Hoje é o dia do sonho: Sarau poético musical

Instituto Municipal Nise da Silveira, Engenho de Dentro, 5 de outubro de 2017
Coordenação: Loucura Suburbana e Espaço Aberto ao Tempo
Ensaio Fotográfico: Denise Adams
Texto: Izabela Pucu

O nome do sarau foi tomado emprestado de um cartaz feito pela artista brasileira Cristina Machado, que estava fixado na parede da sala em que nos reunimos com Ariadne de Moura Mendes, Lula Wanderley e Gina Ferreira para pensar a atividade que aconteceria no Instituto Municipal Nise da Silveira, local em que eles trabalham, como parte do encontro Cuidado como método # 2. No cartaz se lê, em letras de imprensa vermelhas – Hoje é o dia do sonho. E foi isso o que decidimos fazer juntos: estabelecer uma ordem extraordinária na rotina do hospital, abrir uma brecha no tempo-espaço daquela instituição; realizar um acontecimento que pusesse o sonho (ou a arte) na ordem do dia, que tomasse a festa, a música e a poesia como dispositivos de aproximação – o que já vinha sendo praticado por eles nos seus processos de trabalho, também com efeitos terapêuticos, no sentido mais amplo (subjetivo, psicológico e social).

Como aconteceu em outros processos do encontro Cuidado como método #2, a ideia central do Sarau era inverter os vetores e dar o protagonismo aos pacientes, sem deixar de cuidar dos cuidadores, de apoiar e dar visibilidade ao trabalho de gente como Ariadne, Lula, Gina e seus companheiros, que há mais de 20 anos vêm trabalhando em diferentes frentes, mas com os mesmos desafios e precariedades, dentro do Instituto Municipal Nise da Silveira – local em que coexistem, nem sempre pacificamente, modelos de vida e trabalho anteriores e posteriores ao movimento pela reforma psiquiátrica.

Nesse sentido, depois um amplo planejamento, nós fomos acolhidos alguns dias antes do Sarau – a coordenação do projeto arte_cuidado e nossos parceiros escoceses – na oficina musical ministrada por Leandro Freixo, que também é o responsável pelos ensaios do conjunto Sistema Nervoso Alterado Jazz Band, sediado no Espaço Aberto ao Tempo (EAT), trabalho coordenado por Lula Wanderley; e na oficina de percussão do Bloco Carnavalesco e Ponto de Cultura Loucura Suburbana, trabalho coordenado por Ariadne de Moura Mendes, com a coordenação musical de Abel Luiz e de Fernando Mesquyta como mestre de bateria.

 

Nos processos vivenciados com os integrantes do Loucura Suburbana e do EAT, nós, os supostamente normais, é que éramos os desabilitados. Éramos nós que ocupávamos com nossos corpos o lugar do não saber – não saber tocar, e no caso dos escoceses não saber falar sequer a nossa língua, e também do não saber dançar no ritmo do samba, que os passistas e ritmistas do Loucura, profissionais e pacientes do hospital, dominavam por completo. Lembro que a gente errava e acertava juntos e isso desfazia hierarquias estabelecidas entre aqueles que estão e os que não estão sendo tratados, entre quem cuida e quem é cuidado.

Na oficina de música do EAT, participamos de um dos ensaios para o Sarau. E ali também ficou evidente essa permuta de lugares; fomos recebidos por um grupo claramente entrosado, que havia escolhido ensaiar músicas em inglês para incluir nossos visitantes. Então eram os pacientes que performavam a inclusão daqueles que eram estrangeiros, que buscavam estabelecer um vínculo com as pessoas e com o mundo delas a partir do uso de sua língua e da linguagem musical que, de certa forma, é um código universal.

No dia do Sarau, fomos contemplados também com uma sessão coletiva do set terapêutico da Rosácea, uma da série de proposições Relaxações criadas por Lygia Clark em 1974/75. A proposta coletiva, interpretada pela Gina Ferreira a partir da sua pesquisa sobre o set terapêutico de Clark chamado Estruturação do Self, foi realizada em colaboração com a bailarina e terapeuta Ana Vitória Freire e com a participação da museóloga e terapeuta Márcia Proença. Um relato deste processo consta na sessão diálogos da presente revista.1

 

O Sarau propriamente dito foi realizado com a coordenação do Bloco Carnavalesco Loucura Suburbana e envolveu, além de integrantes Grupo de Ações Poéticas Sistema Nervoso Alterado Jazz Band, oriundo do EAT, ritmistas, passistas, cantores e compositores do Loucura Suburbana, convidados da Oficina Literária do Centro de Atenção Psicossocial Clarice Lispector e da Banda 762, formada por pacientes e profissionais da Colônia Juliano Moreira, artistas do Atelier Gaia e funcionários do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea. Foram apresentados poemas, esquetes teatrais, houve música, dança e outras intervenções.

Os conjuntos de música ligados a diferentes serviços e processos se reuniram pela primeira vez em décadas de trabalho. Foi bonito ver que muitos integrantes se conheciam e até participavam de mais de um dos grupos. Ficou visível de modo muito especial e sutil a rede que conecta essas pessoas nos seus diferentes contextos e práticas, apontando para a conquista de mobilidade e autonomia pelos pacientes e usuários do serviço de saúde mental, seu protagonismo no processo de reinvenção de sua relação com mundo e suas próprias subjetividades por meio da arte, principal legado terapêutico, cultural e social de tais práticas.

 

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Denise Adams
É artista, fotógrafa e educadora. Vive e trabalha no Rio de Janeiro. Mestre no Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes da UFF. Graduada em Cinema pela FAAP. Trabalhou nos jornais A Folha e O Estado de São Paulo e na Revista Época. Coordenou oficinas no Instituto Tomie Ohtake, no Sesc São Paulo, entre outros. Trabalhou na Fundação Bienal São Paulo (2010-2013). Utilizando a fotografia e o vídeo como suporte, sua pesquisa está relacionada ao reconhecimento e construção dos territórios e seus contornos. Participou de exposições no Centro Cultural São Paulo, Centro Cultural da Justiça Federal RJ, entre outros.

Izabela Pucu
Artista, curadora, pesquisadora, gestora cultural e editora. Doutora em História e Crítica da Arte PPGAV/EBA/UFRJ. Atual Coordenadora de Educação do Museu de Arte do Rio. Co-coordenadora do projeto arte_cuidado. Diretora e Curadora do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica (2014-2016). Professora substituta do Instituto de Artes da UERJ (2008 a 2012). Pesquisadora do livro Mario Pedrosa: Primary Documents, orgs. Glória Ferreira e Paulo Herkenhoff (MoMA/NY, 2016), co-organizou o livro Roberto Pontual: Obra crítica (Prefeitura do Rio/Azougue, 2013), entre outros. Curadora de exposições, tais como “Bandeiras na praça Tiradentes” (2014), “Osmar Dillon: não objetos poéticos” (2015), “A lágrima é só o suor do cérebro”, de Gustavo Speridião (2016).

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1A Rosácea no encontro Cuidado como método. Um diálogo com Gina Ferreira e Ana Vitória [link]