquisador Davi Lopes pesquisou o acervo do mBrac com foco no estandarte “Eu preciso dessas palavras escrita.” A mais recente residência, realizada em abril de 2018, pelos artistas Rick Rodrigues, Fábio Carvalho e Rodrigo Mogiz, envolveu a realização de oficinas de bordado para a turma da Oficina B de Bordado e Costura, da Escola Livre de Artes do Museu Bispo do Rosário e a exposição Almofadinhas | Experiência B, com curadoria de Diana Kolker e Ricardo Resende, que apresentou as obras dos artistas, algumas delas produzidas no período da residência, em diálogo com a produção de Arthur Bispo do Rosário e um estandarte produzido na Oficina B de Bordado e Costura. Uma experiência imersiva de formação que envolveu simultaneamente pesquisa e práticas artísticas, educativas e curatorias, numa zona de convergência entre arte e saúde.