Euan e Jim: Workshop Sensorial, 2017. Foto: Steve Hollingsworth

Um de nós. Um de nós: Encontrando a igualdade na diferença

Alison Stirling

Tenho uma vaga lembrança de estar subindo um morro íngreme em direção a um hospital dilapidado.1 Acho que tenho uns oito anos de idade. Minha memória fica confusa. Troca. Estou em uma sala grande, com fileiras de algo que se assemelha a pequenas jaulas com pés de apoio. Eu vim direto do sol, e a sala está escura. Meus olhos se acostumam; eu vejo que há crianças da minha idade mais ou menos com corpos retorcidos deitadas nessas jaulas. Eu vou de jaula em jaula me inclinando para tocar uma mão, um rosto e para oferecer alguma forma de conforto, a todos nós.

As jaulas eram, na verdade, camas hospitalares com as grades levantadas. Do ponto de vista de uma criança pequena, olhar para cima e ver os braços de outras crianças esticados por entre as barras das grades das camas fez aquelas camas parecerem jaulas.

Estamos em 2016 e eu estou no Rio, no pátio de um hospital psiquiátrico. Um homem com roupas sujas vem, cambaleante, em minha direção segurando uma boneca maltrapilha. Sua mãe idosa vem um pouco atrás dele. Ele abre os braços e me envolve em um abraço. A mãe dele sorri.

Estou em Glasgow. Essa é uma memória persistente de 45 anos atrás, de oito anos atrás, de cinco dias atrás, de ontem. Uma mulher em uma cadeira de rodas se senta em frente a mim. Ela está com a mão na boca e seu corpo pende para o lado. Ela está se sacudindo, perdida no ritmo de seu próprio movimento. Ela dá umas risadinhas. Ela tenta me alcançar. Seguramos a mão uma da outra. Não há diferença entre nós.2

No cuidado, o meu estar com outra pessoa envolve estar para ela também; eu estou para ela na sua luta para crescer e ser ela mesma. Sinto que ela existe no “mesmo nível” que eu. Eu não sou condescendente com ela (não me coloco acima dela nem a menosprezo) tampouco a idolatro (não a coloco acima de mim nem a vejo como superior). Em vez disso, existimos em um nível de igualdade.3

O cuidado não é algo que existe isoladamente, não é algo que acontece a uma outra pessoa e, como tal, precisamos entender o cuidado e o cuidar com uma mente mais aberta, como algo que inevitavelmente temos em comum.

Em ambientes de cuidado – tais como casas de repouso para idosos e centros para pessoas com dificuldades de aprendizagem/questões de saúde mental etc. –, respeitar as diferentes experiências, ouvir e aprender um com o outro pode construir a mudança necessária na forma como o cuidado é oferecido. Nesse contexto, a arte pode ser uma ferramenta poderosa ao criar “um espaço” destituído de hierarquias, no qual todos os envolvidos trabalham em direção a uma meta criativa compartilhada, fundindo experiência, arte e conhecimento para criar um entendimento novo e mais relevante de nós mesmos e do outro.

A arte é… um meio genuinamente humano de mudança revolucionária, no sentido de transformar um mundo doente em um mundo saudável.4

A Artlink é uma organização artística da Escócia. Ao longo dos últimos trinta anos, suas práticas se desenvolveram em resposta às necessidades dos usuários do serviço e dos profissionais do cuidado e às circunstâncias políticas e sociais em constante mudança do Reino Unido. A Artlink trabalha dentro de sistemas de cuidado junto a indivíduos com deficiências cognitivas profundas e com a saúde mental comprometida de forma duradoura. Apesar dos esforços dos profissionais do cuidado e das instituições, muitos desses indivíduos são marginalizados e têm suas vozes abafadas pelo seu nível de deficiência e pela complexidade do cuidado de que necessitam. 5 Além disso, para aqueles que cuidam, o pouco prestígio conferido a essa vocação resulta geralmente em baixos salários e condições de trabalho estressantes.

A Artlink oferece suporte a uma variedade de programações de arte dentro de comunidades e instituições de cuidado, incluindo desde projetos colaborativos de longo prazo até eventos individuais e workshops semanais. Em 2010, a Artlink lançou a iniciativa The Ideas Team com o objetivo de explorar o uso de práticas de arte contemporânea para tratar das necessidades específicas de pessoas com deficiências cognitivas profundas. The Ideas Team fica no Centro Cherry Road, um centro público diurno para adultos com autismo e com deficiências cognitivas e de desenvolvimento complexas.6

 
Fig 1. Treinamento de equipe com Miriam Walsh – Com quem você acha que trabalha? 2014. Foto: Alison Stirling
Fig 2. Treinamento de equipe com Steve Hollingsworth, 2018. Foto: Steve Hollingsworth

O objetivo da iniciativa era questionar hierarquias dentro dos serviços de cuidado para pessoas com deficiências cognitivas profundas e buscar soluções fora dos modelos tradicionais de terapia e cuidado. Procuramos criar um “campo” mais nivelado onde aqueles que cuidam e são cuidados fossem respeitados e valorizados por seu conhecimento e experiência.

Em geral, cada equipe do Ideas Team é conduzida por um artista, um membro da equipe de cuidado e um familiar que trabalham diretamente com uma pessoa com deficiências cognitivas profundas. Eles identificam juntos uma meta, algo simples e alcançável com que possam trabalhar em conjunto e solucionar – por exemplo, identificar o que prende a atenção de alguém e o estimula a sentar e se concentrar por mais que um minuto.

No passado, à medida que as ideias se formavam, a equipe se ampliava para incluir psicólogos, engenheiros e todos que pudessem dar respostas muito diferentes às questões que surgiam dessa nova aprendizagem.

O mundo de uma pessoa com deficiências cognitivas complexas costuma ser regido por quem cuida dela. Cada detalhe do seu universo é determinado por outra pessoa, como, por exemplo, as atividades das quais ela vai participar, onde vai se sentar, quando vai comer e dormir etc. Desde o início, nosso principal problema não era como engajar a pessoa com deficiências cognitivas profundas, mas como engajar os profissionais de cuidado sobrecarregados que ofereciam suporte a eles. Não conseguiríamos engajar adequadamente um sem o outro. Em primeiro lugar, tivemos que alterar suas preconcepções sobre arte e chamar atenção para o papel que o pensamento criativo poderia ter na formação de uma percepção maior na pessoa com quem trabalhavam. Começamos com uma série de eventos de treinamento (contínuo) que permitiam aos profissionais de cuidado assumir diferentes perspectivas, por exemplo: estimulamos os profissionais de cuidado a desacelerar suas ações e vozes para permitir que aqueles que eram cuidados pudessem absorver melhor o que estava acontecendo ao seu redor; colocamos aulas de relaxamento que permitiram que a equipe se perdesse no presente; criamos diários de som nos quais a equipe de cuidado descrevia os detalhes dos sons que cercavam a pessoa com quem trabalhavam.

Os artistas trabalhavam com o indivíduo, lentamente introduzindo novas experiências sensoriais e sempre incluindo o profissional de cuidado para que pudessem observar e discutir as mínimas interações, buscando o momento em que houvesse uma conexão real.

 
Fig 3. Diários Sensoriais– Wendy Jacob, 2015. Foto: Miriam Walsh
Fig 4. Brincando com Detalhes – Fiona, Fran e Kevin 2015. Foto: Kevin Hutchison McPhee

Quanto mais se aprendia com uma pessoa, mais isso embasava o treinamento dado à equipe de cuidado. As mudanças começaram a acontecer muito lentamente. Mudança em como todos eles percebiam a capacidade; mudança na confiança; mudança na autoestima; mudança nas relações entre todos os envolvidos, aumentando o respeito pela forma de ser do outro.

The Ideas Team se tornou um espaço para colaboração e experimentação criativa, desenvolvendo novos trabalhos em resposta a essa nova aprendizagem que agora se estende por anos.

A alegria independente das pessoas foi percebida nos detalhes das ações e interações sensoriais – na sensação de um arranhar de unhas no braço de uma cadeira de rodas, de um sussurro, de uma luz intensa batendo no dorso da mão. À medida que a confiança aumentou, os artistas tiveram mais liberdade para explorar esses detalhes e nuances com a pessoa, entrando em mundos sensoriais que transmitiam uma compreensão nova e muito diferente de cada um – por exemplo, um jovem era visto como “incapaz de aprender”. Com o artista trabalhando próximo a ele, testando ideias novas, trabalhando com engenheiros e conversando com a equipe de cuidado e com sua família, o jovem rapaz começou a manejar a instalação feita para ele usando um joy stick para se mover através e em torno de imagens sensíveis ao som. Ao longo do tempo, a interpretação dele em seus movimentos físicos ficou mais precisa, e ficou claro que ele estava comunicando uma identidade que ia muito além das preconcepções limitadas de suas capacidades. O entendimento das capacidades reais começou a mudar.


Fig 5. Workshops Sensoriais com Lauren Gault, Laura Aldridge, Laura Spring. Foto: Laura Spring

Levar um tempo cotejando esses detalhes pode ser um ato emancipatório para o indivíduo, seus cuidadores e para os artistas. Para os cuidadores, cria-se um propósito num espaço antes ocupado por uma rotina tediosa. Para o indivíduo, forma-se um senso maior de identidade quando há respeito e entendimento das ações e reações. Para o artista, surgem novas perspectivas que inspiram práticas artísticas singulares. Para todos, aprende-se com a diferença e dá-se a ela seu devido valor.

Como a diretora do Centro Cherry Road, Liz Davidson7, afirma: “é um processo de exploração das relações humanas construídas com base na igualdade e na confiança mútua. Todos os envolvidos estão aprendendo e explorando seus ambientes e mundos sensoriais, ouvindo e observando juntos pela primeira vez”.8

Descobrimos que iniciar conversas alternativas sobre detalhes — mesmo que pequenos e aparentemente insignificantes — traz novas possibilidades. Ter o tempo e o espaço para pensar criativamente e ouvir as perspectivas do outro incentiva a curiosidade e a partir daí aprendizados novos.

Você aprende sobre alguém de forma não convencional, já que a troca e a comunicação ocorrem em geral pela palavra falada e, então, um gesto mínimo pode adquirir um significado enorme. Trata-se na maior parte das vezes de trabalhar instintivamente, e a Artlink concede o tempo e o espaço para que isso aconteça, o que nem sempre é possível nas outras áreas da vida das pessoas com as quais trabalhamos.9

Isso não é algo que acontece da noite para o dia. Para alcançar qualquer mudança nesses ambientes complexos, os relacionamentos e o trabalho artístico devem ser desenvolvidos lentamente. A artista Wendy Jacob expressa isso perfeitamente ao descrever seu trabalho no Centro Cherry Road: “O tempo é percebido de forma bem diferente aqui. O progresso é medido nos mínimos avanços. Não é possível se apressar. Para realizar qualquer coisa com significado nesse contexto, é crucial ter tempo para que as ideias amadureçam e se desenvolvam lentamente”.10

Ao diminuir o ritmo, surgem novos vocabulários, que não envolvem palavras nem símbolos. Na verdade, o ato de trabalhar em conjunto gera uma comunicação própria, libertando as pessoas para usarem a imaginação e trabalharem de formas que elas nunca experimentaram antes. Essa nova “linguagem” trata de uma visão de mundo radicalmente diferente e que estamos apenas começando a compreender.

Começamos a estabelecer o nosso próprio vocabulário sensorial, que se tornou nossa língua franca […] Pessoas com (deficiências complexas) são perfeitamente capazes de aprender experiências novas se tiverem tempo para isso e forem incentivadas por meio de interações constantes. Ben reescreveu sua narrativa pessoal e aqueles ao seu redor o enxergam de forma mais positiva.11


Fig 6. Experimentação com luz com Natalie, Workshop Sensorial de Quarta-Feira 2017 (Lauren e Natalie). Foto: Lauren Gault


Fig 7. Experimentação com luz com Natalie 2017. Foto: Lauren Gault

O aprendizado resultante desse trabalho será levado a um estágio muito diferente. Uma exposição em larga escala está planejada para a primavera de 2020. Isso nos desafiará a estender o trabalho para um público mais amplo o tempo todo, garantindo o envolvimento contínuo de pessoas com deficiências cognitivas profundas. Artistas da Escócia e dos Estados Unidos vão trabalhar com diferentes formas sensoriais de ser, criando obras de arte nas quais o público ficará imerso. Nossa intenção é “integrar” o público, reunindo pessoas com deficiências cognitivas complexas e pessoas de todo tipo. Queremos criar um lugar de muito encantamento e percepções íntimas, em que todos sejam iguais, onde a sensação de estar em um espaço e interagir com ele se torne uma experiência de todos.

Para isso, o trabalho será mostrado de uma maneira totalmente diferente, partindo das formas de ser muito próprias do indivíduo com deficiências cognitivas complexas. O resultado será um lugar de liberdade, quietude, toque, som, luz, vibração. Será um lugar onde a experiência física da obra de arte será uma linguagem compartilhada. Será o ápice de mais de 30 anos de trabalho.

Há muito a aprender com as experiências dos indivíduos mais marginalizados da nossa sociedade. Primeiramente, precisamos nos libertar da distinção “nós e eles”. Se uma sociedade é, em última instância, julgada pela forma como trata seus membros mais fracos e vulneráveis, faz-se necessário buscar a igualdade na diferença e reunir as forças, pois juntos somos mais fortes.


Fig 8. Ben, 2017. Foto: Steve Hollingsworth

Afinal.

Nós somos a mulher na cadeira de rodas.
Nós somos o homem no pátio do hospital e as crianças nas camas.
Eles são nós.
Nós somos eles.
Um de nós! Um de nós!12

  
Fig 9. Estudo para exposição. 2018. Imagem: Adam Putnam
Fig 10. Estudo para exposição. 2018. Imagem: Laura Aldridge


Fig 11. Estudo para exposição. 2018. Imagem: Claire Barclay e Laura Spring

 

***

 

Alison Stirling
Estudou na Escola de Arte de Glasgow do Royal College of Art. Como Diretora Artística da Artlink, ela cria projetos inovadores no setor público há mais de 24 anos. Atualmente, seu foco são práticas artísticas no âmbito do The Ideas Team, cujo ápice será uma grande exposição em 2020. Esse trabalho, que está em andamento, objetiva chamar atenção para aqueles mais marginalizados na nossa comunidade, assim como alterar os preconceitos a eles relacionados e as formas de cuidar desses indivíduos.

__________

1 O Castelo de Craigrownie foi doado por Ella Stewart à Associação Escocesa de Pessoas Com Deficiência Mental (a SSMH, na antiga sigla em inglês, e atualmente denominada Enable) e funcionou de 1958 a 1983 como Lar Stewart, a primeira instituição da Escócia destinada a estadias curtas de crianças com dificuldades de aprendizagem. A ala específica que eu visitei quando criança, como parte de uma viagem familiar anual organizada pela SSMH, era destinada a crianças com profundas deficiências físicas e dificuldades de aprendizagem.

2 A mulher é minha irmã.

3 MAYEROFF, Milton. On Caring: Caring for Other People. Londres, Evanston, Nova York, San Francisco: Harper & Row. 1971, 31.

4 BEUYS, Joseph. In: Quartetto. Joseph Beuys, Enzo Cucchi, Luciano Fabro, Bruce Nauman. Org. de Achille Bonita Oliva. Milão: Arnoldo Mondadori, 1984, 106. (Catálogo de Exposição)

5 Os avanços implementados nos serviços que atendem ao grupo majoritário (pessoas com deficiências físicas e sensoriais) geralmente não beneficiam o grupo minoritário (pessoas com deficiências complexas), marcado pela impotência e pouco prestígio — sendo, em geral, essa falta de poder, pessoas e status compartilhada pelas famílias e pela equipe. SHEEHY, Kieron; NIND, Melanie. “Emotional Well-Being For All: mental health & people with profound & multiple learning disabilities”. In: British Journal of Learning Disabilities – BILD. Londres: 2005, 35.

6 O Centro de Aprendizagem Cherry Road oferece experiências customizadas e personalizadas para dar suporte a adultos com dificuldades de aprendizagem e a adultos com autismo. Antes baseado em um modelo mais tradicional de cuidado, o serviço se reformulou em colaboração com a Artlink, organização líder em artes e assistência a pessoas com deficiências. Isso possibilitou o desenvolvimento por parte do serviço de experiências criativas e enriquecedoras para as pessoas e melhorou significativamente a forma do suporte dado a pessoas com necessidades muito complexas, levando a uma mudança positiva prolongada e contribuindo para a diminuição do uso de serviços de saúde e cuidado.

7 Esse trabalho não teria sido possível sem a gestão aberta e criativa do centro Cherry Road. Eles trabalharam em parceria conosco no projeto Ideas Team.

8 DAVIDSON, Liz. Palestra apresentada como parte do Grupo de Pesquisa em Deficiências da Universidade de Edimburgo. Blog The Ideas Team, nov. de 2015. Disponível em: <https://ideasteam.org/2015/11/13/liz-davidson-day-centre-managerpresentation-as-part-of-edinburgh-university-disabilty-research-group-november-2015/>. Acesso em: 05 mar. 2018.

9 SPRING, Laura. Relato da artista Laura Spring sobre sua experiência na Artlink. Blog The Ideas Team, ago. de 2015. Disponível em: <https://ideasteam.org/2015/08/20/artist-laura-spring-on-her-artlink-practice/>. Acesso em: 05 mar. 2018.

10 LLOYD, Kirsten. “Uncommon Ground: Radical Approaches to Artistic Practice”. Edimburgo: Artlink, 2016, 16-17. [Nota editora N.E.: A tradução deste ensaio também faz parte do estudo de caso sobre Artlink nesta edição: http://institutomesa.org/revistamesa/edicoes/5/portfolio/kirsten-lloyd-terreno-incomum/]

11 GRACE, Joanna. Sensory-Being for Sensory Beings: Creating Entrancing Sensory Experiences. Londres: Taylor Francis Ltd., 2017, 33-34.

12 Em Freaks, de Tod Browning, feito em 1932, artistas de circo cantam juntos “um de nós, um de nós” demonstrando aceitação de uma pessoa “normal” de fora do grupo. Ao ver esse filme como um jovem adulto, fui seduzido pela ideia de que a diferença poderia nos aproximar; de que éramos, de fato, todos iguais. Infelizmente a camaradagem dura pouco e se transforma rapidamente em bullying e disputa por poder. A cantoria nesse filme absolutamente politicamente incorreto ainda ecoa nos dias de hoje, assim como as atitudes separatistas que, em última análise, ele retrata.